terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Cerveja e mitologia - Parte II: As três vidas


Na primeira parte desta matéria sobre cerveja e mitologia, comentei o papel do cauim como “bebida da imortalidade” entre os tukuna da região amazônica. Vimos que, ao beberem a cerveja, os índios puderam unir-se aos deuses e tornar-se imortais. Mortalidade, imortalidade. Parece uma contraposição muito familiar para nós: na maior parte das religiões da nossa cultura também existe uma divisão da vida entre um corpo mortal e uma alma imortal.

A terceira vida

Mas os índios sul-americanos não se limitam a esses dois estados. Para eles, além da mortalidade dos homens comuns e da imortalidade dos deuses, existiria ainda uma “terceira vida”, uma outra forma, mais restrita, de “imortalidade”. E, de novo, a cerveja tem tudo a ver com essa terceira vida. Vejamos como isso ocorre a partir de mais um mito da etnia tukuna, um pouco mais elaborado do que aquele que discutimos antes: o mito da vida longa.

A vida longa
                Confinada em sua cela da puberdade, uma virgem ouviu o chamado dos imortais. Respondeu imediatamente e pediu a imortalidade. Naquele momento, ocorria uma festa. Entre os convidados havia uma jovem, que estava noiva de Tartaruga, mas o desprezava, pois ele se alimentava de orelha-de-pau, e cortejava Falcão.
                Durante toda a festa, ela ficou fora da cabana com seu bem-amado (o Falcão), a não ser por um instante, para beber cauim. Tartaruga notou sua saída apressada e lançou uma maldição: repentinamente, o couro de anta sobre o qual estavam sentados a virgem e os convidados elevou-se nos ares, sem que Tartaruga tivesse tempo de tomar seu lugar nele.
                Os dois amantes veem o couro e seus ocupantes, já bem alto no céu. Os irmãos da jovem lançam um cipó até ela, para poderem subir até lá; mas ela não devia abrir os olhos! Ela desobedece e grita: “O cipó é muito fino! Vai rebentar!”. O cipó cede de fato. Na queda, a jovem se transforma em pássaro.
As Plêiades no céu noturno. Não está enxergando 
Tartaruga, a jovem índia e os demais convidados?
                Tartaruga quebrou as jarras repletas de bebida e esta, que estava cheia de vermes, se esparramou pelo chão, onde as formigas e as outras criaturas que trocam de pele a lamberam; por isso elas não envelhecem. Tartaruga transformou-se em pássaro e foi juntar-se aos seus companheiros no mundo do alto. O couro e seus ocupantes ainda podem ser vistos hoje em dia: forma o halo lunar (em outra versão: a constelação das Plêiades).

Vamos lá, deixe o relativismo cultural e o politicamente correto de lado e admita: você achou o mito uma balbúrdia sem pé nem cabeça, não é mesmo? Só podia ser história de bêbado! Então vamos tentar destrinchar os fios da história para entendermos o que a cerveja está fazendo no meio dessa confusão toda. Você verá que a história toda tem uma lógica implacável.

O mito se propõe a explicar o surgimento da “vida longa”. Não se trata nem da mortalidade dos homens, nem da imortalidade dos deuses. O mito começa com o pedido de uma virgem (mortal) pela imortalidade, e terminará com o surgimento de uma espécie de vida intermediária entre a mortalidade e a imortalidade. Ora, os deuses são imortais porque não morrem jamais, permanecem sempre na mesma forma em que estão. Os homens, pelo contrário, nascem bebês, crescem, envelhecem, definham e eventualmente morrem e apodrecem, numa progressão linear e irreversível. Mas existem alguns seres que conseguem “reverter” essa progressão em direção à morte e ao apodrecimento, pelo menos temporariamente: são os animais que trocam de pele ou de carcaça, como as cobras e vários tipos de insetos. Quando estão se aproximando da decrepitude, eles “trocam” de corpo e voltam a rejuvenescer. Nem mortais nem imortais, eles atingem a “vida longa” através de uma espécie de ressurreição periódica.

