domingo, 13 de maio de 2012

Guias de estilo - Epílogo: Os irmãos mais velhos


Assim que comecei a escrever esta série de artigos sobre guias de estilo, já sabia que eu queria que ela terminasse com uma análise da Colorado Indica à luz dos dois guias que analisamos. Foi com um sentimento positivo de surpresa que eu soube do lançamento da mais nova cerveja da Colorado, a Vixnu, enquanto estava no processo de escrita. Trata-se da muito aguardada IPA imperial da cervejaria de Ribeirão Preto, elaborada a partir de uma extrapolação da receita da nossa Indica. A ideia era tentadora: terminar esta matéria falando da Colorado Vixnu em relação à Indica. É o que faremos, pois.

Bebi a Vixnu pela primeira vez no final de 2010, quando ela ainda era chamada simplesmente de Double Indica. Os lamentáveis, mas não inabituais imbróglios burocráticos com o MAPA, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, acabaram adiando o lançamento comercial para 2012. De lá para cá, a receita passou por alguns ajustes, mas o espírito da receita de 2010 ainda se manteve no lançamento comercial.

Como seu nome inicial já prefigurava, ela usa como base a receita da Indica, mas com maior quantidade de ingredientes: mais lúpulo para um aroma e amargor mais intensos, mais malte para um teor alcoólico, corpo e doçura mais proeminentes, e mais rapadura para – bem, para ainda mais brasilidade! O rótulo, com um inusitado urso de quatro braços à moda do deus indiano Vixnu, também segue a mesma linha, exagerando o tom já decididamente lisérgico da Indica.

Fonte: brejas.com
Colorado Vixnu
Aparência: coloração acobreada com tons alaranjados e avermelhados, transparente, com creme persistente, de volume mediano. Muito bonita na taça!
Aromas: como na Indica, um duelo de titãs entre as percepções do lúpulo e do malte/rapadura. O lúpulo é proeminente (como pede o estilo), ostentando uma enorme gama de aromas de variedades norte-americanas: o maracujá predomina e, aliado à doçura, cria uma intensa impressão de mousse de maracujá, acompanhado de capim-cidreira, lavanda, manga, leve apimentado e uma nuance apimentada. Excelente complexidade, muito além do maracujá já classicamente associado ao lúpulo Amarillo. O malte vem com força logo atrás: caramelo intenso, torradas e leve toque tostado/queimado ao final. A doçura do malte e o frescor dos lúpulos se unem criando uma forte impressão de geleia ou compota de frutas. Aparecem ésteres frutados remetendo a banana para arrematar o conjunto.
Paladar: uma forte doçura de geleia e o amargor do lúpulo duelam do início ao fim. O gole começa bem doce na língua, mostra bom amargor, finaliza mais uma vez puxando à doçura maltada e deixa um residual mais amargo e perene na garganta. Ao longo de toda a degustação, ambas as sensações ficam rentes uma à outra, cada qual prevalecendo apenas brevemente sobre o seu contrário.
Sensação na boca: muito denso e viscoso, com uma gostosa e melada sensação de geleia que atenua o aquecimento alcoólico. Até por conta desse corpo acentuado, não tem muita drinkability – é uma cerveja pesada.

Veja aqui a avaliação completa.

Em todos os sentidos, a Colorado Vixnu passa a sensação de ser algo como o “irmão mais velho” da Indica, sendo mais corpulenta, forte e intensa que ela. As mesmas características de nascença, mas todas elevadas alguns graus acima. A mesma alegria e tropicalidade se expressam na convivência do frutado/floral com o caramelado, a mesma indulgência se impõe na forte doçura de geleia de frutas.  Uma transposição perfeita do “espírito” da Indica para o estilo das IPAs imperiais.

Lembro-me de que, quando esta cerveja foi lançada pela primeira vez, eu estava numa fase de descoberta do estilo. Havia acabado de degustar várias IPAs imperiais norte-americanas e não pude deixar de perceber que a da Colorado se diferenciava bastante dos exemplares clássicos do estilo, que apresentam corpo mais leve, sensação mais limpa e doçura bem mais suave. Na época, leviana e apressadamente, julguei essa discrepância como um defeito ou uma espécie de desvantagem da Vixnu. Hoje, percebo que esse é exatamente o charme desta cerveja, seu diferencial em relação ao estilo. É exatamente o que faz com que a Vixnu tenha, em relação às IPAs imperiais, a mesma colocação que a Indica tem em relação às IPAs americanas.

