quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Pegando pó - Parte VIII: Envelhecimento a jato


Se você está acompanhando desde o início esta matéria sobre cervejas de guarda, já está mais do que ciente de que maravilhosas surpresas o tempo pode acrescentar a uma boa cerveja com perfil para guarda. O problema, obviamente, é esperar esse tempo todo. Sim, existem alguns bares que oferecem certos rótulos envelhecidos, mas a seleção é restrita, ainda mais no Brasil. Será que não existiria alguma espécie de “atalho” para chegar logo a esse paraíso de sabores e aromas da maturidade cervejeira?

Mais ou menos como O curioso caso de Benjamin 
Button. Sem o rejuvenescimento, é claro.
Fonte: http://cv.uoc.edu
Felizmente para os apressadinhos, existe! Algumas cervejarias fazem o serviço de deixar suas cervejas envelhecerem para que cheguem a nós, consumidores, já com essas tão desejadas características. Perfeito para saciar aquela vontade súbita de uma cerveja madura, e perfeito também para quem quer primeiramente saber o que esperar de uma cerveja envelhecida antes de decidir se vai investir na montagem de uma adega.

Na verdade, as cervejarias possuem certos recursos para explorar as possibilidades do envelhecimento que são inacessíveis para nós, meros apreciadores. Maturar cervejas longamente em barris de madeira, experimentar com misturas de cervejas de diferentes graus de envelhecimento, intervir no processo de autólise, obter formas de oxidação induzida antes do engarrafamento – tudo isso é possível para uma cervejaria com vontade de experimentar com a maturação estendida de seus produtos.

O envelhecimento pode até fazer parte de uma tradição consolidada. Assim como não existe vinho do Porto sem oxidação do vinho, existem alguns estilos cervejeiros tradicionais que dependem intimamente dos processos de autólise e oxidação para obterem suas características sensoriais típicas. Em outros casos, essas características podem advir de inovações de caráter experimental. Vejamos, pois, algumas cervejas em que você poderá descobrir os fascínios do envelhecimento sem ter de esperar.

Ode à madeira

Os imponentes tonéis de madeira, denominados foeders 
em flamengo, usados pela cervejaria Rodenbach.
Fonte: belgianbeerspecialist.blogspot.com
Houve um tempo, antes da introdução dos tanques de aço nas grandes cervejarias industriais, em que a maior parte das cervejas era maturada em tonéis de madeira. Hoje em dia, essa técnica tradicional tem sido resgatada por microcervejarias para a fabricação de receitas inovadoras e fascinantes. Mas o que a madeira tem a ver com envelhecimento de cervejas? Tudo.

A madeira potencializa os efeitos do envelhecimento de três principais maneiras. Em primeiro lugar, ela é um material mais poroso do que o aço inoxidável usado para a maturação da maioria das cervejas comerciais. Isso significa que a penetração de oxigênio no líquido é maior, o que potencializa os processos de oxidação mesmo sem expor a cerveja ao ar. Além disso, essa porosidade resulta em pequenas ranhuras na madeira, habitadas por microorganismos como bactéricas e leveduras selvagens. Com o tempo, a complexidade de uma cerveja vai sendo incrementada com a sutil contribuição desses organismos.

Por fim, a madeira em si adiciona novos sabores e aromas à cerveja. As madeiras possuem compostos químicos que, com o tempo, são transmitidos à cerveja, resultando em aromas e sabores amadeirados que complementam a oxidação. Além disso, existe uma substância chamada lignina, presente em boa concentração em várias madeiras, que reage com o álcool e se transforma em vanilina. É isso mesmo que você está pensando: aroma de baunilha. Por fim, é preciso considerar que os barris usados na produção de bebidas recebem diversos tratamentos para acelerar a troca de aromas e substâncias com a bebida. Um dos métodos mais comuns consiste em queimar a parte interna do barril, o que pode resultar em aromas e sabores tostados sendo transmitidos à bebida.

Cervejas que têm boa estrutura de guarda e que maturam longamente em barris de madeira, portanto, ganham muito em complexidade, seja pelos aromas típicos da madeira, seja pela oxidação, seja pela contribuição de outros microorganismos ao processo. Um exemplo eloquente que podemos citar no mercado brasileiro é a linha Ola Dubh Special Reserve, da cervejaria escocesa Harviestoun. Todos os produtos da linha são cervejas escuras de 8% de álcool que maturam em barris de carvalho usados anteriormente para a produção do uísque Highland Park. O que varia é o número de anos que o uísque ficou dentro do barril antes da produção da cerveja. Toda a linha Ola Dubh Special Reserve apresenta excelente complexidade de aromas, misturando traços de maltes torrados, frutas, oxidação, madeira e a presença do uísque.

