quarta-feira, 23 de maio de 2012

Pegando pó - Parte I: A dignidade de uma cerveja envelhecida


A ideia de guardar garrafas de cerveja – cheias, para bebê-las mais tarde, entenda-se – pode ainda soar estranha a muita gente. Acostumamo-nos a associar a cerveja a uma aura de descontração, festa, imediatez e juventude, a um espírito de carpe diem para o qual vale mais a alegria do agora do que a paciência do amanhã. A ideia às vezes causa espanto. “Não é só o vinho que deve ser envelhecido?”

Como é sabido, a maior parte das cervejas comercializadas por aí (em especial as pilsen levíssimas a que estamos acostumados desde que começamos a beber) devem ser consumidas o mais rapidamente possível depois que saem da fábrica. O tempo ocasiona uma série de reações químicas, em especial as de oxidação, que podem levar a resultados bastante desagradáveis. O lema estampado na embalagem da Budweiser americana – Fresh beer knows better, algo como “cerveja fresca sabe a verdade” – aplica-se bem à vasta maioria das cervejas do mercado.

Alguém falou em
envelhecer bem?
Fonte: blogdocapucho.blogspot.com
Mas, assim como existem alguns seres humanos com a invejável capacidade de acumularem mais charme com o tempo, em vez de perdê-lo, sabemos que algumas cervejas também podem envelhecer com muita nobreza, eventualmente tornando-se mais interessantes do que quando frescas. São as chamadas “cervejas de guarda”. O costume de guardar cervejas não é novo: já no século XVIII, era um hábito inglês produzir uma cerveja extraforte para celebrar o nascimento de um filho e deixá-la engarrafada para ser consumida apenas quando ele atingisse a maioridade.

Uma das experiências mais interessantes que as cervejas têm a nos oferecer é a de sua própria evolução. Assim como os homens, as cervejas se deparam com a inevitabilidade da passagem do tempo. É impossível vencer o tempo, mas a batalha por convertê-lo de inimigo em oportunidade de um crescimento proveitoso é uma espécie de teste a que todos temos de passar para darmos sentido a nossas vidas. Creio que é isso que faz das cervejas envelhecidas uma experiência tão instigante: elas oferecem um vislumbre da nossa própria maneira de lidar com o tempo, e nos mostram que existem meios sutis, astuciosos e belíssimos de dar sentido à sua passagem implacável e irreversível.

Participar ativamente desse processo, montando sua própria adega para envelhecer algumas garrafas para consumo próprio, é uma experiência que recomendo a todo fã de cervejas. Cervejas envelhecidas têm um apelo intrínseco: frutos de um processo particular e paciente de evolução, elas são absolutamente únicas. Você pode beber a cerveja mais cara e mais rara que o dinheiro pode comprar: ainda assim, você sabe que ela só foi sua naquele momento fugaz do consumo. Qualquer um pode ter exatamente a mesma experiência se estiver disposto a gastar o mesmo que você. Uma cerveja que você mesmo envelheceu, por sua vez, é o mais exclusivo dos produtos: ela te acompanhou silenciosamente durante anos, presenciou seus dilemas e seus conflitos cotidianos, resistiu aos seus impulsos de consumi-la precocemente, esteve com você nos altos e baixos, paciente, esperando a hora de juntar-se à sua alegria em um momento aguardado de celebração que talvez tenha requerido anos de esforço pessoal e luta. Algumas garrafas são guardadas já com data certa para serem abertas, como no caso das cervejas inglesas com as quais se comemorava a maioridade dos filhos. Imagine se seu pai tivesse guardado uma cerveja muito especial, desde antes de você nascer, só para dividir com você no seu 18º aniversário. É como se aquela garrafa confidente carregasse dentro dela um pedacinho da sua vida. Não há nada mais exclusivo e pessoal do que isso.

