segunda-feira, 15 de abril de 2013

Cervejas selvagens - Parte I: Selvageria e civilização


Lambic. Para qualquer apreciador de cervejas com alguma experiência em degustação, a mera menção ao termo já é capaz de evocar sentimentos de mistério e duplicidade. As mais “selvagens” das cervejas modernas desafiam nosso paladar com sua acidez firme e seus aromas exóticos e podem gerar reações extremas e antitéticas. Uma mesma lambic pode causar uma careta de espanto irredutível em um bebedor enquanto arranca comovidos suspiros de satisfação de outro. Quais seriam os motivos dessa nossa terrível ambiguidade diante da selvageria?

A natureza dos românticos

Remontaremos talvez um pouco mais longe do que estamos acostumados, do ponto de vista temático, para iluminar melhor a questão. Numa noite de setembro de 1780, o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe enclausurou-se em uma pequena cabana na floresta da Turíngia e, segundo reza a lenda, deu à luz uma das incontestes obras-primas da poesia alemã, o Canto noturno do andarilho. Claro que a leitura de qualquer poema na língua original é uma experiência única, mas a tradução de Haroldo de Campos capta bem o ritmo do verso alemão:

Viajante sobre o mar de névoa – 
Caspar Friedrich (1818)
Fonte: whatafy.com
Sobre os picos
paz
Nos cimos
quase
nenhum sopro
Calam-se as aves nos ramos.
Logo, vamos,
virá o repouso.

Goethe glorificava a natureza como um lugar onde o eu-lírico do poeta iria buscar a calma e a plenitude, um lugar em que se viveria uma tal experiência de comunhão com o mundo que não haveria mais nada a dizer, apenas o silêncio: o poema original se encerra com as palavras “balde ruhest du auch”, ou seja, “logo te calarás também”. A serenidade plena, ou o “repouso”, na tradução de Haroldo de Campos. Em 1818, o artista plástico alemão Caspar Frierich pintou uma tela que, para mim, é uma ilustração perfeita do poema de Goethe: o Viajante sobre o mar de névoa, que você vê na imagem ao lado. Mas, afinal de contas, de que natureza esses artistas, ambos ligados ao romantismo alemão, estavam falando? Não se trata de uma natureza próxima, ao alcance da mão, controlada, como nos parques ajardinados com seus bancos de madeira e sua grama aparada e regular. Essa natureza dos românticos estava além do poder de compreensão e dominação do homem: era a natureza selvagem em sua glória sublime: a solidão da floresta da Turíngia, a vastidão verde sob o manto acobertador das névoas – uma natureza diante da qual resta apenas a atitude contemplativa do silêncio.

O caos das cidades industriais

Essa sensação seria praticamente inacessível para o cidadão comum das grandes metrópoles europeias do século XIX, palcos da imensa transformação da vida social causada pela industrialização e pela urbanização galopantes. A cidade moderna oferecia aos seus habitantes uma experiência frenética, barulhenta, fragmentada, caótica, que era exatamente o contrário da serena plenitude da natureza de Goethe e Friedrich. Um dos mais eloquentes testemunhos do desespero vivido pelos homens na cidade industrial vem de outro poeta, desta vez o francês Charles Baudelaire, que em 1860 publicou o poema A uma passante (a tradução é de Ivan Junqueira):

O ilustrador francês Gustave Doré registrou, 
em sua visita a Londres, o caos típico de 
uma metrópole industrial do século XIX.
Fonte: abclasses.wordpress.com
A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

Baudelaire empregou aqui uma forma consagrada da poesia ocidental, o arquiclássico soneto, tradicionalmente usado para cantar as glórias do amor desde o século XV. Contudo, a modernidade transfigurou essa experiência poética clássica. O eu-lírico do poema vê a mulher anônima em meio à multidão urbana e sente amor por essa desconhecida por um momento fugaz, mas logo perdem-se tanto a mulher quanto o sentimento em meio ao “frenético alarido” da rua. O sentimento de A uma passante é clara: a cidade moderna nos oferece um vislumbre do amor e da felicidade e logo nos arranca a possibilidade de sua realização, deixando-nos incompletos e desejosos em meio à multidão anônima.