Cru, cozido, podre

Toda a história se desenvolve em torno de um triângulo amoroso. A jovem índia era noiva de Tartaruga e amante de Falcão. Ela desprezava Tartaruga, pois seu noivo comia orelhas-de-pau, uma espécie de fungo que se desenvolve nos troncos das árvores. Ou seja, Tartaruga era odiado porque comia alimentos podres. Falcão, por sua vez, era admirado e desejado: em vez de se alimentar do podre, Falcão comia carne crua. A jovem, como índia que era, comia alimentos cozidos. Temos aqui uma tríade alimentar: cru-cozido-podre, que corresponde a uma tríade de estados vitais: imortalidade-vida longa-mortalidade.

Sinceramente: você levaria a sério alguém
que come isto?
Fonte: tresorelhas.com.br
A jovem não admite misturar os alimentos: ela claramente escolhe o cru em detrimento do podre. Como consequência, sofre a maldição de Tartaruga, eleva-se aos ares e transforma-se em pássaro (um comedor de cru, tal como o Falcão), junto com todos os ocupantes do couro de anta sobre o qual ela estava sentada. Já vimos, no mito da bebida da imortalidade, como a anta (tapir) era o elemento de ligação entre o mundo terreno dos mortais e o mundo celeste dos imortais. Aqui, o couro da anta exerce o mesmo papel de mediação, permitindo aos homens mortais que se tornem pássaros e, no fim das contas, estrelas no mundo celeste. A incapacidade desses três personagens (jovem índia, Falcão e Tartaruga) de conjugar os regimes alimentares vai obrigá-los a uma escolha drástica entre a vida mortal e a imortalidade no mundo dos céus.

O mito narra as peripécias envolvendo as tentativas de se resgatar a jovem do mundo dos céus, mas ela estraga tudo quando abre os olhos. Um personagem que desavisadamente ouve ou vê mais do que devia e, com isso, causa uma separação drástica (aqui, entre o céu e a terra) é uma figura comum na mitologia indígena, mas não cabe aqui explorar o seu significado. Quero pular logo para a parte que nos diz respeito diretamente: o cauim. O que ele tem a ver com essa “terceira vida” intermediária dos insetos e cobras?

O cauim, como vimos, era uma bebida fermentada preparada a partir das raízes da mandioca, espécie de “cerveja de mandioca” muito consumida pelos índios. O mito indica que os jarros de cauim estavam “cheios de vermes”, e isso se compreende facilmente pelo processo de produção da bebida. Como vimos, a mandioca cozida devia ser mastigada e deixada fermentar e azedar espontaneamente para se produzir o cauim. Interessante conjunção de regimes alimentares: o cauim era um alimento ao mesmo tempo cozido e podre. Diferentemente da jovem índia, que come cozido e troca o podre pelo cru, o cauim une o cozido e o podre num único alimento. Em vez de separar as esferas do mundo, ele as reúne em si. É por isso que o mito tukuna nos conta que as formigas e todos os animais que lamberam o cauim ganharam a vida longa: isto é, eles não foram forçados a escolher entre a mortalidade terrena e a imortalidade celeste, mas ficaram com uma espécie de “imortalidade intermediária” por meio da qual trocam seus corpos “apodrecidos” por outros corpos novos e jovens. A cerveja, portanto, os rejuvenesce, ao contrário do que ocorre com os homens mortais, que apenas envelhecem e morrem.

“Mamãe, enchi a cara de cerveja!”
Fonte: cobramania.com
Bebida de propriedades extraordinárias, para os índios, a cerveja permite a conjunção entre os homens e os deuses, assim como revela uma solução intermediária entre a imortalidade e a morte. Em grande parte, isso ocorre porque ela é um alimento que transita entre os mundos alimentares: vem de uma raiz crua, é cozido pelos homens e depois deixado apodrecer “naturalmente”. O cauim vem da natureza, é retrabalhado pelos homens e dado de volta para ser finalizado pela natureza.

