sábado, 3 de março de 2012

Guias de estilos - Parte III: O BJCP


Nas partes anteriores deste artigo, afirmei que os dois guias de estilos mais empregados no Brasil foram criados recentemente para ajudar a organizar campeonatos de cerveja nos EUA. Vejamos então com mais detalhes quais foram as entidades responsáveis por cada guia, bem como os campeonatos que estes ajudaram a organizar, começando por aquele que é provavelmente o guia de estilos mais empregado no Brasil: o do BJCP.

O Beer Judge Certification Program e o National Homebrew Competition

Logo do BJCP.
Fonte: homebrewersassociation.org
BJCP é a sigla para Beer Judge Certification Program (Programa de Certificação de Juízes de Cerveja). Atualmente, o BJCP é uma instituição que certifica o nível de conhecimento e a aptidão de juízes para vários campeonatos de cerveja. Existem diversos graus de proficiência reconhecidos pelo BJCP a partir da pontuação de cada juiz nas provas realizadas pela instituição. Ou seja, não existe simplesmente um “juiz do BJCP”: cada degustador aprovado é classificado dentro de uma categoria, de modo que os vários juízes certificados estão aptos para ocupar diferentes posições no júri de diferentes concursos.

O programa foi criado em 1985 a partir da união entre a American Homebrewers Association (AHA, “Associação dos Cervejeiros Caseiros Norte-Americanos”) e a Home Wine and Beer Trade Association (HWBTA, “Associação de Comércio de Vinho e Cerveja Caseiros”), que teve um importante papel na legalização da produção caseira de cervejas nos EUA, em 1979. No início, o BJCP era fortemente influenciado pela AHA, mas foi se tornando progressivamente independente, culminando em sua consolidação como organismo autônomo em 1995 quando a AHA retirou seu apoio para criar um programa próprio.

Historicamente, portanto, o BJCP e seu guia de estilos estiveram associados a organizações de cervejeiros caseiros. Quando o BJCP se tornou independente da AHA, a diretoria estimava que apenas em torno de um terço de seus juízes era composto de cervejeiros comerciais – os demais eram produtores caseiros. Até hoje, o guia de estilos do BJCP tem como principal função auxiliar a organização de campeonatos de cervejas caseiras, com destaque para o National Homebrew Competition (Competição Nacional de Cervejas Caseiras), realizado anualmente nos EUA desde 1979 (antes do BJCP, ela era organizada pela AHA). Além dele, existem vários outros campeonatos regionais em que o guia de estilos do BJCP é seguido, indo desde pequenos concursos com menos de 100 concorrentes até os quase 7.000 participantes do National Homebrew Competition de 2011. A primeira versão do guia, substancialmente mais sucinta que a atual, foi elaborada em 1997 e foi largamente baseada no “New England Homebrew Guidelines” (Guia para Cervejas Caseiras da Nova Inglaterra), destinado a produtores caseiros.

O cálice sagrado dos cervejeiros 
caseiros: a medalha da National 
Homebrew Competition. 
Fonte: homebrewersassociation.org
A forte vinculação do BJCP com campeonatos de cervejas caseiras é um indicativo de suas características. Cervejeiros caseiros, por definição, produzem em pequena escala e, apesar de poderem ser incrivelmente inventivos em suas receitas, nunca são capazes de atingir um público tão vasto quanto uma cervejaria industrial (mesmo que seja uma micro). Suas criações, enquanto continuam limitadas às panelas, dificilmente poderão consolidar novas tendências e gostos no mercado consumidor. Por isso, cervejeiros caseiros podem criar novas receitas, mas sua capacidade de consolidar novos estilos é muito restrito devido ao parco poder de penetração de suas receitas. Além disso, quando se está aprendendo a fazer cerveja, a capacidade de um cervejeiro caseiro normalmente é medida pela sua competência em recriar estilos tornados clássicos pela indústria. Por exemplo, a capacidade de executar com primor a receita de um estilo difícil, como uma pilsner tcheca tradicional, é uma demonstração de excelência técnica e versatilidade por parte de um produtor caseiro.