O fascínio da selvageria

A sensibilidade romântica emerge claramente do confronto entre os poemas de Goethe e Baudelaire, opostos e complementares. Na natureza encontramos a serenidade plena; na cidade, o desespero. Esse sentimento certamente nos é muito familiar. Até hoje estamos acostumados a pensar que a metrópole é o lugar onde trabalhamos, nos desgastamos e nos estressamos, enquanto a natureza ou o campo é onde vamos buscar calma, sossego e uma vida mais “espontânea”, longe das amarras e restrições artificiais e arbitrárias da nossa vida cotidiana, protegidos da violência das cidades. O corolário dessa sensibilidade já havia sido formulado claramente pela ideia do “bom selvagem” do filósofo Jean-Jacques Rousseau, um hipotético homem “puro”, vivendo na inocência do estado de natureza, não corrompido pelos vícios da civilização. O homem é naturalmente bom; a sociedade o corrompe.

As imagens da natureza exuberante veiculadas pela 
indústria do ecoturismo confirmam e exploram 
essa sensibilidade da natureza como refúgio e pureza.
Fonte: www.pantanalecoturismo.tur.br
Essa sensação, que pode até parecer “natural” de tão entranhada que está na nossa cultura, na verdade é um produto histórico da revolução industrial, na passagem do século XVIII para o XIX. A urbanização nas sociedades capitalistas criou uma sociedade caracterizada pela intensa desigualdade social, pelo rompimento dos laços tradicionais de solidariedade e pela alienação das pessoas, cada vez mais consideradas apenas do ponto de vista de suas posses materiais. É justamente nesse contexto de intensa transformação que os românticos começam a expressar um novo sentimento, até então inexistente, de “nostalgia” pelos valores da sociedade rural e de “admiração” da selvageria, em oposição à corrupção percebida como característica da sociedade urbana industrial.

As mais selvagens das cervejas

E o que as lambics têm a ver com toda essa história? Por acaso elas seriam bebidas “românticas” apreciadas por poetas como Goethe e Baudelaire ou por filósofos como Rousseau? É pouco provável. É uma fortuita coincidência (ou não...) que as lambics e outros estilos correlatos sejam agrupados coletivamente sob a denominação de “cervejas selvagens” (wild beers ou wild ales), por motivos que ainda teremos oportunidade de discutir longamente. Digo que isso é fortuito porque a denominação dessas cervejas como “selvagens” coincide notavelmente com a noção romântica da “selvageria” como algo positivo que foi perdido na modernidade industrial. E isso explica a reação ambígua que temos com essas cervejas. Vejamos.

A denominação “cervejas selvagens” aplica-se a um pequeno grupo de estilos, a maior parte dos quais de origem belga, que continuam sendo produzidos segundo métodos que poderíamos chamar de “arcaicos”. Praticamente todos os produtores de cerveja do mundo, das maiores gigantes multinacionais às mais modestas cervejarias artesanais, selecionam e controlam rigorosamente os microorganismos que irão realizar o milagre da fermentação em suas cervejas. Processos automatizados, seleção e cultivo laboratoriais de cepas de leveduras, fermentação e maturação em ambientes controlados e esterilizados, pasteurização, tudo isso foram procedimentos tipicamente industriais introduzidos na produção de cerveja nos séculos XIX e XX para controlar os resultados da fermentação.

Os poucos produtores de cervejas ditas “selvagens”, por outro lado, abdicam alegremente de todos esses artifícios industriais. Eles confiam nos métodos artesanais e tradicionais de controle microbiológico e deixam partes fundamentais do processo de fermentação à ação “natural” de microorganismos que ocorrem naturalmente no ar, nos equipamentos produtivos e na matéria-prima. Quando praticamente todos os fabricantes industriais arrancam os cabelos ao menor sinal de contaminação microbiológica, esses cervejeiros “selvagens” acolhem com hospitalidade e instituem uma convivência relativamente pacífica com uma enorme gama de seres microscópicos que assolam os pesadelos dos outros produtores.

E não é só no processo produtivo que as cervejas selvagens parecem arcaicas: essa sensação se transmite igualmente ao degustador. Um dia no passado (menos distante do que imaginamos), todas as cervejas do mundo tiveram a contribuição de microorganismos hoje considerados indesejáveis pela sua tendência de produzirem grandes quantidades de ácidos. Toda cerveja tendia a ser, ou ficar, mais ou menos azeda. Hoje, com novas tecnologias e processos de controle industrial, essa característica pôde ser quase eliminada da maioria dos estilos cervejeiros conhecidos – mas não das cervejas selvagens, que abraçam inclementemente a acidez. Ocorre que nosso paladar associa quase automaticamente o sabor azedo a alimentos contaminados, com os quais perdemos quase toda familiaridade nessa época de produtos alimentícios industrializados, pasteurizados, congelados e com toneladas de conservantes químicos. Mesmo os alimentos que passam por fermentações altamente ácidas, como os iogurtes, costumam ser pesadamente adoçados antes de serem vendidos. Para nós, habitantes urbanos e consumidores de produtos de supermercado, o azedo parece uma incômoda lembrança da natureza perecível dos alimentos que compramos.

