sábado, 23 de junho de 2012

Pegando pó - Parte IV: A seleção dos rótulos


Na primeira parte desta matéria, comentei que degustar uma cerveja envelhecida é uma das experiências cervejeiras mais interessantes e exclusivas que se pode ter. Ainda mais quando foi você mesmo quem envelheceu a bendita garrafa. Não é especialmente complicado conseguir isso; basta tomar alguns cuidados básicos. Nesta e nas próximas partes desta matéria, tentarei fornecer algumas orientações e ideias para quem quer começar a montar sua adega de cervejas pessoal. Já aviso: essas dicas não devem ser encaradas como “absolutas” ou “obrigatórias” – elas só refletem a minha perspectiva sobre o assunto. Afinal de contas, uma das coisas mais interessantes de montar sua própria adega é que você dita as regras.

Comecemos pela primeira parte do processo: a seleção e aquisição dos rótulos. Eis aí talvez a etapa mais frustrante e angustiante do processo – afinal de contas, a coisa resume-se a gastar seu dinheirinho suado para comprar cervejas de alta qualidade que você não irá beber – não por ora, pelo menos. Mas não faz mal: uma boa cerveja de guarda sabe recompensar maravilhosamente aqueles que praticam a virtude da paciência.

1.      Escolha a cerveja certa

Já dissemos isso, mas nunca é demais repetir: nem toda cerveja envelhece bem. Não é só porque você gosta especialmente de uma certa cerveja que ela irá se beneficiar do envelhecimento. Por isso, o primeiro passo na montagem de uma adega de guarda é fazer uma boa seleção dos rótulos que serão envelhecidos.

A presença de borra quase sempre 
indica refermentação na garrafa.
Fonte: homebrewtalk.com

Procure sempre começar com cervejas com teor alcoólico acima dos 7-8%. Cervejas precisam de uma certa robustez para suportarem a oxidação a que estarão sujeitas; por isso, não podem ser muito leves. Mas o álcool não deve ser o único critério. Refermentação na garrafa também ajuda: se a cerveja é engarrafada com o fermento ainda vivo, ele irá ajudar a proteger a cerveja e criar o ambiente químico-físico ideal para o envelhecimento. É fácil checar quando uma cerveja é refermentada na garrafa, pois ela possui uma “borra”, ou seja, aquele “pó” depositado no fundo da garrafa – trata-se justamente do fermento. Com o tempo, o fermento inclusive irá sofrer um processo de autólise (autoconsumo) que, se bem direcionado, pode tornar a textura do líquido mais interessante e adicionar sensações ricas e “carnudas”.


Essas são características que podem ser verificadas só de olhar uma garrafa na prateleira, mesmo antes de abrirmos a cerveja. Mas existem outros fatores mais sutis, e é preciso conhecer a cerveja para reconhecê-los. Privilegie cervejas sensorialmente mais complexas, pois os resultados da oxidação tenderão a ser mais matizados e diversificados, integrando-se melhor ao conjunto. Ésteres, fenóis e álcoois superiores, abundantes em cervejas mais complexas, também entrarão no jogo das transformações químicas de oxidação e ajudarão a gerar um resultado mais interessante no final. Cervejas escuras tendem a gerar resultados mais seguros do que cervejas claras, pois as substâncias oriundas da oxidação integram-se ao sabor caramelado ou de torrefação dos maltes escuros, gerando agradáveis notas amadeiradas ou de couro. Um bom corpo também ajuda no processo, pois a cerveja tende a afinar um pouco depois de alguns anos de guarda.


O lúpulo é outro quesito importante. É interessante procurar por cervejas com boa estrutura de amargor, uma vez que os ácidos-alfa, substâncias oriundas do lúpulo responsáveis pelo amargor das cervejas, também atuam como conservantes naturais. É verdade que a sensação de amargor vai gradualmente diminuir com o tempo, mas o efeito conservante ajudará a manter a cerveja saudável. Contudo, é preciso considerar que o frescor aromático do lúpulo é uma das primeiras características sensoriais a desaparecer com a guarda. Portanto, não é sábio escolher cervejas que dependam justamente do amargor e do aroma do lúpulo, como as IPAs, por maior que seja seu teor alcoólico.

