sábado, 29 de setembro de 2012

Cerveja e artes plásticas: Abundância, alegria e moralismo em Pieter Bruegel


Na transição da Idade Média para a época moderna, a região de Flandres (que atualmente corresponde a parte da Bélgica e Holanda) participou ativamente de uma das mais vigorosas transformações na pintura europeia, desenvolvendo o que veio a ser conhecido como a “escola flamenga” de pintura. Embora seja normalmente reconhecida como parte do Renascimento europeu, a escola flamenga difere bastante da arte italiana da época. Sua pintura tornou-se conhecida pelo seu detalhismo exuberante e pela maior atenção ao ambiente e à paisagem circundante. Como resultado, em vez de se ater a algumas figuras importantes, a pintura flamenga muitas vezes produziu grandes painéis de inigualável riqueza de detalhes e informações sobre o modo de vida da época.

Ora, todos nós, apreciadores de cerveja, estamos carecas de saber que, além de ser o berço da escola flamenga, essa parte da Europa também é uma das mais tradicionais regiões produtoras de cerveja do mundo. Não espanta, portanto, que a cerveja tenha sido figurada com alguma frequência nas obras de arte da época. Partiremos hoje da obra de um pintor chamado Pieter Bruegel (também conhecido como Brueghel, o Velho, já que seu filho também veio a se tornar pintor) para refletir um pouco sobre o papel da cerveja e dos alimentos de forma geral na cultura europeia da época. Bruegel é autor de uma série de representações da vida camponesa do período – alguns afirmam que ele chegava a se vestir como camponês para poder frequentar eventos populares e observar melhor! E, como não poderia deixar de ser, a cerveja aparece em algumas dessas representações.

Cerveja e festa

Pieter Brueguel – O casamento camponês (1568)
Fonte: http://www.ibiblio.org

Tomemos como exemplo O casamento camponês, de 1568. Essa pintura é notável por vários motivos. Observe-se especialmente a solução da composição, feita de forma assimétrica com perspectiva em dois pontos de fuga, o que consegue ao mesmo tempo criar um amplo espaço para os convivas do lado esquerdo sem esconder as personagens sentadas à mesa. A noiva, figura principal do evento, é destacada de forma sutil e natural pelo tecido verde pendendo atrás dela. Mas o verdadeiro protagonista do quadro é o povo, com sua disposição de aproveitar ao máximo a festa, conversando alegremente, ouvindo música e comendo e bebendo o que, na época, era uma raríssima fartura alimentar. Aliás, não é assim até hoje? Conheço algumas pessoas que só vão a casamentos para comer e beber – e, evidentemente, depois falar mal da comida e da bebida pela qual foram à festa.

Pieter Brueguel – O 
casamento camponês (1568) 
- detalhe
Fonte: http://www.ibiblio.org
O observador atento já terá visto a cerveja na cena. Há alguns jarros e canecos de cerâmica sobre a mesa – lembremo-nos de que não era costume usar vidro nos copos de cerveja antes do século XIX. E, principalmente, há a figura no canto inferior esquerdo, enchendo um jarro pequeno a partir de um grande cântaro. A cena evoca as representações pictóricas das bodas de Canaã, durante as quais se atribuiu a Cristo o milagre de transformar água em vinho. Esse aí sabia das coisas. Aliás, numa primeira olhadela, pensaríamos se tratar de vinho o que está representado n’ O casamento camponês. Mas a cor do líquido indica claramente que era a cerveja que abastecia a animada festa popular.

Assim, à temperatura ambiente, em jarros abertos, possivelmente sem carbonatação? É, assim mesmo. Existem alguns lugares tradicionais na região de Bruxelas, na Bélgica, em que você ainda pode dar a sorte de encontrar a cerveja sendo servida dessa maneira: nas cervejarias que produzem lambics e em alguns cafés em que elas são servidas “à tradicional”. Na cervejaria Cantillon, por exemplo, a lambic simples (mas não a gueuze e nem as com frutas) é servida exatamente dessa forma: em jarros de barro, à temperatura ambiente e sem carbonatação. Aliás, é provável que a cerveja que tenha sido figurada na pintura seja uma cerveja de fermentação espontânea, como as lambics, que eram muito mais comuns na época do que são hoje – para a minha infelicidade, diga-se de passagem, já que sou um amante inveterado do estilo.