É comum escutar dos nossos produtores de cerveja, mesmo nas cervejarias industriais mais modernas, que o mestre-cervejeiro não produz cerveja. Ele produz mosto, que então é posto para fermentar. Quem produz a cerveja são as leveduras, no maravilhoso e misterioso processo da fermentação, nem sempre passível de 100% de controle pelo homem. Fazer cerveja é confiar na natureza, conceder-lhe o fruto do nosso trabalho humano (o mosto) para que ela nos retorne a dádiva da “bebida da imortalidade”. Sejamos reverentes, pois!

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Cerveja e mitologia - Parte I: A bebida da imortalidade


Baco (1595), pelo pintor italiano Caravaggio, 
ostentando sua opulenta taça de vinho.
Fonte: Wikimedia Commons
Boa parte das pessoas conhece, pelo menos por alto, o vínculo entre o vinho e a mitologia. Em grande medida, isso ocorre porque fomos criados em uma cultura profundamente eurocêntrica e, portanto, temos maior familiaridade com a mitologia europeia do que com a mitologia dos povos americanos (apesar de vivermos na América e não na Europa). E as mitologias europeias mais conhecidas entre nós vieram de povos em que o vinho ocupava o papel de bebida de prestígio das elites – estou falando dos gregos e dos romanos. Portanto, é de certa forma natural que tenhamos muita familiaridade com figuras como Baco/Dioniso (deus greco-romano do vinho), mas não conheçamos mitos ligados às cervejas.

Como se sabe, porém, a cerveja era a bebida fermentada mais proeminente em diversas sociedades ao longo da história. A “genealogia” mais conhecida da cerveja remonta sua criação remota aos egípcios ou aos sumérios, mas existiam também diversos povos que produziam bebidas fermentadas a partir de outros vegetais com reservas de amido além do trigo e da cevada. Em muitas dessas sociedades, as cervejas deixaram marcas sobre as lendas, mitos e narrativas dessas culturas.

No Brasil, os indígenas já consumiam, desde antes da chegada dos portugueses, uma bebida fermentada produzida a partir da mandioca – entre os tupinambás da costa atlântica, essa bebida era conhecida como “cauim” – ou “vinho de mandioca”, como muitas vezes os portugueses a chamaram. Não se tratava propriamente de um vinho, sendo talvez mais próxima de uma cerveja de fermentação espontânea. Em linhas gerais, o processo de produção era o seguinte: as raízes da mandioca eram cortadas em pedaços pequenos e cozidas em água fervente. Esses pedaços eram mastigados e cuspidos em um grande pote. A bebida então fermentava espontaneamente e era servida durante as grandes festas e cerimônias dos tupinambás. Nunca era bebida solitariamente, ao contrário das bebidas alcoólicas dos europeus.
A ilustração, do relato de viagem do padre francês André 
Thevet, que esteve entre os tupinambás no século XVI, 
representa o preparo do cauim.
Fonte: 

Nosso vergonhoso desconhecimento das culturas americanas é tamanho que, para a maior parte dos amantes de cerveja, Cauim é apenas o nome de um dos rótulos da Cervejaria Colorado. Contudo, o cauim figura em vários importantes mitos indígenas, entre os quais dois que pretendo apresentar brevemente aqui. As versões de ambos os mitos foram extraídas do livro O Cru e o Cozido, primeiro volume do monumental estudo de Claude Lévi-Strauss sobre a mitologia americana, sobre a qual já tive a oportunidade de tecer alguns comentários aqui antes.