Fonte:
bardojota.blogspot.com
Dentre as cervejas que tomei da linha, a Ola Dubh Special Reserve 18 me pareceu exibir talvez com maior clareza traços de oxidação lembrando couro, madeira e palha. Essa característica se mistura de forma acolhedora e harmoniosa a aromas de malte torrado, caramelo, leve frutado lembrando bolo de frutas e um lúpulo apimentado e terroso, bem inglês – além, é claro, das sensações de madeira, uísque e defumado advindas do barril. Tudo muito bem equilibrado, mas o degustador atento poderá reconhecer um pouco do charme do envelhecimento enriquecendo esse mosaico de sabores e aromas. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Old ales: envelhecimento por tradição

As cervejas Ola Dubh Special Reserve são categorizada dentro de um estilo bastante abrangente conhecido como old ales, que têm especial interesse para nós. Trata-se de um estilo cervejeiro de origem britânica que admite uma ampla gama de variações, haja vista a variação de teor alcoólico – os principais guias de estilos admitem um teor alcoólico entre 6% e 9%. O que unifica a maior parte dessas cervejas é que elas passam por um processo de maturação com leveduras e de envelhecimento que pode chegar a durar anos em alguns casos. Isso lhes dá uma maior complexidade aromática, sobretudo no perfil frutado, de álcoois superiores e, em alguns casos, de oxidação.

Algumas old ales são produzidas por blendagem, ou seja, por meio de um processo de mistura de cervejas jovens e envelhecidas. Geralmente, a cervejaria produz uma cerveja robusta, de alto teor alcoólico, com boa estrutura para guarda, e a matura por vários meses. Depois disso, produz uma pale ale ou brown ale fresca, mais leve. O que vai para a garrafa é uma mistura da cerveja fresca com uma porcentagem da poderosa cerveja envelhecida.

Fonte: pritchardmedia.me
No Brasil, um ótimo rótulo que exemplifica esse grupo é a Morland Old Craft Hen, produzida pela cervejaria inglesa Greene King. Com 6.5% de álcool, essa cerveja é um blend de uma ale forte maturada durante meses em barricas de carvalho com uma pale ale jovem e fresca, e o resultado combina do melhor dos dois mundos. Um invejável frescor de maltes e lúpulos, com sugestões de nozes, caramelo, chocolate, pimenta, terroso e floral, combina-se com frutas vermelhas e passas e com traços da maturação em carvalho: baunilha, mel, madeira e até uma sugestão acética, lembrando queijo. Tudo bastante suave, bem equilibrado, com corpo leve, fácil de beber. Ou seja: uma cerveja que combina a complexidade da maturação estendida em madeira com o frescor e a drinkability. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Bières brut: controlando a autólise

Já falamos longamente sobre bières brut neste blog. Aproveito o momento para refrescar o conhecimento de meus leitores fieis e apresentar um pouquinho do estilo aos que porventura tenham conhecido este blog mais recentemente.

O que as bières brut têm a ver com envelhecimento? Uma parte essencial do processo produtivo das cervejas deste estilo nascente é a refermentação na garrafa com leveduras de vinhos espumantes, seguida de uma longa maturação que pode durar até um ano. Durante esse processo, as leveduras começam a entrar em autólise e a cerveja começa a sofrer os efeitos da oxidação. O pulo-do-gato que caracteriza o estilo é justamente o fato de que as fases finais do processo (a remoção e a expelição) permitem que o produtor remova as leveduras da garrafa, interrompendo os processos de autólise de leveduras antes que eles comecem a adicionar características desagradáveis à cerveja.

Fonte:
eisenbahn.com.br

Um exemplo de bière brut em que os traços de envelhecimento são especialmente notáveis é a brasileira Eisenbahn Lust Prestige. Com 11.5% de álcool, a cerveja matura durante um ano na garrafa antes da remoção das leveduras. Esse breve, mas decisivo período de envelhecimento lhe garante intensos aromas de rosas e abacaxis frescos, ao mesmo tempo em que adiciona aromas de mel e traços oxidativos minerais, terrosos e de amêndoas cruas. Um demonstrativo eloquente de que o envelhecimento, se bem controlado, pode contribuir também com cervejas delicadas e frescas. (Clique aqui para ver a avaliação completa; os interessados no estilo podem clicar aqui para ter acesso a um comparativo entre 5 diferentes rótulos)

Gueuzes: a domesticação das leveduras selvagens

Falamos anteriormente que o envelhecimento pode jogar a favor de cervejas produzidas com leveduras selvagens do gênero Brettanomyces. Existe um estilo cervejeiro tipicamente belga que se aproveita generosamente dessa possibilidade: as gueuzes. Um subgrupo dentro das tradicionais lambics, cervejas produzidas por fermentação espontânea na região de Bruxelas, na Bélgica, as gueuzes são o resultado de um blend de lambics jovens e envelhecidas em cave.