Cerveja e fartura

Diante disso, devemos encarar a possibilidade de que outras bebidas servidas em jarros de cerâmica nas pinturas de Bruegel e de outros mestres flamengos fossem também cerveja. Outra cena em que isso é sugerido é a tela A colheita do milho, pintada por Bruegel alguns anos antes, em 1565:

Pieter Brueguel – A colheita do milho (1565)
Fonte: http://upload.wikimedia.org

A composição, mais uma vez assimétrica, se divide mais ou menos na metade pela árvore em primeiro plano. À esquerda dela, uma elaborada paisagem dos campos flamengos com uma aldeia ao fundo; à direita, na parte inferior, alguns trabalhadores rurais descansam e fazem uma refeição. Um deles, de camisa vermelha, sorve avidamente um líquido de um grande cântaro como aqueles que vimos n’ O casamento camponês. A associação com a cerveja é sugerida pela própria cena: estamos em uma região produtora de grãos, e não de uvas, e é provável que o recipiente de barro contenha um pouco da produção cervejeira local. Um dos trabalhadores dorme tranquilamente à esquerda da árvore, talvez levemente amortecido pelo álcool.

A cerveja infinita, fluindo caudalosa como um rio, fazia parte dos sonhos de fartura típicos da cultura camponesa da Idade Média e do início da época moderna. Nas duas telas que vimos, a cerveja está associada a momentos de alegria e de abundância: num caso, uma festa de casamento, comemoração e ocasião de beber e comer à vontade. No outro, a época da colheita, que marca um momento de alegria e de otimismo pela chegada de mais alimento, prometendo fartura à mesa durante os meses seguintes. A cerveja, como bebida por excelência ligada aos grãos, ao cultivo e à mesa, marca presença nessas cenas de alegre e inocente comilança.

Uma sombria ambiguidade

Em várias regiões da Europa medieval, acreditava-se na existência de um país fantástico chamado Cocanha, a terra da abundância. Descrições da época mostram o país da Cocanha como uma espécie de paraíso terrestre, em que o leite, o vinho e o mel corriam em riachos, a comida caía dos céus nas bocas das pessoas e as árvores abundavam com frutos. Em uma cultura camponesa marcada pela ameaça real da fome e da carestia (as crônicas da época relatam diversos anos de grande mortandade pela falta de alimentos), o país da Cocanha simbolizava uma compreensão carnal, imediata e material da felicidade e do paraíso. Um mundo sem preocupações, em que o gozo era lei inevitável. Até por isso, esse mito foi visto com alguma ambiguidade pelos teólogos da Igreja – os quais, cada vez mais, passaram a defender a mensagem de que a verdadeira salvação da alma implicava abandonar os prazeres da carne. No século XVI, a região de Flandres tinha uma forte presença de protestantes, para os quais a mensagem do ascetismo e da negação do corpo era ainda mais importante do que para os católicos.

Nesse contexto cultural, não é de estranhar que a “cerveja abundante” dos sonhos camponeses fosse vista com alguma reserva, principalmente pela cultura erudita da época. Não propriamente por causa do álcool (como ocorre hoje), mas porque ela se misturava a utopias carnais e materiais que pareciam ameaçadoras do ponto de vista religioso.

Pieter Brueguel – O país da Cocanha (1567)
Fonte: http://upload.wikimedia.org

A representação de Bruegel do país da Cocanha, que você vê acima, mostra exatamente essa ambiguidade. Vemos em primeiro plano três homens deitados: da esquerda para a direita, um camponês, um cavaleiro e um padre, simbolizando os três estados da sociedade. Acima deles, uma mesa com comida e jarros deitados, presumivelmente já consumidos pelos três convivas. Animais abatidos jazem pelo cenário, e uma infinidade de tortas está sobre uma mesa. Até as montanhas, ao fundo, parecem feitas de alguma guloseima semelhante a creme ou geleia.

Contudo, há algo de sombrio na representação da cena: as cores são escuras e as figuras aparecem com um ar levemente patético (especialmente notável no soldado ao fundo, com a boca aberta esperando que a comida caia do céu). Mais que isso: deitadas, em torpor, elas parecem ter esquecido suas atribuições e responsabilidades: a Bíblia do padre está sacrilegamente jogada no chão à sua esquerda, bem como a luva e a lança do cavaleiro também jazem inúteis ao seu lado.