O doce talvez tenha sido o gosto predominante 
na indústria alimentícia do século XX.
Fonte: www.shifteast.com
É comum vermos em alguns degustadores de lambics de primeira viagem uma careta, seguida da declaração de que “esta cerveja está estragada!”. Esse é o resultado de séculos de comida industrializada sobre o nosso paladar: perdemos quase totalmente a sensibilidade para o azedo. Lévi-Strauss, em seus estudos mitológicos, propôs a ideia de que o gosto azedo é a sensação que expressa, no domínio culinário, o poder transformador da natureza (pois os alimentos, crus ou cozidos, azedam naturalmente com o tempo). Nosso distanciamento da natureza na sociedade industrial também nos distanciou lamentavelmente da possibilidade de apreciar o mistério indomável do azedo.

Cervejas como as lambics e outros estilos correlatos são um revigorante golpe de “selvageria” em nosso paladar saturado pela pasteurização industrial. Daí o espanto que causam, mas também se origina aí o fascínio que suscitam. Cervejas selvagens podem chocar num primeiro momento, mas muitas pessoas depois acabam “fisgadas” a ponto de desenvolverem uma obsessão por elas – falo por experiência própria. O azedume sem concessões desses “bons selvagens” nos intriga e nos desafia a rever nossos padrões de paladar. Como crianças descobrindo um novo mundo, procuramos e aprendemos a identificar novos equilíbrios, novas sensações e harmonias que pareciam estar “adormecidas” sob o peso de séculos. Elas nos reconciliam com a natureza e com o selvagem dentro de nós mesmos.

Nas próximas partes dessa matéria, teremos a oportunidade de destrinchar os aspectos históricos, tecnológicos e sensoriais que fazem das cervejas selvagens talvez os menos bem compreendidos estilos cervejeiros, mesmo por aqueles que estão acostumados à diversidade cervejeira. Falaremos sobre métodos de produção, sobre alguns rótulos clássicos e modernos e sobre as diferenças, nem sempre óbvias num primeiro gole, entre os diversos estilos ditos “selvagens”. Acompanhe!

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Trappist Westvleteren 12 x St. Bernardus Abt 12: Comparativo de um mito belga

Os oponentes nos cantos do ringue!
Fonte: acervo pessoal

A matéria desta quinzena será dedicada ao comparativo, que tive a honra de fazer recentemente, entre duas lendárias cervejas belgas de conotações monásticas: Trappist Westvleteren 12 e St. Bernardus Abt 12. O surpreendente resultado da degustação me levou a uma pesquisa sobre os dois rótulos, cujos resultados compartilho aqui com meus leitores.

Tudo o que se relaciona à Westvleteren 12, produzida pela abadia trapista de São Sisto de Westvleteren, está envolto em uma aura de mistério. Para quem não a conhece, trata-se da cerveja de distribuição comercial mais restrita entre aquelas produzidas em monastérios da ordem trapista, e foi eleita pelo site norte-americano RateBeer como a melhor cerveja do mundo (posto que também ocupa no ranking brasileiro do Brejas). Em teoria, ela é vendida apenas às portas do monastério, no interior da Bélgica, em quantidades limitadas, e o comprador recebe um aviso de que não deve revendê-la. Isso não significa, contudo, que não exista um verdadeiro mercado paralelo para esta que é talvez a mais cobiçada cerveja do mundo. Sua alta qualidade, aliada à dificuldade de obtê-la e à sua posição nos rankings internacionais, fez com que a Westvleteren 12 se tornasse um mito cervejeiro de proporções muito maiores do que os monges da abadia de São Sisto poderiam imaginar.

E há também a St. Bernardus Abt 12. Por questões administrativas e legais vinculadas aos produtos trapistas, essa cerveja tem uma íntima conexão histórica com a Westvleteren 12. Em 1946, a fim de impedir que a produção da cerveja interferisse no cotidiano monástico, a abadia de São Sisto fez um acordo com a cervejaria St. Bernard para que esta produzisse e comercializasse os rótulos da Westvleteren sob licença. Quando a Igreja católica decidiu impor um maior rigor às regras para a produção de produtos trapistas e exigiu que eles fossem produzidos no interior dos respectivos monastérios, a abadia de São Sisto modernizou suas instalações produtivas e retomou a produção em 1989. Desde então, a cervejaria St. Bernard deixou de poder usar a marca Westvleteren, mas manteve em seu portfolio parte das receitas originais da linha. A antiga Westvleteren 12 passou, então, a ser comercializada sob o nome de St. Bernardus Abt 12.