Por fim, existe uma exceção interessante: Brettanomyces – nome científico do gênero a que pertence a maior parte das leveduras selvagens usadas na fabricação de algumas cervejas. Brettanomyces são organismos dominantes e muito resistentes, o que significa que sua presença na cerveja impede por muito tempo o desenvolvimento excessivo de outros organismos nocivos. Além disso, são leveduras que sobrevivem por longo tempo e continuam adicionando mais acidez e mais aromas ao longo dos anos. Cervejas com Brettanomyces, como as sour ales ou as lambics belgas, costumam ser boas candidatas à guarda, mesmo tendo teor alcoólico inferior a 7%.

Alguns estilos são curingas: barleywines, old ales com alto teor alcoólico, Russian imperial stouts, Belgian dark strong ales e gueuzes são classicamente indicadas para guarda. Mas convém lembrar que nem todas as cervejas pertencentes a esses estilos serão boas candidatas ao envelhecimento: algumas têm chances melhores do que outras de se saírem bem. Por exemplo, por mais que as Russian imperial stouts tenham álcool, amargor, corpo e coloração adequadas à guarda, se estivermos falando de um rótulo especialmente centrado no frescor do aroma de lúpulo (penso na Bodebrown Perigosa Imperial Milk Stout, por exemplo), é preciso saber que essa característica positiva irá se perder com a guarda; portanto, outra cerveja do estilo pode oferecer uma alternativa mais interessante.

2.      Compre em quantidade

Um dos baratos de degustar cervejas de guarda “a sério” é observar a evolução de uma mesma cerveja ao longo do tempo. Obviamente, não estou falando de abrir a garrafa, tomar um pouquinho e guardar de novo para beber o resto depois. Refiro-me à possibilidade de beber a mesma cerveja em diferentes estágios de seu envelhecimento, observando suas transformações progressivas. É espantoso o quanto uma cerveja de guarda pode se transformar de um ano para o outro, mesmo no caso daquelas cervejas que têm estrutura para suportarem mais de uma década de adega.

Claro que isso é impossível caso você tenha adquirido apenas uma garrafa de certa cerveja – a não ser que você organize coletivamente uma degustação vertical com outros amigos que, por coincidência, tenham garrafas da mesma cerveja, mas de outras safras. O melhor é que você mesmo tenha um certo número de garrafas do mesmo rótulo, para poder abri-las em diferentes momentos de seu desenvolvimento.

OK, estou falando em 4-6 garrafas, 
mas cada um faz como quer...
Fonte: thecampuscompanion.com
Portanto, pode ser interessante comprar algumas garrafas de um mesmo rótulo para adegá-las. Quando invisto em uma cerveja nova para minha adega, uma que eu nunca tenha guardado antes mas que tenha bom potencial para guarda, normalmente procuro comprar algo como 4 ou 6 garrafas – ou um número menor caso o resultado seja menos seguro. A verdade é que nem sempre tenho dinheiro para tanto, mas prefiro comprar uma variedade menor de rótulos para que eu possa ter uma quantidade razoável de garrafas guardadas. Isso me permitirá observar a evolução de minhas cervejas, digamos, ao longo de 10 anos ou até mais. Guardar cervejas pode facilmente se converter em um projeto de longo prazo.


Até por isso, pode ser uma boa ideia começar com uma seleção de rótulos de preço mais acessível. Algumas pessoas acreditam que apenas certas cervejas “muito especiais” merecem ser envelhecidas, normalmente rótulos caros e prestigiados. Seu alto preço impede, contudo, que essas cervejas sejam adquiridas em quantidade suficiente para acompanhar sua evolução. O resultado é que o aficionado acaba com apenas uma garrafa em sua adega, e precisará determinar um período arbitrário de tempo antes de abri-la.