Um mito tukuna

Se os gregos e os romanos associavam o vinho aos deuses, na figura de Baco/Dioniso, para os indígenas o cauim também tinha associações sagradas. Tanto é que um dos mitos da etnia tukuna (que vive na região amazônica) o considera a “bebida da imortalidade” e o compara a um presente dos deuses. Vejamos o que os tukuna nos falam sobre a bebida:

Mito tukuna: A bebida da imortalidade
            Uma festa da puberdade estava chegando ao fim, mas o tio da jovem virgem estava tão bêbado que não podia mais conduzir as cerimônias. Um deus imortal apareceu sob a forma de um tapir [anta]. Levou a jovem e casou-se com ela.
            Muito tempo depois, ela voltou à aldeia com seu bebê e pediu aos parentes que preparassem uma cerveja especialmente forte para a festa de depilação de seu irmão mais novo. Ela assistiu à cerimônia em companhia do marido. Este havia trazido um pouco da bebida dos Imortais e deu um gole a cada participante. Quando todos ficaram ébrios, partiram com o jovem casal para se instalarem na aldeia dos deuses.

Alguns esclarecimentos se fazem necessários. Nas mitologias dos índios sul-americanos, é comum que os homens e os animais convivam e até se casem entre si, porque essas narrativas se passam em um tempo mítico, supostamente anterior à separação definitiva entre os homens e a natureza. Diante disso, o casamento de uma jovem índia com uma anta não deve causar espanto, e nem ser encarado como uma tragédia. Outro esclarecimento diz respeito às cerimônias mencionadas no mito: entre os indígenas, diversas cerimônias coletivas marcam a passagem da infância para a vida adulta, entre as quais a festa da puberdade e a festa de depilação. São eventos que marcam o momento em que as crianças passam a ser reconhecidas como adultas, podendo desempenhar as tarefas dos adultos e casar-se. Muito semelhante ao que acontece em nossa cultura, em cerimônias como as tradicionais festas de debutantes, as festas de 15 anos e, em certo sentido, também os trotes universitários. Trata-se, em todos os casos, de ritos coletivos de passagem.

No mito tukuna, a bebida cria as condições da união entre deuses e homens. O tio da jovem virgem havia tomado cerveja demais na festa de puberdade da moça e, por conta disso, o deus-anta-imortal pôde levar a jovem e casar-se com ela. Quando a moça retorna à aldeia, por ocasião de mais um rito de passagem (aqui, a passagem da vida infantil para a adulta é paralela à passagem da mortalidade para a imortalidade), o marido traz a bebida alcoólica preparada pelos deuses imortais. Os parentes “humanos” da jovem consomem a bebida, ficam bêbados e partem para a aldeia dos imortais junto com a moça. Nos dois episódios, é a bebedeira que permite que os homens unam-se aos deuses e alcancem a imortalidade: no primeiro caso, a bebida preparada pelos homens permite a união de uma única jovem; no segundo, uma “cerveja especialmente forte” e mais a bebida preparada pelos próprios deuses permitem que a aldeia inteira parta em companhia dos imortais. Ou seja, para os tukuna, a cerveja funciona como uma espécie de “chave” que abre a porta entre os homens e os deus, a vida mortal e a imortalidade.

Álcool e o sagrado

Na Última Ceia de Tintoretto (1559), o vinho tem 
lugar de destaque na mesa dos apóstolos.
Fonte: http://www.atlantedellarteitaliana.it
A associação entre as bebidas alcoólicas e os deuses é comum em várias culturas. Não basta citar o fato, crucial na liturgia católica, de que Cristo transformou o vinho em seu próprio sangue durante a última ceia com os apóstolos? Hoje, nossa sociedade vive tempos de profunda moralização e disciplinarização do comportamento, mas em outras épocas (bem como em outras culturas contemporâneas), a embriaguez sempre foi encarada a partir de uma perspectiva positiva. Claro, e isso é um ponto fundamental, sempre se tratou de uma embriaguez controlada: seja pelo fato de ela ser praticada durante cerimônias religiosas, seja por se tratar de um hábito necessariamente coletivo, e portanto passível de controle, moderação e auxílio mútuo.