A comparação com uma IPA imperial arquiclássica ajudará a esclarecer isso. Na última parte desta matéria, comparamos a IPA da Colorado com a Blind Pig, da californiana Russian River. Nada mais justo, portanto, que compararmos a Vixnu com o “irmão mais velho” da Blind Pig: a lendária Pliny, the Elder.

Fonte: edurecomenda.blogspot.com
Russian River Pliny, the Elder
Aparência: o líquido mostra coloração alaranjada clara e intensa, com uma opacidade que é comum em cervejas com muito lúpulo (os americanos chamam-na de “hop haze”). A espuma não tem muito volume, e nem tampouco persistência acentuada.
Aromas: uma paulada de lúpulos, com perfil herbal incrivelmente intenso e perfumado acompanhado de cítricos e condimentados em bom equilíbrio. Predomina o herbal remetendo a capim-cidreira, extremamente fragrante, acompanhado de ervas finas, tangerinas, pimenta-do-reino, erva-doce e um tiquinho de grama seca só para dar uma lembrança de rusticidade. A complexidade só não impressiona mais do que a vivacidade desses aromas no nariz e na boca. O malte aparece discretamente com sabor de mel e uma lembrança tostada ao final, ocupando o palco apenas pelo tempo suficiente para preparar a audiência para o show virtuoso dos lúpulos. Há ainda uma certa doçura frutada remetendo a laranja ou abacaxi que amarra bem o frescor lupulado.
Paladar: mais uma vez, o lúpulo é quem comanda o show, mas com um elenco de coadvujantes bem afinado. A doçura do malte pode ser sentida inicialmente de forma discreta, mas suficiente para preparar a boca e a garganta para a intensidade do amargor que vem na sequência. Esse amargor persiste na boca e na garganta, mas mostra-se limpo e gentil, sem aspereza nenhuma. Esta cerveja impressiona especialmente pela forma como o amargor é, ao mesmo tempo, muito intenso e muito bem equilibrado.
Sensação na boca: o corpo é mediano para leve, fácil de beber, mas com agradável textura cremosa que lhe dá riqueza e interesse sem tirar-lhe a drinkability. A sensação alcoólica é diabolicamente ocultada: mal se sente o aquecimento dos seus 8% de álcool. Tudo isso contribui para torna-la perigosamente fácil de beber.

Veja aqui a avaliação completa.

O mais impressionante da Pliny, the Elder é o quanto ela é, ao mesmo tempo, intensa e leve, marcante e fácil de beber. Por ser uma cerveja de estilo “imperial”, extrema, com considerável teor alcoólico, a gente já vai esperando uma porrada nos nossos sentidos. Ao contrário disso, ela se mostra elegante, sóbria, gentil e extremamente redonda. Uma lady. Não é à toa que se tornou um clássico dentro do seu estilo.

Um dado interessante salta à vista quando comparamos cada uma das cervejas da mesma cervejaria. Tecnicamente, a intensidade de amargor das IPAs imperiais é maior do que a das IPAs americanas (65-100 contra 50-70 IBUs, ou unidades de amargor, segundo o guia da Brewers Association). Ou seja, do ponto de vista estritamente quantitativo, a Vixnu e a Pliny, the Elder são cervejas mais amargas do que a Indica e a Blind Pig, respectivamente. Contudo, isso não se confirma no paladar. Na nossa percepção, a Indica mostra uma sensação de amargor maior do que a Vixnu, e a Blind Pig também provoca uma sensação de amargor muito mais acentuada que a Pliny, the Elder. Isso porque, se as IPAs imperiais têm mais amargor, também têm muito mais doçura residual do malte e sensação adocicada do álcool para equilibrar o amargor na nossa percepção. As IPAs americanas, as “caçulas”, podem até ter menos IBUs, mas também são bem mais secas, aumentando a percepção organoléptica do amargor. Fica a indicação: por mais contraintuitivo que possa parecer, se você está procurando uma cerveja mais amarga, aposte nas IPAs (pelo menos no caso dessas duas cervejarias).

Com a Pliny, the Elder, eu aprendi que uma cerveja pode ser extremamente marcante sem ser cansativa, pesada ou impactante. Daí veio meu espanto ao beber a Vixnu pela primeira vez: quando eu estava esperando a leveza, a delicadeza e a elegância da Pliny, the Elder, a Colorado me recebeu festiva e espalhafatosamente com uma sonora saudação e um abraço apertado e caloroso. À moda brasileira, diga-se de passagem. Como se ela me dissesse: “por que escolher entre o amargor e a doçura? por que não se deliciar com tudo ao mesmo tempo?”