Não nego que possa ser interessante beber certas cervejas muito especiais envelhecidas. Eu mesmo tenho cervejas caras, do calibre da Eisenbahn Lust Prestige ou da Harviestoun Ola Dubh 40, pegando pó em minha adega. Apenas uma garrafa de cada, pois estou bem longe de ser milionário. OK, também é legal. Mas uma parte da graça de envelhecer cervejas é poder acompanhar o processo de sua evolução – e comprar em quantidade é a forma mais segura de conseguir isso.

3.      Arrisque-se

Como eu disse, existem estilos e até mesmo rótulos que são verdadeiros clássicos de guarda. Barleywines, por exemplo, são tradicionalmente indicadas para guarda. Alguns produtores inclusive aconselham que suas cervejas sejam guardadas por algum tempo antes de serem abertas, como ocorre com certos vinhos. Por exemplo, a cervejaria australiana Coopers, no rótulo de sua Extra Strong Vintage Ale, não estampa uma data antes da qual é melhor consumir a cerveja (o famoso “best before”, que equivale à nossa data de validade), mas sim uma data depois da qual a cerveja fica mais interessante (“best after”). Outros produtores, mais sutis, estampam o ano da safra na embalagem, sugerindo a possibilidade de guardá-la para beber alguns anos depois.

Chimay Bleue, Gouden Carolus Cuvée van de Keizer Blauw, 3 Floyds Dark Lord, Fuller’s Vintage Ale, a finada Thomas Hardy’s Ale, todas essas são clássicos de guarda. Claro que facilita o fato de o rótulo dessas cervejas estampar o ano de produção, permitindo o controle do tempo de guarda. Mas, quando estamos montando nossa própria adega, é interessante experimentar e sair dessas “fronteiras seguras”. Arrisque-se e verifique o que pode acontecer com outros rótulos e mesmo com outros estilos. Há inúmeras cervejas tão adequadas para guarda quanto as que elenquei acima, e outras tantas que podem até não terem estrutura para suportarem tanto tempo, mas que irão amadurecer admiravelmente durante 3 ou 4 anos.

É interessante inclusive verificar o que acontece com cervejas de estilos normalmente pouco indicados para guarda. Por exemplo, eu tenho algumas garrafas da Eisenbahn Weizenbock em minha adega. É um rótulo indicado para guarda? Na verdade, não, pois ele não tem estrutura de amargor o bastante para suportar longos períodos de guarda. Mas isso não me impede de experimentar e ver como ela se desenvolve, digamos, ao longo de 2 ou 3 anos. Claro que não espero que ela ainda se saia bem depois de 10 anos na garrafa, mas posso me deliciar com as primeiras etapas do processo.

Para ser sincero, se você for louco e aficionado o bastante, pode até adegar cervejas francamente inadequadas para guarda só para ter a experiência “didática” de ver, em graus absurdamente intensos, como a oxidação pode afetar negativamente uma cerveja. Eu, por exemplo, tenho uma Pilsner Urquell que já venceu há mais de dois anos. Precisarei de forças para encará-la.

Às vezes a gente espera uma coelhinha e tudo 
o que consegue é o Hugh Hefner. Acontece.
Fonte: holytaco.com 

Claro que existe o risco de o resultado não ser tão satisfatório. Mas, no fim das contas, sempre existe esse risco quando se guarda uma cerveja. Não encare isso de forma negativa: esse risco é exatamente o charme de envelhecer cervejas! Com o tempo, e depois de algumas tentativas frustradas, você vai conseguir identificar até que momento você considera positiva a evolução de cada cerveja, e não vai mais precisar deixar nenhuma garrafa “passar do ponto”.