Contudo, em todos esses casos, o álcool é encarado como uma substância que pode colocar em homens em um estado de proximidade com o sagrado, que pode mudar sua forma cotidiana de pensar e agir, abrir novas possibilidades de socialização. Se seguirmos a clássica definição sociológica de Émile Durkheim, o sagrado é aquilo que transcende a individualidade dos homens, ultrapassa a singularidade dos pequenos grupos, e condensa os valores e a autoridade de toda uma sociedade. O sagrado é a porta para algo maior do que nós mesmos, uma forma de alcançar uma coisa além das limitações da nossa vida individual. Daí o cauim, cerveja dos deuses, ser conhecido como a “bebida da imortalidade” entre os tukuna.

A cerveja sempre foi considerada a bebida das confraternizações, da alegria, capaz de fazer amizades – Randy Mosher a trata com um “lubrificante social”, capaz de fazer com que as pessoas rompam certas barreiras iniciais e se relacionem de forma mais natural e fácil umas com as outras. De certa forma, ela nos aproxima também de algo maior que nós mesmos, nos integra no seio de um grupo que nos transcende. Claro que uma reles mesa de bar, um churrasco entre amigos, podem parecer algo modesto, se comparado ao papel fundamental do cauim nas cerimônias religiosas e sociais mais importantes dos indígenas, entre os quais ele é a bebida da coletividade por excelência.

Mas, em maior ou em menor grau, em todos esses casos podemos ver, de forma mais ou menos clara, como o consumo moderado, consciente, socialmente regulado da cerveja é capaz de romper com a mediocridade mesquinha de nossas vidas individuais, de nos por em contato com algo maior do que nós. Por isso mesmo, não me parece nem um pouco condizente com a vocação da cerveja que ela seja usada para ostentar e criar barreiras entre as pessoas. Num primeiro olhar, tudo isso pareceria uma apologia vulgar ao álcool, um incentivo a este hábito frequentemente considerado como “destruidor de famílias”. Na verdade, se trata do contrário disso: o consumo moderado e consciente da cerveja e do álcool não precisa destruir – antes, ele pode unir as pessoas, fortalecer vínculos, criar algo mais grandioso do que cada um de nós poderia fazer sozinho. E não é essa a grande tarefa do gênero humano? Não deveria ser sempre isso que buscamos, não importa a cultura em que fomos criados ou a religião que aprendemos a seguir?

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Bières brut - Epílogo: Do vinho à cerveja e vice-versa duas vezes


É, eu sei que, a princípio, a matéria sobre as bières brut deveria acabar na oitava parte. Mas uma coisa da qual se pode ter certeza sobre os historiadores é que, se você os deixar, eles divagarão infinitamente. E, para a minha felicidade (e eventualmente para a infelicidade alheia), neste blog eu tenho espaço à vontade para divagar. E cá estamos nós, de novo, em torno das bières brut. Mas agora vou tentar terminar de vez.

Por que não?
Fonte:  http://www.wineexpedition.com  
Ao contar a história deste fascinante estilo cervejeiro, comentei que ele foi o fruto de uma troca secular de expertise e tecnologia entre a produção cervejeira e vinícola. Parece adequado, portanto, que eu tenha sido levado a um insight sobre essas cervejas degustando justamente um vinho. Fomos dos vinhos para a cerveja, agora voltaremos aos vinhos – para acabar novamente nas cervejas. Essa é uma experiência a que os cervejeiros deveriam se dedicar com maior frequência: degustar vinhos nos coloca em território aparentado o suficiente com as cervejas para que uma certa familiaridade se manifeste, mas distante o suficiente para desafiar nossos sentidos e nos tirar da nossa “zona de conforto”.

