terça-feira, 22 de janeiro de 2013

A cena cervejeira em Portugal - Parte II: Uma diversidade recente


Na primeira parte desta matéria, falamos um pouquinho sobre a cena cervejeira de Portugal a partir do ponto de vista das grandes marcas de American lagers de massa que dominam o mercado lusitano (nomeadamente, Super Bock e Sagres). Ora, nesse ponto, Portugal não oferece nenhuma novidade substancial: as American lagers dominaram todos os mercados cervejeiros do mundo ao longo do século XX. A coisa só começou a mudar mais ou menos a partir da década de 1970, quando começou a surgir uma tendência, encabeçada pela Inglaterra e pelos EUA, de revitalização da diversidade cervejeira tradicional e criação de novos e surpreendentes estilos e cervejas com produções em pequena escala. A chamada “revolução da cerveja artesanal” espalhou-se para a Europa e, na década de 2000, explodiu como fenômeno mundial – como atesta o recente fortalecimento dessa tendência no Brasil.

No Brasil, a Eisenbahn é quem melhor representa a 
aliança entre a inovação microcervejeira e uma 
macroestrutura de produção e distribuição. Na imagem, 
a edição comemorativa de 10 anos da marca.
Fonte: sopromocoes.com.br
Em quase todos os lugares em que essa reorientação do mercado ocorreu, o protagonismo foi dos pequenos produtores, que decidiram apostar alto na produção de cervejas de aceitação restrita, gradualmente ajudando a estabelecer um gosto e uma demanda por essa diversidade cervejeira. Foi apenas num segundo momento que os estilos cervejeiros menos convencionais começaram a chamar a atenção das grandes companhias. Hoje, elas estão de olho nas artesanais no mundo todo. Nos EUA, um dos países em que a “revolução artesanal” mostrou-se mais teimosamente resistente ao grande capital, a Anheuser-Busch (parte da globalizada AB-InBev) adquiriu em 2011 a excelente microcervejaria Goose Island, de Chicago. No Brasil, antes disso, a Schincariol (atual Kirin-Brasil) já havia comprado três micros: a Devassa (RJ), a Eisenbahn (SC) e a Baden Baden (SP). Em ambos os casos, as grandes companhias começaram a produzir, em diversas de suas plantas fabris e em escala nacional, algumas receitas que antes só eram produzidas localmente. A diversidade cervejeira e as chamadas “cervejas artesanais” (termo que parece cada dia mais ultrapassado no novo cenário mundial) estão no centro dos holofotes na cena internacional.

Ora, pois: Portugal é um país com pouca tradição cervejeira, sempre tendo sido conhecido muito mais por seus vinhos. Apesar disso, nos últimos dez anos começou também, na terra de Camões, um tímido movimento de interesse por estilos diversificados. Contudo, o que mais me chamou a atenção em Portugal é que, diferentemente do que ocorreu nos EUA ou no Brasil, esse movimento não ocorreu a partir das criações das microcervejarias. São as grandes cervejarias portuguesas – as mesmas que, por décadas, produziram apenas American lagers como a Sagres ou a Super Bock – que estão, lentamente, apostando na diversidade cervejeira. Isso ocorre em escala restrita, com produtos que ainda parecem ter pouca personalidade diante do olhar de um entusiasta por artesanais, mas trata-se de uma tendência clara. Vejamos algumas dessas criações.