Toda lambic tradicional possui uma acidez e adstringência marcantes advindas da ação das leveduras selvagens – além dos exóticos aromas produzidos por esses microorganismos, normalmente descritos como “animais” (couro ou sela de cavalo), e que também lembram vinhos espumantes. Essa forte acidez pode ser um pouco assertiva demais nas lambics jovens, mas tende a se arredondar e se tornar mais elegante com o tempo. Os sofisticados aromas fenólicos produzidos pelas leveduras selvagens também se intensificam com o tempo. Por isso, é comum que os produtores de lambics misturem lambics envelhecidas com lambics jovens. O resultado, depois de uma refermentação na garrafa, são as gueuzes. Como elas possuem uma porcentagem, por vezes expressiva, de cervejas envelhecidas, um dos traços comuns das gueuzes é o aroma mineral e terroso de amêndoas cruas advindo da oxidação (benzaldeído).

Fonte: snooth.com
O processo é tão tradicional na Bélgica que existem produtores de gueuzes que nem sequer produzem a cerveja, apenas compram as lambics de diferentes produtores e trabalham com o envelhecimento e a blendagem das diferentes cervejas. Temos lastimavelmente poucas gueuzes no mercado nacional (ao menos para mim, que sou um apreciador do estilo), mas um bom exemplar é a Boon Geuze Mariage Parfait. Com elevado teor alcoólico de 8%, esta gueuze apresenta, ao lado dos traços animais e vínicos típicos do estilo, aromas apimentados e traços terrosos e minerais lembrando amêndoas cruas, advindos da oxidação. A acidez é intensa e seca, mas refrescante, com alguma doçura inicial e uma sensação salgada considerável. O final é bem adstringente, possivelmente devido aos taninos extraídos dos tonéis de madeira. Ótima representante do estilo; é uma pena que o preço não permita o consumo muito frequente. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Experimentos com oxidação induzida

A oxidação em cervejas de guarda adiciona elementos bastante positivos ao perfil sensorial da cerveja. Mas, justamente porque essas cervejas possuem estrutura para suportar longos períodos de guarda, esses elementos podem demorar bastante para se desenvolverem. A maturação estendida em madeira é o processo mais tradicionalmente usado para potencializar a oxidação, mas outras cervejarias mais ousadas e inovadoras tentaram desenvolver soluções mais... digamos, experimentais.

É o caso da cervejaria italiana Baladin, que produz uma potente barleywine de estilo inglês com 14% de álcool, receita que serve como base para elaborar sua linha de cervejas denominada Xyauyù. As Xyauyù chamam a atenção do consumidor pelo fato de serem projetadas para que a cerveja possa ser guardada mesmo depois que a garrafa já tenha sido aberta, permitindo que ela seja vendida em doses (o que felizmente atenua o impacto do seu alto preço). Mas isso não é tudo o que surpreende nessas cervejas. As Xyauyù são produzidas por meio de um processo de oxidação induzida: o oxigênio é introduzido aos poucos, de forma controlada, dentro do tanque de maturação, acelerando a oxidação da cerveja. O resultado é que temos uma cerveja recém-produzida que lembra muito a sensação de uma barleywine com vários anos de guarda.

Fonte: brejas.com.br
Dentre as cervejas que pude provar da linha, a Baladin Xyauyù EttichetaArgento é aquela em que encontrei de forma mais acentuada os traços típicos de cervejas envelhecidas. A base da receita é uma barleywine alcoólica, doce, com forte sensação caramelada. A oxidação induzida, porém, lhe dá traços muito fortes de madeira, vinho do Porto, ameixas secas, molho shoyu, molho inglês e até mesmo molho de tomate, lembrando Bloody Mary. Assim como em várias cervejas longamente envelhecidas, ela apresenta uma forte sensação salgada e de umami e uma certa acidez acética para equilibrar a intensa doçura. O conjunto é marcante, interessante, possivelmente pouco equilibrado, mas absolutamente intrigante e encantador. Um rótulo para te dar um gostinho de como é beber uma cerveja de guarda muito antiga, mas sem ter de esperar tanto tempo. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

São só essas poucas cervejas que chegam a nós carregando sensações de envelhecimento? Definitivamente não! Mas, infelizmente, tive de fazer uma seleção para não alongar esta já prolixa postagem. Poderia ter colocado outros rótulos experimentais e menos conhecidos do público brasileiro (o envelhecimento em madeira transformou-se em uma verdadeira coqueluche no meio cervejeiro norte-americano atualmente), mas optei por me restringir a rótulos aos quais temos acesso no mercado nacional, para que meus leitores tenham acesso mais fácil a essas experiências.

Bem, acredito que isso já será o bastante para mitigar sua sede e curiosidade enquanto espera pacientemente as garrafas em sua adega atingirem o seu auge! A rigor, com este post encerro esta série sobre cervejas de guarda. Porém, pretendo seguir publicando aqui, com o tempo, minhas degustações de cervejas envelhecidas. Assim posso dividir com vocês as surpresas trazidas pela minha adega ou a dos amigos queridos!

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