Pieter Brueguel – O triunfo da morte (1562) - Detalhe
Fonte: http://www.ibiblio.org
O tom da cena aqui não é de alegria: é quase de condenação, lembrando a representação de Bruegel do Triunfo da Morte, de 1562, em que a morte e os cavaleiros do apocalipse atacam implacavelmente os homens bebendo, tocando música e jogando gamão (veja ao lado um detalhe da obra). Em todas essas cenas, nota-se o fascínio exercido nos homens dessa época pela abundância de comida e bebida, mas também, simultaneamente, os seus potenciais perigos para a alma. A morte ronda essas cenas de alegre e inocente divertimento como uma espécie de lembrete onipresente do pecado e da futilidade da carne mortal. Mesmo as cenas camponesas que vimos acima – O casamento camponês e A colheita do trigo – têm algo de patético, de irônico, uma perturbadora falta de identidade entre o pintor e a cena que ele retrata.

Encontramo-nos aqui nos albores de uma era em que a abnegação, o controle do corpo e a disciplina seriam cada vez mais exigidos, à medida que o prazer gratuito e descompromissado passaria a ser visto com crescente desconfiança. E a cerveja, com sua remissão a sonhos de fartura, seu efeito entorpecente e sua presença em celebrações da abundância, passaria a estar sob a vigilância dos olhos da moralidade. Sombrio prenúncio dos nossos tempos modernos.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Cerveja e artes plásticas: Os vários canecos de Juan Gris

Sim, eu sei que eu já coloquei o 
“Homem no café” (1914) de Juan Gris 
na última matéria. Mas o que é um 
clássico senão aquilo que 
merece ser sempre revisto?

Na última matéria deste blog, falamos um pouco sobre os homens no café do pintor espanhol Juan Gris, e pudemos ver como a mudança no sentimento expresso pelo pintor correspondeu igualmente a uma mudança na bebida figurada em cada uma das duas obras. Na pintura de 1912, a taça de martini indicava a elegância e o complicado jogo do “ver-e-ser-visto” da alta sociedade; na composição elaborada dois anos depois, o enfoque do pintor nos sentimentos interiores harmonizou não mais com o elegante martini, mas com um imponente caneco de cerveja. Do ponto de vista de um artista buscando a expressão dos sentimentos, foi um dos maiores elogios à cerveja que eu já vi no mundo das artes.

Há alguns pequenos detalhes da pintura de 1914, porém, que poderiam nos causar alguma perplexidade. Mas talvez a comparação com um outro caneco de cerveja de Juan Gris ajude a esclarecer melhor o assunto. É isso mesmo: o cubista espanhol deve ter sido um baita apreciador do nobre líquido, porque este figura em todo o seu esplendor, esbanjando farta e invejável espuma, em mais de um de suas pinturas. O que pode nos intrigar no “Homem no café” de 1914, a princípio, é a situação à qual Gris associou a bebida. Temos um distinto senhor trajando cartola e casaca, lendo um jornal num café chique, bebendo sozinho sua cerveja. É contraintuitivo: estamos acostumados a encarar a cerveja como uma bebida alegre, descontraída, para reuniões agradavelmente barulhentas, cheias de gente e pontuadas de gargalhadas fáceis e maravilhosamente gratuitas. A sobriedade e a introspeção do “Homem no café” de Juan Gris pode nos espantar: sozinho, lendo seu jornal de cartola, ele não corresponde à imagem mais comum que fazemos do bebedor de cerveja.

Claro que a cerveja também pode ser uma companhia perfeita para um momento de quietude e introspecção como aquele retratado por Gris. Alguns tipos de cerveja, como a clássica barleywine ao pé da lareira numa noite fria, quase imploram para que você pare tudo o que está fazendo e pense um pouco sobre os rumos da vida. Mas cadê a alegria e o espírito lúdico que acompanham a cerveja e seus bebedores há milênios? Claro que Gris, como bom apreciador da bebida que era, não deixou de contemplar também esse aspecto. Vejamos, por exemplo, uma natureza-morta de 1913 chamada “Copo de cerveja e cartas de baralho”: 

