segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Bières brut - Epílogo: Do vinho à cerveja e vice-versa duas vezes


É, eu sei que, a princípio, a matéria sobre as bières brut deveria acabar na oitava parte. Mas uma coisa da qual se pode ter certeza sobre os historiadores é que, se você os deixar, eles divagarão infinitamente. E, para a minha felicidade (e eventualmente para a infelicidade alheia), neste blog eu tenho espaço à vontade para divagar. E cá estamos nós, de novo, em torno das bières brut. Mas agora vou tentar terminar de vez.

Por que não?
Fonte:  http://www.wineexpedition.com  
Ao contar a história deste fascinante estilo cervejeiro, comentei que ele foi o fruto de uma troca secular de expertise e tecnologia entre a produção cervejeira e vinícola. Parece adequado, portanto, que eu tenha sido levado a um insight sobre essas cervejas degustando justamente um vinho. Fomos dos vinhos para a cerveja, agora voltaremos aos vinhos – para acabar novamente nas cervejas. Essa é uma experiência a que os cervejeiros deveriam se dedicar com maior frequência: degustar vinhos nos coloca em território aparentado o suficiente com as cervejas para que uma certa familiaridade se manifeste, mas distante o suficiente para desafiar nossos sentidos e nos tirar da nossa “zona de conforto”.

Uma dúvida angustiante

Pois bem, uma das dúvidas que haviam ficado em aberto para mim, a respeito das bières brut, era uma certa semelhança aromática entre alguns rótulos degustados e as cervejas do estilo lambic. Havia alguma coisa lá, em 3 dos 5 rótulos degustados, que me fez pensar “hm, cheiro de lambic”. Pior que isso, eu só percebi isso a posteriori, comparando minhas notas de degustação tomadas em ocasiões independentes, o que significa que não posso ter sido sugestionado por um rótulo a perceber o mesmo nos demais.

Eu adoro lambics, mas a semelhança havia me colocado um problema para o qual eu não tinha uma resposta. A princípio, a característica mais distintiva das cervejas lambic, produzidas por fermentação espontânea, são os aromas produzidos pelas leveduras “selvagens” do gênero Brettanomyces. Trata-se de aromas normalmente descritos como “animais” (cobertor de cavalo, estábulo, couro etc.), e correspondem a um conjunto de compostos fenólicos dentre os quais se destaca o 4-etil-fenol. O problema é que, em teoria, não há ocorrência de leveduras do gênero Brettanomyces na produção das bières brut, que usam apenas leveduras típicas para a produção de cervejas e vinhos, do gênero Saccharomyces.

Célula de levedura do gênero Brettanomyces
Fonte: http://www.etslabs.com 
Como explicar a presença dos “aromas de lambic”, então? Poderia ser uma contaminação por Brettanomyces? A princípio, isso seria possível (já me ocorreu em outras cervejas que degustei), mas em 3 das 5 amostras? Poderia ser que as leveduras de espumante, ao se adaptarem aos açúcares da cerveja durante a refermentação, tivessem produzido esse composto fenólico? Nunca encontrei nenhuma indicação a respeito em minhas pesquisas e, se fosse o caso, será que isso não deveria ocorrer também com outras cervejas refermentadas com cepas típicas de espumantes? Diante desses impasses, só me restou registrar a questão nas partes anteriores desta matéria e deixar o assunto em aberto.

Brettanomyces, oxidação

Esse dias me ocorreu uma outra alternativa, bem mais plausível. Ironicamente, depois de tanto escrever sobre bières brut, eu decidi comemorar meu ano-novo com... um espumante! Escolhi dois rótulos diferentes da vinícola Casa Valduga, o Casa Valduga Arte Brut e o Casa Valduga Premium Brut. Em parte, a escolha foi motivada pela descoberta de que ambos eram produzidos pelo método tradicional (como é chamado o método champenoise quando é realizado fora da região de Champagne). O Arte Brut passa 12 meses maturando sobre leveduras (o mesmo que a Eisenbahn Lust Prestige), e o Premium Brut passa 25 meses. Apesar disso, chegam ao consumidor com um preço bastante atrativo: R$ 35 e R$ 45, respectivamente. Faz a gente se questionar a respeito do custo-benefício das bières brut, inclusive.

Enquanto eu degustava o Premium Brut, tive de novo aquele déja-vu: “hm, cheiro de lambic”. Pois aí é que me deu o estalo: provavelmente era a mesma coisa que eu tinha sentido nas bières brut! E me lembrei de que, além dos aromas “animais” das Brettanomyces, havia um outro tipo de aroma bem típico do perfil das lambics: uma substância chamada benzaldeído, decorrente de processos de oxidação que ocorrem nas lambics durante a longa maturação pela qual passam. Tem um aroma bem peculiar de amêndoas cruas (não as torradas), entre o terroso e o mineral.