4.      Prestigie rótulos nacionais

A última dica desta matéria é quase um apelo: prestigie as cervejas brasileiras. Por vários motivos. Em primeiro lugar, porque cervejas de guarda clássicas, como a Gouden Carolus Cuvée van de Keizer Blauw, são consumidas ao redor do mundo todo; todo mundo conhece, todo bar que oferece degustações verticais tem. Uma cerveja brasileira envelhecida oferece uma oportunidade de degustação muito mais exclusiva. Em segundo lugar, porque as cervejas brasileiras nos oferecem a possibilidade de adquirir o produto em seu máximo estado de frescor, sem deixar que condições adversas de acondicionamento e transporte prolongados interfiram no envelhecimento da garrafa. Por último, porque sabemos que as cervejas nacionais, cada vez mais, figuram entre as melhores do mundo. Por que nos privarmos de observar sua evolução? E mais: se nós brasileiros não fizermos isso, quem é que fará?

Ao final dessas dicas para montar e aproveitar sua adega de cervejas, elencarei algumas sugestões concretas, ou seja, uma lista de rótulos que me parecem especialmente interessantes para começar a montagem de uma adega de guarda – a partir desses critérios que indiquei aqui. Por ora, sigamos com nossas orientações. Na próxima parte desta matéria, falaremos sobre as condições ideais de guarda e armazenagem. Não perca!

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Pegando pó - Parte III: Outros efeitos do envelhecimento


Na parte anterior desta matéria, vimos como a oxidação afeta as cervejas durante o processo de envelhecimento, adicionando alguns elementos negativos e outros que podem ser muito positivos e interessantes, dadas as condições favoráveis. Mas não para por aí. Todas as características da cerveja são afetadas pelo envelhecimento. Algumas coisas se adicionam – como os aromas de oxidação –, mas outras se perdem. Vejamos alguns desses outros efeitos.

O lúpulo e o envelhecimento

Há coisas que o tempo nos tira com muita rapidez!
Fonte: uol.com.br
O tempo é inimigo do lúpulo. Via de regra, os primeiros elementos a desaparecer de uma cerveja são alguns aromas de lúpulo. Uma cerveja altamente dependente do aroma de lúpulo, como uma IPA, perde muito do seu charme depois de algum tempo de engarrafamento, mesmo que ainda esteja dentro do prazo de validade. Todo fã de IPAs pode ver a diferença entre uma garrafa que acabou de sair da fábrica e foi bem acondicionada e uma outra que foi comprada em promoção no supermercado, numa prateleira quente e exposta à luz, quando a validade já estava quase acabando. E não é só no aroma que se sente a diferença: o amargor de lúpulo, embora mais perene, também se dissipa com o tempo, tornando-se mais gentil e suave. Cervejas envelhecidas normalmente tendem mais à doçura do que ao amargor (embora sejam mais secas, como veremos).

Claro que isso pode ser ruim em alguns estilos, como nas mencionadas IPAs. Aliás, algumas pessoas guardam garrafas de IPAs imperiais acreditando que, por conta do seu alto teor alcoólico e do alto amargor, elas envelheceriam bem. Contudo, o que acontece é que elas acabam perdendo todo o seu charme, que estava nos lúpulos – justamente os primeiros a dar adeus no jogo do envelhecimento. Mas esse efeito também pode jogar a favor de algumas cervejas e estilos, aprofundando o perfil rico e adocicado dos maltes. Essa, aliás, é outra característica do envelhecimento: depois de algum tempo, o sabor do malte tende a se tornar mais rico e macio. Menos fresco, mas mais arredondado e assertivo.

Fermento e autólise

Outra transformação importante ocorre com o fermento. No caso de cervejas refermentadas na garrafa, o fermento (composto por células de leveduras) sai da cervejaria em estado latente, de dormência. Mas ele continua vivo e ativo, e vai lentamente transformando a cerveja. Do que vive uma levedura? De açúcares, correto? Isso significa que essas leveduras vivas continuam consumindo açúcares residuais da cerveja, mas em ritmo muito mais lento, até esgotarem as fontes de alimento disponíveis.