E tem outro fator: não há duas garrafas exatamente iguais de uma cerveja envelhecida. Pequenas diferenças na safra, na fermentação secundária (dentro da garrafa) ou no transporte podem ampliar-se ao longo dos anos. Diferentes condições de acondicionamento também acarretarão alterações sensíveis ao final de anos de guarda. Um grau de diferença na temperatura em que uma garrafa é armazenada ao longo de 5 anos, ou a posição em que ela fica, podem determinar diferenças cruciais. Abrir uma cerveja de guarda é um desafio à sorte: você nunca sabe exatamente o que encontrará. Se esse princípio já vale para boa parte das cervejas refermentadas na garrafa, aplica-se com ainda mais intensidade para cervejas de guarda. Por tudo isso, cervejas de guarda oferecem experiências únicas, exclusivas e fascinantes de degustação.

O Kulminator, na Antuérpia (Bélgica), 
oferece garrafas que estão sendo envelhecidas 
desde os anos 1970!
Fonte: yozo.be
Alguns bares oferecem garrafas envelhecidas para seus clientes – evidentemente, com um certo custo embutido. Às vezes, a especulação chega a um ponto que uma garrafa especialmente cobiçada, envelhecida durante um longo tempo, pode chegar a custar quase 10 vezes o seu valor inicial. Dividir esse preço com amigos é uma das formas mais fáceis de ter acesso a essa experiência. Alguns bares, inclusive, oferecem as famigeradas “degustações verticais” de certos rótulos: ou seja, uma degustação sequencial de várias safras da mesma cerveja, em diferentes pontos de seu envelhecimento. Uma oportunidade e tanto para aprendizado. No Brasil, o tradicional FrangÓ costumava oferecer em sua generosa carta de cervejas degustações verticais da Chimay Bleue e da Gouden Carolus Cuvée van de Keizer Blauw. Na Bélgica, chega a haver bares especializados em cervejas safradas.

O mercado brasileiro ainda tem muito a amadurecer até chegar a esse ponto, inclusive do ponto de vista legislativo. Uma cerveja de guarda também tem data de validade, mas é sabido que ela pode continuar evoluindo de forma positiva muito tempo depois de terminada sua validade nominal. Contudo, da perspectiva da lei, não interessa o quanto a cerveja esteja boa: um estabelecimento comercial não tem permissão para vendê-la após a data de validade nominal estampada pelo fabricante ou pelo importador no rótulo. Assim sendo, a possibilidade legal de degustações verticais em bares, no Brasil, segue limitada talvez a cinco anos, no máximo, no caso de cervejas com validade especialmente longa.

Eu, particularmente, acho que comprar uma garrafa envelhecida por outrem é mais ou menos como beijar a própria irmã. Alguma coisa está faltando. Para mim, a paciência de esperar anos para abrir uma garrafa, o trabalho de seleção dos rótulos, o cuidado com sua adega, tudo isso vai adicionando um significado especial e um valor afetivo às cervejas que você mesmo guarda. Ou que alguém querido se dispôs a guardar para você – acredito que um dos presentes mais legais que um fã de cervejas pode ganhar é uma garrafa que tenha sido envelhecida pela pessoa que o presenteia. É preciso ser muito amigo para se desfazer de uma garrafa que está com você há anos, e isso torna o presente ainda mais especial.

Quando falamos em cervejas no Brasil para além do mainstream das lagers claras tradicionais, tudo ainda é muito novo. Mas eu ainda sonho com uma época em que os cervejeiros não disputem a tapa para saber quem bebeu a cerveja mais cara, mas sim compartilhem com seus amigos querido o prazer de beber garrafas que eles mesmos envelheceram. Se o hábito de envelhecer cervejas em casa fosse mais frequente entre os apreciadores, seria grande a chance de reunir alguns amigos e montar uma bela degustação vertical de algum rótulo, da qual todos sairiam engrandecidos.

Obter essas experiências requer um pouco de paciência e organização, mas não é difícil e nem precisa ser especialmente caro. Nas próximas partes desta matéria, tentaremos entender melhor o que acontece com a cerveja durante o envelhecimento, e veremos algumas dicas práticas a respeito de como montar sua adega de guarda e aproveitar melhor suas experiências com cervejas envelhecidas.

Um comentário:

  1. Aguardo ansioso pelas dicas de como envelhecer cervejas! Estou com uma Ithaca aqui com 2 anos de guarda já, vamos ver até quando vou aguentar para comparar com a que bebi no meu aniversário a 2 anos atrás. Estou de olho numa Van de Keizer 2009 que encontrei com um amigo, a um preço ótimo, para degustarmos também. Abraços!

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