A ampliação do leque da Super Bock

Super Bock Stout
Fonte: uni.unicer.pt
Atualmente, a Unicer é a companhia que mais tem procurado se sintonizar com a tendência mundial à diversidade cervejeira e introduzi-la em Portugal. Desde 2003, a companhia tem ampliado rapidamente sua linha de cervejas Super Bock: o primeiro rótulo além da American lager a ser introduzido no mercado português foi a Super Bock Stout – uma verdadeira miscelânea indigesta de nomenclaturas, já que se trata de uma cerveja que, apesar de conter os estilos “stout” e “bock” em sua denominação, está mais próxima de uma lager escura de estilo americano (“American-style dark lager”, segundo o guia do BA). Disponível no mercado brasileiro, a Super Bock Stout é uma cerveja de perfil suave, que combina os sabores de uma torrefação discreta de maltes (café e chocolate em concentração moderada) com algum floral de lúpulo e uma certa esterificação frutada (banana). O resultado é uma cerveja limpa, fácil de beber, um tanto adocicada (mas nem de longe tanto quanto as nossas Malzbiers), lembrando mesmo uma American lager em que o sabor do malte pilsen é substituído por uma leve torrefação (veja aqui a avaliação completa).

De lá para cá, a Super Bock aumentou seu portfolio para nove rótulos fixos e três edições limitadas: além da American lager e da Stout, temos as cervejas sem álcool (clara e escura), a Green (com limão) e a Classic (uma lager clara mais forte, na linha de uma Dortmunder export). A aproximação com as artesanais é mais clara na linha premium, de inspiração belga, que conta com a Super Bock Abadia, a Super Bock Abadia Gold e a Super Bock Abadia Rubi. Além desses rótulos fixos, a cervejaria produziu três edições especiais, com rolhas de cortiça e faixa de preço substancialmente mais elevada, sob a denominação “Cerveja de Autor”: a Double Gold (uma Belgian golden strong ale), a Doppelbock e a Bohemian Pilsner. Uma clara ampliação do portfolio em direção à tendência mundial da diversificação cervejeira, incluindo estilos normalmente associados às microcervejarias, como doppelbock ou as cervejas de estilo belga.

Em todos os casos, os rótulos da Super Bock não apresentam aquela intensidade e aquela personalidade que esperamos de um produtor artesanal ou tradicional de pequena escala. Tratam-se de receitas adaptadas para o mercado de massas, com algumas de suas características mais agressivas atenuadas para não assustar o consumidor português, ainda pouco habituado a sabores muito marcantes. De certa forma, a linha da Super Bock lembra um pouco o que a Bohemia tem feito no Brasil. Diferentemente do que acontece com as microcervejarias, as grandes empresas arriscam menos (até porque há muito mais capital em jogo). O interessante é que, a médio e longo prazo, isso parece estar despertando nos portugueses, aos pouquinhos, o gosto pela diversidade. Cabe aos pequenos produtores entrarem nessa brecha com cervejas com mais caráter.

O belo cartaz publicitário da Super Bock 
Abadia ressalta as origens do estilo.
Fonte: acontece.wordpress.co
A meu ver, a Super Bock Abadia é uma cerveja paradigmática dessa tendência – até porque me lembra muito a nossa Bohemia Abadia. Como esta, é uma Belgian blond ale que parece inspirada nas características sensoriais da Leffe Blond, mas com menos intensidade e complexidade. A Super Bock Abadia tem paladar predominantemente adocicado e mostra aromas maltados dominantes, remetendo a mel, acompanhados de toques frutados (compota de abacaxi), florais e de especiarias (talvez algum cravo ao fundo?) típicos das leveduras belgas. Tem corpo médio para intenso, refletindo a forte doçura residual, e uma pegada um pouco incômoda de “cerveja forte”, com sensação química e alcoólica um pouco mais agressivas do que nos melhores exemplares belgas do estilo (clique aqui para ver a avaliação completa).

Pseudo-brewpubs

Outra tendência que começou nos EUA e que hoje parece se disseminar pelo mundo todo é a dos brewpubs – ou seja, bares e restaurantes que produzem as próprias cervejas que servem a sua clientela, fresquinha. Brewpubs fortalecem a produção local, permitem ao produtor ter um diálogo direto com os consumidores e oferecem a estes a possibilidade de beberem receitas exclusivas e sempre frescas. A cidade de Lisboa conta hoje com dois estabelecimentos que servem chopes “da casa” em estilos diversificados, à maneira de um brewpub: a República da Cerveja e a Cervejeira Lusitana. Contudo, em vez de produzirem localmente suas cervejas, ambas as encomendam às grandes cervejarias (as mesmas que produzem a Sagres e a Super Bock), que produzem chopes e os entregam com exclusividade às casas.