A única diferença é que as leveduras
não precisam sair da cama.
Fonte: inspiredfitstrong.com
Ora, sabemos que os açúcares residuais são em grande medida responsáveis pelo corpo da cerveja. Como consequência, uma das coisas que pode acontecer a uma cerveja de guarda é ela “afinar” ligeiramente, ou seja, perder corpo e tornar-se um pouco mais seca à medida que seus açúcares são consumidos. Às vezes, essa perda de corpo não é sentida como “afinamento” devido à licorosidade que o envelhecimento traz. Além da perda de corpo, o que mais ocorre quando uma levedura consome açúcares? Ela os converte em álcool, não é? Isso também significa que, em teoria, o teor alcoólico de uma cerveja de guarda aumenta com o tempo. A rigor, isso é verdade, mas esse aumento é muito sutil na maioria dos casos – não espere que uma cerveja que originalmente tenha 8% acabe com 10% depois de alguns meses!

E quando os açúcares se acabam? O fermento começa então a se autoconsumir, num processo biológico conhecido como autólise. A autólise pode ser extremamente problemática, dependendo da maneira como ocorre. O traço mais característico de autólise precoce é uma substância conhecida como ácido caprílico, que, se estiver presente em concentração elevada, exibe um desagradável aroma de sabão em barra, lembrando ainda queijo de cabra ou “copo mal lavado”. Para piorar, o caprílico – este vilão – ainda acentua desagradavelmente o amargor e raspa na garganta. Em pequenas quantidades, porém, o caprílico pode adicionar um toque levemente mineral (lembra areia) ou ainda ressaltar o aroma floral do lúpulo. Com muita moderação.

Porém, se a autólise ocorre de forma controlada e gradual, outras substâncias mais agradáveis são liberadas. Estudos feitos com vinhos espumantes – caracterizados pelo processo de autólise das leveduras na garrafa, similarmente ao que ocorre com cervejas de guarda – mostram que, durante a fase da autólise, as leveduras liberam ésteres com aromas frutados e álcoois superiores com aromas florais. São aromas já presentes na cerveja, que se intensificam num primeiro momento da autólise – sobretudo os álcoois superiores, quimicamente mais estáveis que os ésteres. Mais tarde, a autólise libera manoproteínas e aminoácidos (“fragmentos” de proteínas) que enriquecem a textura do líquido e que podem, com o avanço do tempo, desenvolver um gosto “carnudo” conhecido como umami, presente no glutamato monossódico (o tradicional “Ajinomoto”), em carnes vermelhas, no queijo parmesão e em molho shoyu. Cervejas muito antigas podem até ter uma lembrança do aroma de molho shoyu, que é agradável se não for forte demais.

A partir de que momento essas coisas começam a ocorrer? Estudos feitos com vinhos mostram que a autólise começa por volta do 9º mês após o engarrafamento. Mas os efeitos só começam a se intensificar muito tempo depois, às vezes depois de um ano. No caso de cervejas, que normalmente não possuem pH tão baixo e nem teor alcoólico tão alto quanto espumantes, a autólise pode começar mais cedo. De qualquer forma, a partir de um ano de guarda, esses traços já devem começar a se evidenciar.

Outros efeitos secundários

As reações químicas de envelhecimento ainda têm outras nuances mais específicas. Ésteres, fenóis, álcoois superiores, tudo isso continua se transformando com o tempo, de formas às vezes imprevisíveis. De modo geral, os ésteres (substâncias com aroma frutado lembrando essência de frutas) se convertem em álcoois superiores, mais estáveis quimicamente. Por isso, o forte aroma frutado de fermentação, especialmente intenso quando as ales estão jovens, pode ir se atenuando aos poucos.

Isso inclusive explica por que algumas cervejas nacionais, especialmente as de tradição belga, parecem tão mais frutadas do que outras estrangeiras do mesmo estilo: em muitos casos, é o frescor das nacionais que explica essa diferença. Com a longa viagem e espera nos portos, muitas estrangeiras acabam tendo essa característica um pouco atenuada. E o que os tais álcoois superiores, que substituem os ésteres, fazem com a cerveja? Existem vários tipos de álcoois superiores, alguns de aroma “quente” e agressivo, mas outros lembrando rosas, perfume, mel e até mentol.