Juan Gris – Copo de cerveja e
cartas de baralho (1913)
Fonte: http://en.wikipedia.org

A alegria que associamos à cerveja está indicada nessa pintura. Mais uma vez, como comentamos a respeito da pintura de 1914, não vemos a cena completa, e sobretudo não vemos as pessoas que deveriam estar aí. O objetivo do pintor não era nos mostrar um grupo de bebedores em torno de uma mesa de baralho, mas praticamente nos fazer sentirmos dentro da cena. É como se estivéssemos olhando para os mesmos objetos que os jogadores. A centralidade é claramente da caneca, e aqui Gris explorou todas as possibilidades visuais do copo: vemos a caneca completa bem ao centro e, tanto acima quanto à sua direita, vemos o colarinho branco do alto, o perfil da caneca e o contorno da espuma, traçados com uma linha. O contraste da dureza reta da caneca com as curvas da espuma é explorado à farta pela troca de perspectivas e pelos perfis contornados, característico do cubismo.

Mas é na parte esquerda da tela que vemos os acessórios do alegre jogo: os naipes do baralho e a boca do cachimbo mostram um momento tipicamente masculino de reunião e descontração. A parede azulejada do ambiente transmite vida e alegria pela sua cor intensa, e também sugere um encontro fora de casa e das preocupações das tarefas cotidianas. Ah, agora sim!, uma situação mais próxima daquela à qual primeiramente associamos a cerveja, não é? Agora tudo faz sentido!

Menos uma coisa. A cor da cerveja. A esta altura, já entendemos que Gris brinca com as bebidas para simbolizar sentimentos associados a cada uma das cenas que ele quer retratar, o que é um exemplo eloquente de “pensar com o copo” (como já comentei aqui). Mas por essa não estávamos esperando. A cena solitária e introspectiva da tela de 1914 retrata uma cerveja clara, enquanto a cena coletiva e lúdica da pintura de 1913 mostra uma cerveja escura. Normalmente associamos momentos de introspecção a cervejas mais escuras e pesadas – eu mesmo falei de barleywines agora há pouco. Será que Gris tinha um conhecimento limitado de cervejas e acabou “errando na cor”?

Claro que não. Uma das coisas mais importantes que aprendi como historiador é que, quando estamos vendo documentos do passado e encontramos alguma incongruência com aquilo que pensamos num primeiro momento, provavelmente quem está sendo incongruente somos nós. Estamos pensando com a nossa cabeça do presente para tentar entender o passado – pecado capital que os historiadores pomposamente chamam de “anacronismo”. Essas pequenas surpresas são excelentes oportunidades para entendermos como as pessoas não pensavam como nós antigamente.

Esse solzinho de merda jamais irá
vencer minha stout!
Fonte: blahblahblahscience.com
Vejamos, então. Hoje em dia, nossa principal referência de cervejas claras e douradas são as American lagers (as populares “pilsens”) consumidas aos baldes na praia e no churrasco. São bebidas baratas, populares e associadas a situações de descontração. Já as cervejas escuras podem ter duas associações: na cultura popular, normalmente estão associadas ao consumo feminino na forma das malzbiers. No mundo das cervejas artesanais, as escuras estão associadas normalmente a estilos complexos e sofisticados como Belgian dark strong ale ou Russian imperial stout. As cervejas escuras às vezes até despertam uma certa “soberba” em degustadores iniciantes. Numa mesa de bebedores do pilsen, não é incomum presenciarmos aquele cervochato que pede uma porter ou uma stout e fica se gabando de que ele não bebe “cerveja com cor de mijo”. Basta observar que, no ranking brasileiro do Brejas, se contabilizarmos as 20 cervejas no topo do ranking dos usuários, nada menos que 17 são escuras (o contraste com a cena norte-americana é evidente, mas isso é assunto para outro post). É como se a cor diferenciasse o “bebedor comum” do “iluminado”. Óbvio que isso é uma bobagem do tamanho de um bonde – além de arrogante para burro –, mas é o resultado de uma cultura cervejeira que foi continuamente bombardeada pelo marketing da “loira gelada” e que só agora começa a abrir os olhos para a variedade. Variedade esta que começa pela cor, signo visível e imediato da diferença.