O guia de estilos do BJCP

Por tudo isso, o guia de estilos do BJCP é quase que naturalmente mais conservador. Em relação ao guia da Brewers Association, por exemplo, ele segue de forma mais estrita as encarnações industriais tradicionais de cada estilo. Ele inova pouco na inclusão de novos estilos, adicionando-os à sua listagem apenas quando já estão consolidados como tendências da indústria e do mercado e já se tornaram modelos clássicos para emulação por parte dos cervejeiros caseiros. Até por isso, o guia é atualizado apenas a cada 4 ou 5 anos: se um novo estilo conseguiu sobreviver e ampliar seu espaço no mercado de forma consistente ao longo desse período de tempo (que, para o dinâmico mercado microcervejeiro, é quase uma eternidade), pode ser considerado “clássico”. A última atualização do guia do BJCP ocorreu apenas em 2008, e a listagem conta atualmente com 80 estilos diferentes.

A vinculação do guia do BJCP aos cervejeiros caseiros também explica o grande grau de detalhamento de suas descrições de estilos. O guia descreve não apenas os parâmetros gerais, mas discrimina claramente até os componentes aromáticos de cada estilo, separando-os de forma inequívoca em características obrigatórias do estilo e características opcionais. Além disso, descreve os principais parâmetros técnicos (como gravidades original e final, coloração, índice de amargor etc.) e elenca os ingredientes tradicionais do estilo. Tudo isso como forma de auxiliar os cervejeiros caseiros que pretendem avaliar o grau de fidelidade de suas receitas a estilos tradicionais.

Também o fato de o BJCP ser atuante em concursos de cervejeiros caseiros dá o tom da postura esperada de seus juízes. Um juiz do BJCP tem a obrigação de fornecer informações mais detalhadas a respeito do perfil sensorial da cerveja sendo avaliada, bem como de apontar de forma clara os defeitos e, eventualmente, sugerir modificações na receita ou no processo produtivo. Por exemplo, um juiz que se defronte com uma Münchner dunkel que tenha ficado com amargor rasgado ou pronunciado demais pode sugerir uma diminuição no uso de lúpulo de amargor ou, alternativamente, o emprego de uma água com menor teor de sais minerais para ajudar a “limpar” a sensação áspera. Diante disso, o produtor caseiro terá uma orientação técnica qualificada para modificar a receita com liberdade e de acordo com seu gosto.

Críticas mal-dirigidas

Sua cerveja leva tomate, orégano, 
manjericão e alho? Acho melhor 
inscrever na categoria “specialty”...
Fonte: dudefoods.com
Tudo isso deve ser levado em conta quando abrimos o guia do BJCP para orientar nossas degustações. Nas encarnações atuais do guia, o texto sempre apresentará uma descrição detalhada das características comuns do estilo de acordo com suas clássicas encarnações comerciais (invariavelmente listadas ao final), e sempre optará por uma definição mais estrita dos estilos, justamente porque a descrição deve servir para medir a excelência técnica de cervejeiros caseiros em suas tentativas de recriar produtos industriais clássicos. Não faz sentido cobrar do BJCP a inclusão imediata de estilos vanguardistas ou inovadores que ainda não tenham se consolidado. Não faz sentido querer que eles flexibilizem demais a descrição de cada estilo, e nem criticar sua suposta “rigidez excessiva”. E não faz sentido porque tudo isso descaracterizaria a função para a qual o guia é criado.

Alguns críticos do BJCP apontam sua incapacidade de lidar com receitas inovadoras. Mesmo isso é apenas parcialmente verdadeiro: o BJCP possui algumas categorias especiais para receitas que não se enquadram em nenhum outro estilo. Também inclui categorias para cervejas que sigam estilos tradicionais, mas com a adição de outros ingredientes, temperos e elementos de sabor. Tudo isso, evidentemente, precisa estar claramente discriminado pelo concorrente que inscreve sua cerveja num concurso. Num concurso que visa a medir a capacidade de emular estilos tradicionais, ninguém pode esperar vencer a categoria “extra special bitter ale” com uma cerveja aromatizada com cravo – por mais deliciosa que ela seja.

Na próxima parte deste artigo, contarei a história da elaboração do guia de estilos da Brewers Association e falarei sobre suas características. Não perca!

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