A taça da República da Cerveja Puro Malte e o ótimo 
queijo alentejano que pedi para acompanhá-la.
Fonte: acervo pessoal
A República da Cerveja localiza-se no Parque das Nações, região de Lisboa longe do centro, em processo de valorização e modernização. Trata-se de um agradável restaurante num dos deques à beira do Tejo, um ambiente agradável e amigável para um happy hour. A linha de chopes da casa é fornecida pela Unicer (a mesma que produz a Super Bock) e, além dos chopes claro e escuro, inclui uma Weizenbier, uma Vienna Lager e três chopes sazonais: uma lager forte de natal, uma cerveja produzida com malte de uísque turfado e uma receita de primavera que me pareceu, pela descrição, próxima de uma saison. Infelizmente, nenhum dos rótulos sazonais estava disponível quando visitei a República da Cerveja, de modo que optei pela República da Cerveja Puro Malte, uma Vienna lager mais clara, de bonita cor dourada, com perfil de malte claramente dominante (trazendo mel e cereais) acompanhado de um expressivo frutado e de algum floral e cítrico de lúpulo. A cerveja é saborosa, mas um pouco enjoativa devido à ausência de amargor para equilibrar a forte doçura. Cai bem em pequenas doses, e escoltou bem o queijo alentejano que pedi para acompanhar (clique aqui para ver a avaliação completa).

Cervejeira Lusitana Spicy.
Fonte: pt-pt.facebook.com
A Unicer ainda fornece os chopes da casa da CervejeiraLusitana, uma rede de restaurantes cuja unidade no Shopping Vasco da Gama (próximo ao Parque das Nações) tive a oportunidade de visitar. Trata-se de um típico restaurante de shopping center, com serviço um tanto mais confuso do que eu gostaria, mas com uma boa gama de chopes e cervejas exclusivas. Quando visitei a casa, estavam disponíveis os chopes claro e escuro, além de uma Weizenbier, uma Weizendunkel e a Cervejeira Lusitana Spicy, uma lager clara de 5.1% de álcool com adição de gengibre e pimenta malagueta, engarrafada e arrolhada. As especiarias têm um evidente protagonismo na cerveja, resultando em aromas intensos lembrando gengibre, lavanda, limão e Pinho-Sol, além de um final marcante, extremamente picante e apimentado. O paladar é ácido e picante, pedindo harmonização com alimentos doces, talvez uma das sobremesas à base de creme e ovos, típicas da culinária portuguesa. Cerveja ousada, mas um tanto desequilibrada em seus excessos, que sai do lugar-comum mas, com isso, perde um pouco sua identidade de “cerveja” (clique aqui para ver a avaliação completa).

As microcervejarias portuguesas

Nem só de grandes cervejarias vive a nascente diversidade de estilos em Portugal. O país tem um pequeno movimento de hombrewers que, do ano passado para cá, tem resultado na abertura, ainda tímida, de algumas microcervejarias regularizadas, com produtos um pouco mais ousados que aqueles produzidos pelas macros. As duas micros portuguesas que existiam quando visitei o país em agosto e setembro de 2012 (nomeadamente, a Vadia e a Sovina) localizam-se no norte do país, no Porto, e são muito difíceis de serem encontradas fora de sua região de origem. Na capital, consegui localizar (depois de uma certa ajuda dos entusiastas locais) apenas alguns rótulos da Sovina, e somente em um único bar escondido no bairro do Chiado (sobre o qual falarei mais adiante).