Hm... Preciso parar de comer tanto bacon.
Já estou começando a alucinar.
Fonte: billybrew.com
Fenóis também se convertem em outras substâncias, às vezes gerando resultados inusitados. Por exemplo, o 4-vinil-guaiacol, responsável pelo típico aroma de cravo das cervejas de trigo alemãs e de muitas ales belgas, tende a se converter em guaiacol, outro fenol, mas com aroma defumado. Esse toque de defumação não advém de maltes defumados, como ocorre com as Rauchbiere, mas de transformações químicas dos compostos fenólicos.

Em suma, existe um imenso mundo de transformações sensoriais a que as cervejas estão sujeitas ao longo do processo de envelhecimento. É preciso conhecer bem essas mudanças para podermos entender por que certos rótulos funcionam bem para guarda, e outros, nem tanto. Claro que a interação entre todas essas transformações vai depender intimamente das condições de acondicionamento. Por isso é que eu disse que duas cervejas envelhecidas podem ter sido idênticas ao sair da fábrica, mas raramente continuarão idênticas depois de 2 ou 3 anos se não forem acondicionadas de forma idêntica. Toda a magia de degustar cervejas de guarda, aliás, reside nessa surpresa.

Nas próximas partes desta matéria, veremos algumas dicas práticas sobre como escolher suas cervejas de guarda, como estocá-las adequadamente e – claro! – como degustá-las. Não perca!

domingo, 3 de junho de 2012

Pegando pó - Parte II: O admirável outono da oxidação


Antes de discutirmos aspectos específicos da montagem e cuidados com uma adega de guarda, vale a pena tentarmos responder a uma pergunta básica que deve orientar nossa escolha de rótulos e nossas degustações de cervejas de guarda: objetivamente, o que acontece com uma cerveja durante o processo de envelhecimento?

A oxidação como vilã

Se a oxidação faz isso com um navio, 
imagine o que pode fazer com a sua cerveja!
Fonte: wallpapers.net

Desde o instante em que uma cerveja é envasada, ela começa a sofrer uma série de transformações químicas dentro da garrafa ou lata. Nem todas essas transformações são positivas – aliás, como vimos, a maior parte delas prejudica nossas queridas cervejas. O frescor do aroma se perde, alguns compostos especialmente instáveis se convertem em outras substâncias, e de forma geral a cerveja passa por um processo de oxidação – ou seja,  de transformação de suas substâncias em contato com o oxigênio que existe no pequeno espaço de ar acima do líquido. “Mas aquele pedacinho de ar no gargalo é tão pequenininho!” É, mas o estrago que ele causa pode ser considerável – assim como é considerável o potencial de amadurecimento que ele traz a uma cerveja de guarda.


Portanto, o grande protagonista do processo de envelhecimento é a tal oxidação. Normalmente, ela se manifesta sensorialmente de forma negativa. Uma das substâncias químicas produzidas em maior escala pelas reações de oxidação em cervejas é conhecida pelo nome químico de trans-2-nonenal. Esse composto químico extremamente comum, quando presente acima de certa concentração, dá à cerveja um gosto característico e desagradável de papel ou papelão molhado, além de gerar uma incômoda sensação de raspar na garganta. Esses elementos são reconhecidos como o indício mais seguro de oxidação em uma cerveja, e normalmente empobrecem seu desempenho sensorial – motivo pelo qual os fabricantes e revendedores de cerveja normalmente tomam todos os cuidados possíveis para retardar a oxidação.


Outra sensação negativa tradicionalmente associada à oxidação é o famigerado gosto e aroma metálico que encontramos com frequência em várias cervejas. Há muita gente que associa imediatamente essa sensação metálica às cervejas em lata. Desde já, é preciso derrubar esse mito: o revestimento interno de uma latinha é tão inerte quando o vidro, e não transfere gosto nenhum à cerveja. Se não é da lata que vem o gosto metálico, de onde é? Às vezes, trata-se de um indício de contaminação da cerveja por contato com equipamentos metálicos durante o processo de fabricação. Também pode advir de problemas na vedação, ocorrendo oxidação das tampinhas e transferência do gosto para o líquido. Porém, o mais comum é que o "metálico" seja indício de oxidação do líquido - mais especificamente, oxidação de compostos lipídicos oriundos dos grãos usados na receita. Como o milho contém maior concentração de lipídios do que o malte de cevada, o problema se torna mais frequente em cervejas que levam milho na composição, como as frágeis American lagers e algumas ales belgas menos alcoólicas - em especial quando não recebem o cuidado necessário no transporte e armazenamento.