Só que não era nada assim na França do início do século XX, quando Gris pintou suas telas. Na época, ocorria algo mais parecido com o contrário: as cervejas tradicionalmente bebidas pelo povo por séculos haviam sido as mais escuras. Na época, era enorme a popularidade de estilos como as tradicionais dunkel de Munique, as ales escuras da escola franco-belga ou as porters inglesas. O sucesso recente das pale ales inglesas, ao longo do século XIX, já havia resultado em um significativo “clareamento” das cervejas popularmente consumidas (daí o nome “pale” para designá-las), mas ainda estamos falando de cervejas que hoje chamaríamos de “vermelhas”, e não propriamente de claras (na legislação brasileira de rotulagem, uma pale ale tradicional é obrigatoriamente denominada de “cerveja escura”). Em resumo: até o início do século XX, o popular era beber cerveja escura. Cervejas escuras evocavam situações de tabernas e divertimentos proletários – exatamente a sensação transmitida pelo “Copo de cerveja e cartas de baralho” de Juan Gris.

Até por isso, quando as cervejas realmente mais claras, como as pilsner boêmias e alemãs, disseminaram-se pelo mercado europeu na segunda metade do século XIX, foram consideradas bebidas mais refinadas e elegantes. Os finíssimos cristais boêmios eram usados para realçar a bela cor dourada e o aspecto claro e transparente dessas cervejas para um público sofisticado. É só lembrarmos que uma cerveja que hoje nos parece perfeitamente trivial – a belga Stella Artois – foi lançada como uma bebida comemorativa de natal, tamanho o refinamento que se lhe atribuía. Aliás, o marketing da marca tem tentado recentemente – de forma muito bem-feita, por sinal – resgatar essa aura de sofisticação e elegância da cerveja clara. Um exemplo é a propaganda que você vê abaixo, que resgata o caráter originalmente solene da bebida, com música francesa, cenário europeu invernal e claras referências ao champagne:



Diante disso, as pinturas de Juan Gris fazem total sentido. A cena de “Copo de cerveja de cartas de baralho”, mais popularesca e descontraída, figura aquilo que, na época, era visto como uma cerveja mais popular e rústica. Já o elegante “Homem no café”, trajando sua casaca e cartola, de fato parece mais condizente com uma cerveja que carregasse uma aura socialmente mais nobre. Aqui, o contraste entre a cerveja clara e a escura parece simbolizar a diferença entre um espaço popular e possivelmente mais grosseiro e uma situação pública, elegante e de boa impressão.

É inegável que cada estilo de cerveja tem suas características e vocações próprias, prestando-se melhor a algumas situações do que a outras. Mas também é preciso ter a humildade de reconhecer que nossos pensamentos, gostos, preferências e modos de fazer as coisas não são absolutos, e estão mudando a todo momento. Mais uma vez, reitero: as percepções relativas a diferentes bebidas nem sempre – ou antes, quase nunca – estão apenas dentro do copo, objetivamente. Muitas vezes elas são o resultado do infinito trabalho da cultura humana de investir os objetos à sua volta de significado. Vivenciar o significado dessas situações é testemunhar séculos e milênios de transformações do mundo pelo homem. Um brinde à cultura!

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Cerveja e artes plásticas: os "homens no café" de Juan Gris


Tenho ouvido algumas pessoas me dizerem que este blog anda ficando muito técnico. Portanto, decidi embarcar em uma leve mudança de ares por enquanto, enfatizando mais o aspecto cultural deste nosso espaço. Claro, continuo falando sobre cervejas, mas agora em relação a uma das minhas (outras) paixões: as artes plásticas.

Eu tinha começado a escrever esta matéria falando sobre a época e o estilo do artista sobre o qual vamos conversar – o espanhol Juan Gris –, mas achei muito melhor deixar a imagem falar por si:

Juan Gris – Homem no café (1914)
Fonte: http://www.ibiblio.org

O título pode parecer estranho num primeiro momento, como aquelas provocações de artistas contemporâneos. “Não estou vendo café nenhum, e muito menos homem!” Então vejamos. Em primeiro lugar, o artista não estava falando na bebida café, mas nos estabelecimentos comerciais que existiam na época na França – e ainda existem – chamados “cafés”, aonde as pessoas iam para se sentar, comer algo leve e bebericar. Pois bem, nosso “homem no café” efetivamente está num café. E olhe que não é um mero botequim de copo sujo! Ao centro da imagem, o artista retratou em detalhes a textura e as linhas da madeira da mesa; mais próximo das margens da tela, vemos os painéis de madeira mais escura lembrando o revestimento de madeira de ambientes mais nobres. Uma mancha marrom escura apresenta o que talvez seja a textura macia e as ranhuras do couro das poltronas. Mais ao centro, um grande bloco amarelo apresenta uma textura nitidamente contrastante: parece liso, duro, frio, talvez azulejo ou vidro. No centro disso tudo, obviamente, o motivo pelo qual o homem foi ao café, o foco de atenção da imagem: uma sólida caneca de cerveja com seu creme opulento e o duro canelado do vidro.

OK, achei o café, mas onde está o homem, afinal de contas? Vemo-lo apenas por indícios indiretos. Percebemos claramente o que ele está fazendo: lendo um jornal. “Le Matin” – a manhã. E parece ter passado longas horas sentado, lendo, a julgar pelas duas luzes que incidem sobre o papel do jornal: a luz azulada lembrando o céu claro do dia, e a luz amarelada da iluminação elétrica. Vemos ainda sua mão segurando a página do jornal, à esquerda. Por fim, bem no alto, vemos a silhueta de sua elegante cartola, bem como a sombra que ele projeta na parede de madeira. De fato, se o lugar parece elegante, ele está trajado a caráter. Talvez com um casaco de veludo azul, a julgar pelos detalhes da pintura em azul royal. Pronto, aí está: um homem no café. Lendo seu jornal, bebendo sua cerveja, sentindo o toque macio do couro, do veludo, da madeira e a sensação dura e gelada dos azulejos e do copo de vidro. Talvez pensando na vida, introspectivo e sozinho na mesa do café durante longas horas.

A pintura é do artista espanhol Juan Gris, e pertence a um estilo artístico que passou à posteridade com o nome de “cubismo”. Quis começar mostrando a imagem porque agora fica fácil entender o que os cubistas buscavam com suas telas, que eram bastante chocantes para a época e ainda hoje parecem enigmáticas para muita gente. Foi o próprio Juan Gris quem já nos deu a chave de entendimento de sua obra ao afirmar: “a verdade está além de qualquer realismo e a aparência das coisas não deveria ser confundida com sua essência.” Claro está, esta não pretende ser uma representação fiel da aparência que deve ter um homem sentado no café, lendo um jornal e bebendo sua cerveja. A ideia aqui é apresentar, em forma visual, a essência da experiência de sentar-se ao café, ler um jornal e beber uma cerveja: vemos o jornal, notamos como a luz incide de diferentes maneiras sobre o papel, sentimos a maciez da poltrona, a textura da mesa e do copo. Até por isso temos facilidade em entender o que o nosso “homem no café” está fazendo, mas temos alguma dificuldade para vê-lo claramente: a intenção não é observá-lo de fora, mas sentirmo-nos como se fôssemos nós mesmos esse homem. O artista nos convida para entrarmos no quadro, rompermos a distância que nos separa da tela, pormo-nos nós mesmos a pensar e refletir sobre nossa vida diante de uma bela caneca de cerveja numa tarde preguiçosa.

Na “Natureza-morta com cadeira de palha” de Pablo 
Picasso (1912), o princípio é o mesmo: 
o café, a laranja, o jornal, a cadeira de palha, 
tudo compõe a mesa rústica.
Fonte: smarthistory.khanacademy.org
Os cubistas não queriam reproduzir fielmente a aparência das coisas. Pelo contrário, eles decompunham essa aparência, fragmentavam a visualidade e recompunham tudo em suas telas para nos dar uma espécie de instantâneo do que era aquele objeto ou aquela experiência em sua integralidade. Não por apenas um de seus ângulos, mas por todos ao mesmo tempo. Por isso, gostavam especialmente de compor naturezas-mortas: objetos conhecidos dispostos de diferentes maneiras em cima de uma mesa. Isso lhes permitia brincar com os vários ângulos dos objetos, seus materiais, cores e texturas, mas ao mesmo tempo permitindo que o observador pudesse “reconhecer” esses objetos familiares – frutas, utensílios domésticos, bebidas – em sua cabeça montando de volta todas as partes.