A Sovina é a marca da cervejaria 3 Cervejeiros, do Porto. A princípio, fique em dúvida se a palavra “Sovina” teria algum significado diferente em Portugal, mas meus amigos lusitanos me esclareceram que o termo faz, como no Brasil, referência ao pão-durismo – embora a cerveja seja relativamente cara para os padrões portugueses (€3,50 por 330ml). Irreverente. A cervejaria apresenta seus produtos em garrafas de 330ml (semelhantes aquelas “gorduchinhas” belgas) e de 750ml (arrolhadas), além do chope (indisponível em Lisboa). Seu portfolio conta com 6 rótulos diferentes: a Amber (uma bière de garde que, infelizmente, não consegui encontrar), a Helles (uma Münchner helles), a IPA, a Stout, a Trigo (uma Weizenbier de estilo bávaro) e a Bock. As duas que consegui provar (a Stout e a Trigo) exibiram problemas típicos de cervejarias novas, que ainda não conseguiram afinar 100% o equipamento e o processo produtivo às receitas. Mas, assim que esses detalhes forem resolvidos, a Sovina tem tudo para oferecer produtos interessantes e diversificados para um público português que, até o momento, só conhecia as cervejas de massa e as importadas. A Sovina Trigo me pareceu interessante e promissora, merecendo uma menção mais extensa.


Estilo: German Weizenbier
Teor alcoólico: 4.4%
Aparência: cor amarela queimada, bem opaca e com belo creme fofo e duradouro.
Aromas: exibe bastante personalidade dentro de um estilo um tanto padronizado, com malte de trigo muito presente, lembrando aveia, muito fermento e um aroma floral e cítrico de lúpulo. Cravo e banana, típicos do estilo, mostraram-se presentes, mas não preponderantes, e um leve toque de defumação (advindo dos fenóis) deu-lhe mais interesse e personalidade. Infelizmente, a amostra mostrou-se comprometida por aromas de milho cozido, cebola e esmalte mais intensos do que o esperado.
Paladar: a acidez típica do estilo predomina, mas torna-se mais suave, conduzindo a um bem-vindo final seco e amargo. A doçura é menos relevante.
Sensação na boca: o corpo é mediano, com certa adstringência de malte e uma carbonatação vívida e refrescante.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

De forma geral, a Sovina Trigo é uma Weizenbier de personalidade, em que a dupla malte-fermento se impõe mais claramente do que os ésteres e fenóis (banana-cravo) típicos do estilo. A lupulagem é expressiva, tanto em aroma quanto no final seco e amargo, o que a torna mais refrescante e leve. Infelizmente, alguns defeitos de fabricação (especialmente compostos sulfúricos) comprometeram a degustação e impediram que ela brilhasse como deveria.

A Sovina é o prenúncio de uma reviravolta microcervejeira que está só começando em Portugal. Contrariamente ao que ocorreu na maior parte do mundo, onde as grandes companhias estão tendo de correr atrás da demanda criada pelas micros, em Portugal parece que só agora as pequenas cervejarias estão encontrando espaço para se estabelecerem em um mercado cujo interesse pela diversidade foi criado timidamente pelas grandes empresas. Provando que a história nem sempre se repete – e que as macrocervejarias não precisam ser vistas como as grandes vilãs da chamada “revolução artesanal”.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A cena cervejeira em Portugal - Parte I: As grandes marcas


Portugal é uma terra de vinhos. Disso não temos dúvida: basta abrir qualquer guia turístico sobre o país ou entrar em qualquer restaurante português para atestar a preferência nacional pela bebida de Baco. Além de fazer, de fato, excelentes vinhos, Portugal instituiu, ainda nas épocas setecentistas do Marquês de Pombal, a primeira área vitivinícola de denominação protegida do mundo: o vale do rio Douro, de onde saem os vinhos do Porto, que eram inicialmente destinados para o mercado inglês e que granjearam desde então fama global.