Uma dúvida angustiante

Pois bem, uma das dúvidas que haviam ficado em aberto para mim, a respeito das bières brut, era uma certa semelhança aromática entre alguns rótulos degustados e as cervejas do estilo lambic. Havia alguma coisa lá, em 3 dos 5 rótulos degustados, que me fez pensar “hm, cheiro de lambic”. Pior que isso, eu só percebi isso a posteriori, comparando minhas notas de degustação tomadas em ocasiões independentes, o que significa que não posso ter sido sugestionado por um rótulo a perceber o mesmo nos demais.

Eu adoro lambics, mas a semelhança havia me colocado um problema para o qual eu não tinha uma resposta. A princípio, a característica mais distintiva das cervejas lambic, produzidas por fermentação espontânea, são os aromas produzidos pelas leveduras “selvagens” do gênero Brettanomyces. Trata-se de aromas normalmente descritos como “animais” (cobertor de cavalo, estábulo, couro etc.), e correspondem a um conjunto de compostos fenólicos dentre os quais se destaca o 4-etil-fenol. O problema é que, em teoria, não há ocorrência de leveduras do gênero Brettanomyces na produção das bières brut, que usam apenas leveduras típicas para a produção de cervejas e vinhos, do gênero Saccharomyces.

Célula de levedura do gênero Brettanomyces
Fonte: http://www.etslabs.com 
Como explicar a presença dos “aromas de lambic”, então? Poderia ser uma contaminação por Brettanomyces? A princípio, isso seria possível (já me ocorreu em outras cervejas que degustei), mas em 3 das 5 amostras? Poderia ser que as leveduras de espumante, ao se adaptarem aos açúcares da cerveja durante a refermentação, tivessem produzido esse composto fenólico? Nunca encontrei nenhuma indicação a respeito em minhas pesquisas e, se fosse o caso, será que isso não deveria ocorrer também com outras cervejas refermentadas com cepas típicas de espumantes? Diante desses impasses, só me restou registrar a questão nas partes anteriores desta matéria e deixar o assunto em aberto.

Brettanomyces, oxidação

Esse dias me ocorreu uma outra alternativa, bem mais plausível. Ironicamente, depois de tanto escrever sobre bières brut, eu decidi comemorar meu ano-novo com... um espumante! Escolhi dois rótulos diferentes da vinícola Casa Valduga, o Casa Valduga Arte Brut e o Casa Valduga Premium Brut. Em parte, a escolha foi motivada pela descoberta de que ambos eram produzidos pelo método tradicional (como é chamado o método champenoise quando é realizado fora da região de Champagne). O Arte Brut passa 12 meses maturando sobre leveduras (o mesmo que a Eisenbahn Lust Prestige), e o Premium Brut passa 25 meses. Apesar disso, chegam ao consumidor com um preço bastante atrativo: R$ 35 e R$ 45, respectivamente. Faz a gente se questionar a respeito do custo-benefício das bières brut, inclusive.

Enquanto eu degustava o Premium Brut, tive de novo aquele déja-vu: “hm, cheiro de lambic”. Pois aí é que me deu o estalo: provavelmente era a mesma coisa que eu tinha sentido nas bières brut! E me lembrei de que, além dos aromas “animais” das Brettanomyces, havia um outro tipo de aroma bem típico do perfil das lambics: uma substância chamada benzaldeído, decorrente de processos de oxidação que ocorrem nas lambics durante a longa maturação pela qual passam. Tem um aroma bem peculiar de amêndoas cruas (não as torradas), entre o terroso e o mineral.