Normalmente, o cubismo é dividido em duas “fases”: o cubismo analítico e o cubismo sintético. Esqueçamos um pouco a nomenclatura enigmática da História da Arte, que às vezes mais mistifica do que esclarece, e vejamos o que isso significa na prática. A partir, é claro, de um outro “homem no café”. O título dessa matéria já indica que Juan Gris possui duas telas chamadas “Homem no café”: a que já vimos, de 1914, e uma anterior, feita em 1912, que você vê abaixo:

Juan Gris – Homem no café (1912)
Fonte: http://www.ibiblio.org

Em linhas gerais, o “Homem no café” de 1912 mostra basicamente a mesma cena que a tela de 1914: um homem calmamente sentado sozinho num elegante café meditando sobre seu copo de bebida. Ao contrário do que ocorre na obra de 1914, porém, na primeira ocasião em que o pintor explorou o tema, deu destaque justamente ao homem: é ele que vemos no foco da imagem, todo cortado e fragmentado em diversos planos geométricos que acompanham, exagerando-o, o corte geométrico de seu fraque. O rosto mostra com vigor essa análise geométrica da imagem: vemos seus traços fragmentados em pequenos planos, a partir de diferentes perspectivas, de modo que, não soubéssemos que seu rosto deveria estar ali, teríamos alguma dificuldade para reconhecê-lo.

A comparação entre as duas imagens mostra claramente a diferença estética entre a fase dita “analítica”, à qual pertence este "Homem no café" de 1912, e a que veio depois, chamada “sintética”, exemplificada aqui pela imagem do início deste texto. O cubismo analítico prioriza a análise geométrica, a fragmentação da imagem em planos; enquanto o cubismo sintético consegue fazer exatamente o que Juan Gris afirmou: mostrar a essência de uma situação, juntando os cacos todos de volta para sintetizar uma experiência com notável economia de meios visuais. O “Homem no café” de 1914 reorganiza todos os cacos da imagem para nos dar uma poderosa impressão do que esse homem devia estar vivenciando, sentado no café. Já não nos importa mais a imagem, mas a sensação.

Curiosamente, apesar das inúmeras semelhanças entre as cenas, existe uma diferença fundamental (que eu nem precisaria falar para os leitores deste blog): a bebida, claro! O primeiro “Homem no café” sorve uma bebida elegante, talvez um dry martini ou um vermute branco, de sua taça triangular. O segundo, por sua vez, saboreia um portentoso caneco de cerveja. A mudança não é fortuita, evidentemente. Claro que os historiadores da arte e artistas poderiam argumentar que o pintor quis explorar a geometria exuberante e cheia de arestas da caneca na obra de 1914, enquanto preferiu um copo de design geométrico mais simples para não sobrecarregar a tela de 1912. Mas não é só isso: a substituição das bebidas é o termômetro da mudança crucial de atitude que o artista sugere a quem observa o quadro. O dry martini do primeiro homem é um coquetel elegante, para uma vernissage chique, que impressiona os observadores tanto quanto seu impecável fraque e cartola. É um símbolo de status social, signo do homem que está sentado para ser visto. A cerveja, pela contrário, sinaliza a passagem do mundo externo da sociedade para o mundo interno da introspecção: o homem não se dá a ver, é ele quem contempla o mundo (por meio da visão e do jornal) e medita sobre seus próprios sentimentos e sensações durante aquela tarde no café.

Entre 1912 e 1914, o “homem no café” de Juan Gris realizou uma tripla transição: do cubismo analítico ao sintético, de uma situação de ostentação social para um momento de introspeção e reflexão pessoal, e – claro! – do martini para a cerveja. De fora para dentro, em suma. A partir da análise das imagens, é plausível que Gris visse a cerveja como uma bebida mais próxima de seus sentimentos interiores do que o martini. Com isso, claro, ele revelava uma faceta de como a sociedade de sua época encarava o status das duas bebidas: uma, elegante e sofisticada para se beber “em sociedade”, outra, talvez, mais próxima de alguma espécie de “eu interior”. Não há nada, objetiva e intrinsecamente, na composição dessas bebidas que determine isso; mas isso não impede que a cultura humana invista os objetos à sua volta de densos significados que, a princípio, lhes eram alheios.

Celebremos, pois, à introspecção com uma bela caneca de cerveja!