A oxidação como aliada

Contudo, nem sempre a oxidação precisa ser negativa. O trans-2-nonenal é especialmente desagradável e bruto quando se mistura ao sabor de maltes mais frescos e delicados, como os de baixo grau de torrefação. Ou seja: em cervejas mais claras, especialmente nas de sabor mais delicado, essa característica tem mais chances de comprometer a degustação. Em cervejas com forte presença de sabores caramelados e tostados, o sabor de oxidação pode acabar sendo mascarado, ou pode até mesmo se manifestar de formas mais interessantes, lembrando madeira, palha, couro ou mesmo vinho Madeira, enriquecendo a paleta de sabores do malte. O que era um vilão transforma-se em aliado, nesses casos.

Vinho do Porto, agora sim! Ligeiramente mais 
promissor do que o navio enferrujado!
Fonte: ifood.tv
O sabor de papelão não é o único indício de oxidação que pode se tornar charmoso, dadas as condições favoráveis. Também é frequente que cervejas envelhecidas desenvolvam um aroma licoroso e adocicado que lembra vivamente vinho do Porto, remetendo ainda a ameixas secas em calda. Esse é um traço típico das grandes cervejas de guarda, e normalmente leva mais tempo para se desenvolver do que o trans-2-nonenal, mas enobrece bastante o aroma. É comum que identifiquemos esse aroma em algumas Belgian dark strong ales, mesmo com pouco tempo de envelhecimento. Às vezes, ele se desenvolve ainda dentro da validade nominal da cerveja, de modo que não é raro identificarmos essa característica em uma garrafa recém-adquirida – ainda mais se levarmos em conta o quanto uma cerveja belga demora para sair da Europa e chegar até nossas mãos.

Outra substância tipicamente associada ao processo, mas muito menos frequente, é conhecida como benzaldeído, e tem um aroma e sabor entre o terroso e o mineral, lembrando vivamente amêndoas cruas ou marzipã. Trata-se de uma característica bastante charmosa e positiva, se não estiver sobrepujando as demais. Em alguns estilos, inclusive, é um traço típico, como ocorre em muitas cervejas feitas com adição de frutas e nas lambics envelhecidas. No caso das cervejas com frutas, inclusive, o aroma amendoado equilibra de forma interessante a doçura das frutas e contribui com a complexidade geral. Cervejas de guarda também podem desenvolver esse delicado aroma, especialmente no caso de cervejas de perfil de maltes mais delicado, com coloração mais clara. Estilos como bières brut, por exemplo, que usam como base Belgian golden strong ales envelhecidas durante alguns meses, podem desenvolver essa característica.

Todos esses são traços típicos de oxidação. Quando um degustador experiente fala que identificou “oxidação”, na maior parte dos contextos (em especial quando não está falando em cervejas envelhecidas), ele está se referindo especificamente ao gosto de papelão característico do trans-2-nonenal, ou ao gosto metálico advindo as oxidação lipídica. Mas, nas cervejas de guarda, o termo “oxidação” também pode fazer referência a essas manifestações mais interessantes e agradáveis do processo de envelhecimento. Madeira, couro, vinho do Porto, ameixas em calda, amêndoas, mineral, tudo isso pode estar incluído no pacote denominado “oxidação”.

Contudo, o envelhecimento de uma cerveja não se limita a isso: várias outras transformações químicas alteram sensorialmente o produto ao longo do tempo. Na próxima parte desta matéria, veremos algumas das principais alterações esperadas em uma cerveja de guarda além desses traços tipicamente associados à oxidação.