Transporte de uvas para fabricação do vinho do Porto, 
no rio Douro.
Fonte: geocaching.com
Estive no país – mais precisamente, em Lisboa – nos meses de agosto e setembro para um estágio profissional. Claro que me deixei envolver um pouco pela paixão lusitana pelos vinhos (de um curioso desconfiado, tornei-me entusiasta sincero dos vinhos do país). Mas também é claro que este viajante particular foi à busca do que a terra de Camões poderia oferecer a um amante de cervejas. Encontrei poucas cervejas surpreendentes, é verdade, mas algumas reflexões, uma ou outra curiosidade e, acima de tudo, grandes amigos que fiz em torno de copos deste outro nobre fermentado. Nesta e nas próximas matérias, divido com meus leitores essas reflexões e apresento o que pude conferir da cena cervejeira portuguesa, para todos os que tiverem a oportunidade de conhecer o país e sua capital.

American lagers: pode isso, diretor?

Começo falando sobre um assunto paradoxalmente pouco comentado em blogs de cervejas: cervejas “de massa”. Digo que isso é paradoxal porque sabemos que as American lagers (que os brasileiros aprenderam a chamar de “pilsen” ao longo do século XX) são, disparadas, as cervejas mais vendidas do mundo. Apesar disso, poucos são os entusiastas por cervejas que se aventuram a falar sobre elas (apesar de quase 100% beberem-nas regularmente). Em parte, isso ocorre porque as American lagers são projetadas para serem cervejas de sabor e sensação mais neutros, então não há tanto assim a falar sobre elas, do ponto de vista sensorial. Mas é inegável que as grandes marcas também têm histórias, marketing e uma imagem que pode nos fornecer material à farta para discussão.

Então não é exatamente por falta de assunto que não se fala das American lagers. A verdade é que a maioria maçante dos apreciadores de cerveja desdenha dessas que são as brejas mais consumidas do mundo. Alguns brasileiros até acham que essas cervejas são alguma espécie de “enganação” das grandes companhias brasileiras e norte-americanas, que teoricamente “não sabem fazer boa cerveja” tão bem quanto os europeus e “empurram goela abaixo do consumidor desavisado” as de sempre. Quanta bobagem! A começar pelo fato de que, mesmo nos países com maior tradição cervejeira, American lagers exatamente como as nossas mantêm posições no topo do mercado. “Puro marketing!”, bradarão indignados alguns puristas. Isso é assunto para outra matéria. Aqui, quero apenas começar a quebrar o silêncio sobre o assunto falando sobre as marcas mais vendidas do mercado português.

É mais ou menos assim que os cervochatos imaginam o 
perfil do consumidor de cervejas “comuns”.
Fonte: blog.opovo.com.br
Portugal não escapou do grande processo de consolidação de capitais na indústria cervejeira que marcou o mercado cervejeiro mundial no século XX. O mercado cervejeiro português é ostensivamente dominado por duas grandes marcas que, juntas, correspondem a quase 90% do volume das vendas de cerveja no país: Sagres (da Sociedade Central de Cervejas e Bebidas) e Super Bock (da Unicer). A divisão de quase todo o mercado entre essas duas empresas data da década de 1970, no contexto de reestruturação da economia portuguesa após a independência das colônias africanas, a partir da fusão de todas as cervejarias da porção continental do país.

Sagres e a Sociedade Central de Cervejas e Bebidas

A Sociedade Central de Cervejas e Bebidas surgiu em 1934 a partir da fusão das cervejarias Portugália, Estrela, Jansen e Coimbra. O controle da Sociedade Central de Cervejas e Bebidas foi adquirido pela Scottish&Newcastle em 2003. Em 2008, com a compra desse grupo pela gigante global Heineken, também a Sagres passou a integrar seu portfolio. O carro-chefe da marca é denominado simplesmente Sagres (ou ainda Sagres Branca), e é uma standard American lager produzida com adjuntos (milho “ou” arroz, segundo se lê no rótulo), não muito diferente das nossas pilsens brasileiras.