Pois bem, o rótulo do Casa Valduga Premium Brut de fato usava o termo “amêndoas” ao descrever o bouquet do espumante, o que afastava qualquer dúvida. Como esse aroma de amêndoas podia ser produzido por reações de oxidação, condizia com o processo de fabricação do espumante, com sua longa maturação de 25 meses. E, mais que isso, condizia também com o método de produção das bières brut, pois elas também passam por um longo período de maturação na garrafa. Eu já havia identificado positivamente amêndoas na Eisenbahn Lust Prestige, então não seria impossível que essa “sensação de lambic” que eu estava percebendo em outros rótulos fosse também um toque de amêndoas. Bem mais plausível, e condizente com o processo de fabricação, do que os aromas produzidos por Brettanomyces. Meu cérebro talvez tivesse tomado um “atalho mental”, identificando prontamente “amêndoas” com “lambics” e me induzindo ao erro.

Restava ainda uma dificuldade. O rótulo em que eu tinha encontrado essa “sensação de lambic” de forma mais intensa havia sido a Eisenbahn Lust. Isso era bastante curioso, já que se tratava da cerveja com menor tempo de maturação dentre todas as bières brut, então deveria ter menos características de envelhecimento e maturação estendida. Mas também me ocorreu que a garrafa que eu degustei estava quase estourando a data de validade, de modo que a maturação dentro da garrafa, após a expelição e já sem as leveduras, pode ter acentuado a presença de benzaldeído.

Não tenho uma explicação definitiva e, para mim, a questão segue em aberto, à espera de novas deliciosas degustações para que seja esclarecida – ou pelo menos confrontada mais uma vez. De qualquer forma, editei as partes anteriores desta matéria para refletir essa minha nova impressão. Quanto mais estudamos sobre qualquer coisa – e cervejas não são uma exceção –, mais as perguntas se multiplicam. De qualquer modo, saio com duas novas intuições: em primeiro lugar, a de que o aroma de amêndoas deve ter um papel bem mais importante na composição do aroma das lambics do que normalmente se reconhece no “senso comum” cervejeiro. Em segundo lugar, e mais importante, reforço minha impressão de que uma visita ao mundo dos vinhos pode ser sempre uma experiência enriquecedora para nossa apreciação de cervejas. Os fermentados todos são uma grande família, e as bières brut são o maior testemunho de que as trocas entre os dois mundos podem ser muito proveitosas. Quem sou eu para ousar discordar?

Um espumante

Termino esta matéria saindo da minha zona de conforto e apresentado aos colegas cervejeiros uma indicação de espumante, justamente aquele que me deu o insight para este epílogo: o Casa Valduga Premium Brut, safra 2006. Livre-se do seu preconceito a respeito de vinhos nacionais, caso o tenha. O clima da Serra Gaúcha (com baixa insolação e alta umidade) pode não ser o ideal para a produção de diversos tipos de vinhos, mas é perfeito para a produção de espumantes, pois resulta em uvas com alta acidez. Por isso, o Brasil produz alguns espumantes de reconhecida qualidade, os quais deveríamos prestigiar mais frequentemente em vez de sair gastando mais de R$ 200 num champagne básico por aí.

O vinho-base do Casa Valduga Premium Brut é produzido a partir de um corte em que entram 60% de uvas Chardonnay e 40% de Pinot Noir, e ele passa por todas as etapas do método champenoise. Sua maturação dentro da garrafa, com as leveduras, dura 25 meses – o dobro de um champagne comum, mas não tanto quanto um champagne millesimé. A vinícola também comercializa uma versão com apenas 12 meses de maturação, denominada Arte Brut, e outras três versões com 36, 48 e impressionantes 60 meses de maturação.

Na boca, o Premium Brut apresenta acidez dominante e viva e uma secura agradável, de abrir o apetite, mas sem exageros. Seu aroma, muito elegante e equilibrado, combina um aroma de frutas frescas com toques expressivos de oxidação lembrando amêndoas cruas. Em comparação com o seu irmão mais jovem, o Arte Brut, mostrou-se mais seco, mais maduro e menos frutado. Infelizmente, minha pouca familiaridade com a degustação de vinhos me impede de ir mais adiante na descrição, mas não me impede de registrar aqui a dica para todos os amantes de cervejas e fermentados!