Esse abraço caloroso do ursinho de quatro braços ficou na minha memória até março deste ano, quando finalmente tivemos acesso à versão comercial da cerveja e eu decidi reavaliá-la à luz do que estava escrevendo para esta matéria. Só aí que caiu minha ficha de verdade. A doçura indulgente e melada da Vixnu não era um defeito: pelo contrário, ela era justamente sua marca registrada, o seu parentesco de nascença com a Indica, o DNA da Colorado no mundo das IPAs. E com que deleite desavergonhado me entreguei então ao desfrute dessa doçura, sem culpa nenhuma! Se ampliarmos o gráfico da postagem anterior para incluir a Vixnu e a Pliny, the Elder, essa semelhança torna-se mais clara:


As cervejas da Colorado continuam ocupando os quadrantes opostos às cervejas da Russian River no eixo austeridade-alegria. Enquanto a Blind Pig mostra-se uma cerveja austera e de forte impacto, a Pliny, the Elder demonstra mais leveza, mas ainda a mesma austeridade. A Vixnu, por sua vez, repete o mesmo binômio “alegria-impacto” que caracteriza a Indica. Ou seja, a Vixnu não faz senão extrapolar a vocação da Indica, mantendo-se perfeitamente fiel à identidade da cervejaria. Se a Vixnu realmente fosse por um caminho de secura e leveza (como normalmente vemos nos exemplares clássicos do estilo), provavelmente não faria jus à inovação representada pela Indica no mundo das IPAs americanas (como discutimos na parte anterior desta matéria).

Já não estaríamos extrapolando o tema desta matéria, que são os guias de estilo? Na verdade, não. O que as duas cervejas da Colorado nos ensinam é que, se ficarmos excessivamente presos às definições mais ortodoxas dos guias de estilo, podemos deixar de apreciar propostas inovadoras. Ficaremos fossilizados e petrificados. Guias de estilo precisam ser dinâmicos e adequados aos diferentes contextos em que serão usados. Para alguns casos, a flexibilidade da Brewers Association se mostra mais adequada, mas não supera a precisão do BJCP, crucial em outras situações. Ambos são instrumentos fundamentais, mas são como aquelas ferramentas que você precisa aprender a usar com maestria para, num segundo momento, também saber esquecer delas quando apropriado. Ou você quer perder o calor da uma apertada saudação de quatro braços do simpático deus-ursinho da Colorado?

4 comentários:

  1. Maravilhoso e brilhante o post! Fico com água na boca de inveja de você provando essas Imperial IPAs que não encontro em BH de forma alguma. Mudando um pouco de assunto, essa semana provei a Wals Witte, a nova witt na mineira Wals, e digo que vale a experiência! Abraços e parabéns!

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    1. Olá, Leo, tudo bem? Não sabia que a Vixnu ainda não está chegando em BH. É uma pena. Deve ser por conta da cadeia refrigerada de distribuição. Talvez ainda não haja tudo acertadinho para garantir que ela chegue a Minas da forma como deve, mantendo-se resfriada ao longo de todo o processo. Quanto à Pliny, the Elder, realmente ela não é importada para o Brasil, e mesmo nos EUA nem sempre é fácil encontrá-la para venda. Mas certamente vale a pena o esforço de procurá-la (fresca, entenda-se) caso você viaje para lá.

      A Wäls Witte eu tive o imenso prazer de degustar acompanhado pelo Zé Felipe, que me explicou o que eles quiseram fazer com essa receita. Está realmente muito boa; tem a identidade do estilo, mas ao mesmo tempo um perfil de especiarias bem diferente e característico, e um frescor que não encontramos de jeito nenhum nas belgas que aportam aqui! Altamente recomendada!

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  2. Essas americanas eu já sabia que não aportavam aqui. O lance da Vixnu certamente é pela cadeia do frio, mas se a Green Cow chegou aqui refrigerada e ela é feita mais longe e por uma cervejaria menor, tá passando da hora da Vixnu chegar. Abração!

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    1. Olha, eu não sei como a coisa está aí em BH, mas, pelo menos aqui em Sampa, o preço das cervejas da Seasons está alto demais, mesmo considerando a cadeia fria. Eu acho mais interessante que eles consigam elaborar um sistema mais racional, mesmo que demore mais, do que ter um aumento de preço de 100% em relação ao estado de origem.

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