Pois bem, o rótulo do Casa Valduga Premium Brut de fato usava o termo “amêndoas” ao descrever o bouquet do espumante, o que afastava qualquer dúvida. Como esse aroma de amêndoas podia ser produzido por reações de oxidação, condizia com o processo de fabricação do espumante, com sua longa maturação de 25 meses. E, mais que isso, condizia também com o método de produção das bières brut, pois elas também passam por um longo período de maturação na garrafa. Eu já havia identificado positivamente amêndoas na Eisenbahn Lust Prestige, então não seria impossível que essa “sensação de lambic” que eu estava percebendo em outros rótulos fosse também um toque de amêndoas. Bem mais plausível, e condizente com o processo de fabricação, do que os aromas produzidos por Brettanomyces. Meu cérebro talvez tivesse tomado um “atalho mental”, identificando prontamente “amêndoas” com “lambics” e me induzindo ao erro.

Restava ainda uma dificuldade. O rótulo em que eu tinha encontrado essa “sensação de lambic” de forma mais intensa havia sido a Eisenbahn Lust. Isso era bastante curioso, já que se tratava da cerveja com menor tempo de maturação dentre todas as bières brut, então deveria ter menos características de envelhecimento e maturação estendida. Mas também me ocorreu que a garrafa que eu degustei estava quase estourando a data de validade, de modo que a maturação dentro da garrafa, após a expelição e já sem as leveduras, pode ter acentuado a presença de benzaldeído.

Não tenho uma explicação definitiva e, para mim, a questão segue em aberto, à espera de novas deliciosas degustações para que seja esclarecida – ou pelo menos confrontada mais uma vez. De qualquer forma, editei as partes anteriores desta matéria para refletir essa minha nova impressão. Quanto mais estudamos sobre qualquer coisa – e cervejas não são uma exceção –, mais as perguntas se multiplicam. De qualquer modo, saio com duas novas intuições: em primeiro lugar, a de que o aroma de amêndoas deve ter um papel bem mais importante na composição do aroma das lambics do que normalmente se reconhece no “senso comum” cervejeiro. Em segundo lugar, e mais importante, reforço minha impressão de que uma visita ao mundo dos vinhos pode ser sempre uma experiência enriquecedora para nossa apreciação de cervejas. Os fermentados todos são uma grande família, e as bières brut são o maior testemunho de que as trocas entre os dois mundos podem ser muito proveitosas. Quem sou eu para ousar discordar?

Um espumante

Termino esta matéria saindo da minha zona de conforto e apresentado aos colegas cervejeiros uma indicação de espumante, justamente aquele que me deu o insight para este epílogo: o Casa Valduga Premium Brut, safra 2006. Livre-se do seu preconceito a respeito de vinhos nacionais, caso o tenha. O clima da Serra Gaúcha (com baixa insolação e alta umidade) pode não ser o ideal para a produção de diversos tipos de vinhos, mas é perfeito para a produção de espumantes, pois resulta em uvas com alta acidez. Por isso, o Brasil produz alguns espumantes de reconhecida qualidade, os quais deveríamos prestigiar mais frequentemente em vez de sair gastando mais de R$ 200 num champagne básico por aí.

O vinho-base do Casa Valduga Premium Brut é produzido a partir de um corte em que entram 60% de uvas Chardonnay e 40% de Pinot Noir, e ele passa por todas as etapas do método champenoise. Sua maturação dentro da garrafa, com as leveduras, dura 25 meses – o dobro de um champagne comum, mas não tanto quanto um champagne millesimé. A vinícola também comercializa uma versão com apenas 12 meses de maturação, denominada Arte Brut, e outras três versões com 36, 48 e impressionantes 60 meses de maturação.

Na boca, o Premium Brut apresenta acidez dominante e viva e uma secura agradável, de abrir o apetite, mas sem exageros. Seu aroma, muito elegante e equilibrado, combina um aroma de frutas frescas com toques expressivos de oxidação lembrando amêndoas cruas. Em comparação com o seu irmão mais jovem, o Arte Brut, mostrou-se mais seco, mais maduro e menos frutado. Infelizmente, minha pouca familiaridade com a degustação de vinhos me impede de ir mais adiante na descrição, mas não me impede de registrar aqui a dica para todos os amantes de cervejas e fermentados!

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