A esfera armilar e os castelos
amarelos foram suprimidos,
mas ainda assim o escudo de
armas de Portugal é facilmente
identificável no rótulo da Sagres.
A Sagres foi lançada para a Exposição do Mundo Português de 1940. Surgida num contexto de exaltação do colonialismo português, teve sua imagem fortemente marcada pelo orgulho colonial lusitano. O nome da cerveja faz referência ao Forte de Sagres, uma fortificação militar construída em 1443 e localizada no extremo sudoeste do litoral português. O forte era o último ancoradouro dos navios no litoral europeu, antes de se lançarem às conquistas marítimas do Atlântico e do Índico na época que os portugueses orgulhosamente denominam “Era dos Descobrimentos”. Não à toa, a marca Sagres também marcou o início da exportação das cervejas portuguesas, inicialmente para suas colônias africanas. O rótulo traz outra referência à época das grandes navegações portuguesas: o escudo de armas do reino de Portugal – estilizado e modernizado, mas claramente reconhecível. Hoje em dia, quando a própria ideia de um “império português” parece no mínimo antiquada (sem dizer de um profundo mau gosto para uma cultura democrática), o marketing da marca aposta na dobradinha “praia e belas mulheres” – de novo, nada em muito diferente do que temos no Brasil.

A Sagres mostra-se uma cerveja simples e fácil de beber, como pede o estilo, mas com corpo e sabor de malte relativamente acentuados se a compararmos com sua concorrente. Biscoito e mel traem a presença do malte de cevada, algum frutado (maçã vermelha) acentua a doçura, e o lúpulo exibe uma interessante nuance cítrica (limão) por baixo do tradicional floral do estilo. Em comparação com a Super Bock, é mais doce e encorpada, com sensação mais intensa, embora tenha uma certa “oleosidade” meio pesada na textura que atrapalha um pouco a drinkability. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Super Bock e a Unicer

A Unicer foi criada em 1977 por meio de um acordo de reestruturação do mercado português, a partir da fusão da Companhia União Fabril Portuense (a mais antiga do grupo, criada em 1890), a Companhia Portuguesa de Cervejas e a União Cervejeira de Portugal. O grupo, atuante também nos setores de refrigerantes, vinhos e sidras, possui capital majoritariamente português, mas 44% de suas ações são detidas pelo grupo Carlsberg. Por trás da oposição entre a SCC e a Unicer, desenha-se mais um capítulo da concorrência global entre as potências cervejeiras da Heineken e Carlsberg. Algumas coisas parecem iguaizinhas não importa em que país estejamos.

Associação com o clássico de Madonna 
na publicidade da Super Bock.
Fonte: meiosepublicidade.pt
Sua linha de cervejas denomina-se Super Bock. O nome não deixa de suscitar algumas confusões: apesar do termo “Bock”, a Unicer não produz atualmente nenhuma cerveja no estilo alemão bock ou em alguma de suas variações. Seu principal rótulo, chamado simplesmente Super Bock, também é, como a Sagres, uma standard American lager produzida com adjuntos (milho e cevada não maltada, segundo o rótulo). Lançada em 1927 pela Companhia União Fabril Portuense, a Super Bock atualmente investe em uma imagem mais jovem e menos ligada ao passado do país, tendo apostado, nas últimas décadas, em uma associação com eventos culturais (como o festival de cinema fantástico Fantasporto) e, especialmente, com a música, organizando desde 1995 o festival Super Bock Super Rock. Atualmente, a Super Bock tem apostado na diversificação de sua linha, com a introdução de diversos novos produtos desde 2003 – alguns dos quais encontramos no mercado brasileiro.

A Super Bock faz jus ao estilo standard American lager, mostrando-se uma cerveja simples, descomplicada e de paladar muito acessível, apostando em um perfil mais leve, limpo e refrescante em comparação com sua concorrente. Os sabores de maltes e ésteres frutados são ainda mais suaves do que na Sagres, e o corpo é mais leve, com sensação de limpeza da boca ao engolir e um final seco e curto, pouco marcante mas refrescante. Há uma certa nuance apimentada no aroma e sabor do lúpulo que lembra variedades nobres como o Saaz tcheco. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Joaquim ou Manuel?

A polarização do mercado cervejeiro português em torno de apenas duas marcas sugere um exercício de comparação entre elas. A sabedoria popular exulta na comparação entre as marcas de American lagers do mercado – normalmente a partir de falta de informação e de mitos como a clássica “água da Brahma de Agudos” ou a suposta “dor de cabeça da Kaiser” –, mas os entusiastas das cervejas ditas “especiais” raramente fazem esse exercício.

E têm boas razões para tanto. Em primeiro lugar, as cervejas de massa têm perfis sensoriais tão, tão parecidos que chega a ser difícil discerni-las às cegas, apenas pelo gosto. Além disso, American lagers, por serem cervejas leves e delicadas, com pouca lupulagem, sofrem muito facilmente os efeitos do mau transporte e acondicionamento. As diferenças entre duas garrafas da mesma cerveja, compradas em lugares diferentes, frequentemente são maiores do que as diferenças entre dois rótulos diferentes comprados no mesmo estabelecimento. No fim das contas, na comparação entre American lagers da mesma categoria, quase sempre a “vencedora” será a mais fresca e menos afetada pela oxidação.

Mas nem por isso não podemos comparar American lagers. Podemos, em vez de tentar identificar a “melhor” (exercício temerário e quase sempre superficial e irresponsável), simplesmente apontar as características de cada uma. Isso torna-se ainda mais viável quando – como no caso português – temos no mercado apenas duas marcas com perfis sensoriais sensivelmente distintos entre si. Então, vejamos:


Como o gráfico indica, a Sagres mostra-se uma cerveja mais pesada, de doçura e sabor mais intensos, com sabores mais marcantes de malte e frutados. Nesse sentido, pode-se dizer que é uma cerveja mais saborosa. A Super Bock, por sua vez, mostra-se mais seca, leve e ácida, com sabor menos presente, mas com sensação mais limpa e refescante na boca. Uma cerveja mais fácil de se beber e que refresca mais, poderíamos dizer. Qual a melhor? Difícil dizer, pois parecem ser propostas levemente diferentes. É interessante ver que isso pode ter a ver com o público-alvo e as estratégias de comunicação definidos por cada marca: a Sagres parece ter um público mais tradicionalista, talvez mais velho, que busca um sabor familiar, enquanto a Super Bock parece apostar num público mais jovem e descontraído, para quem refrescar é o objetivo primordial.

Mas então qual era mais fácil de encontrar fresca, sem defeitos? Infelizmente, nenhuma das duas. Bebi cervejas oxidadas (com sabores de papelão e sobretudo metálicos) com uma irritante frequência enquanto estive em Portugal. E o pior é que o defeito não se limitava a esta ou aquela marca, antes estendendo-se democraticamente a quase todas as cervejas que provei no país, em maior ou menor grau, desde a Sagres da pastelaria da esquina até a mais cara cerveja belga importada. Sempre reclamamos – com toda razão, aliás – da forma deplorável como alguns importadores, distribuidores e vendedores de cerveja tratam seus produtos aqui no Brasil, mas a coisa parece estar ainda mais feia em Portugal.

Mas é claro que nem só de American lagers vivem os portugueses. Na próxima parte desta matéria, falarei sobre algumas transformações do mercado lusitano nos últimos dez anos, como a diversificação dos estilos cervejeiros para além das lagers claras de sempre. Na contramão do que vem ocorrendo em outros países do mundo, em Portugal as grandes companhias têm assumido a dianteira nesse processo. Não perca!