A comparação

Quer dizer que a St. Bernardus Abt 12, de ampla distribuição internacional, e que pode ser encontrada até em supermercados brasileiros por preços dentro da média das cervejas belgas, é exatamente igual à arquicobiçada Westvleteren 12, cujas garrafas, nas ocasiões em que aparecem no mercado paralelo brasileiro, são disputadas a tapa a preços que frequentemente ultrapassam os R$ 200? Foi justamente essa dúvida que me levou a este comparativo. Levando em conta o histórico das cervejarias, eu tinha a intuição de que as duas cervejas seriam, pelo menos, extremamente parecidas, de modo que apenas a aura de raridade da trapista explicaria a diferente percepção dos consumidores a respeito de ambas. Vejamos o que encontrei na degustação.


Fonte: bradfest.org
Estilo: Belgian dark strong ale
Teor alcoólico: 10.2%
Aparência: coloração mogno avermelhada, de boa transparência e ótima espuma, volumosa e bem persistente, formando “rendas” na lateral do copo
Aromas: uma excelente complexidade de frutas e especiarias advindas do fermento, com um interessante perfil de maturidade como complemento. A doçura do malte e do açúcar queimado se traduzem em uma sensação caramelada, ao lado de ésteres frutados que remetem a maçãs vermelhas, uvas passas, vinho tinto e mamão papaya. As especiarias trazem aromas claros de pimenta-do-reino e toques discretos de cravo, alcaçuz e sementes de coentro, além de uma sensação de acetona que não destoa do conjunto. Sentem-se ainda notas florais e um herbal lupulado característico ao final. Finalmente, toques licorosos lembrando mel lhe conferem um aroma maduro.
Paladar: na boca, se você espera a gentil doçura de alguns exemplares do estilo, vai se surpreender com um amargor rústico e assertivo, que rapidamente sobrepuja o doce inicial e se prolonga num final longo, seco e picante. Sóbrio e austero, como os monges de São Sisto.
Sensação na boca: a secura destacada para o estilo a deixa com um corpo apenas mediano, mas com sensação licorosa e um aquecimento alcoólico e picante bem-vindo ao final do gole. Afinal, você não esperava muita gentileza da cerveja mais robusta da abadia, não é mesmo?

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Trappist Westvleteren 12 é uma interpretação tipicamente trapista do estilo que as abadias católicas consagraram: você sente aquela doçura caramelada que é característica do estilo, mas logo se nota que quem predomina é o amargor seco e austero da lupulagem assertiva. Frutas e especiarias estão lá com uma excelente complexidade, ao lado de sensações licorosas e maduras. Tudo muito bem integrado. Ela não chega a ser totalmente surpreendente; antes, é precisamente tudo o que você espera de uma ótima dark strong ale belga. Mas é claro que o posto de “melhor cerveja do mundo” reflete muito mais a sua história, sua tradição e a dificuldade em obtê-la do que, efetivamente, o conteúdo da garrafa.


Fonte: www.tumblr.com
Estilo: Belgian dark strong ale
Teor alcoólico: 10%
Aparência: praticamente idêntica à Westvleteren, com cor mogno avermelhada, boa transparência e excelente creme volumoso e persistente que forma rendas no copo.
Aromas: aqui as diferenças em relação à trapista evidenciaram-se claramente. O malte ganha muito mais destaque e mostra um sabor mais macio e assertivo: além daquela doçura de caramelo característica do estilo, nota-se muito claramente algo de panificação (lembrando pão-de-ló) e uma indulgente sensação de bala toffee. O frutado mostra-se menos complexo e vigoroso, com o aroma de vinho tinto que encontramos na Westvleteren, mas também com notas de banana que não identifiquei na trapista. As especiarias (pimenta-do-reino e alcaçuz) também estão aqui, mas de forma menos intensa e menos complexa. A licorosidade de mel da trapista se repete, e o floral é complementado por um herbal lupulado menos rústico, lembrando mentol. Em resumo: mais malte e menos frutas e especiarias que na Westvleteren.
Paladar: aqui as diferenças são gritantes e se impõem claramente. Enquanto a trapista trazia aquela secura amarga e sóbria, a St. Bernardus Abt 12 apresentou indulgente e envolvente doçura inicial, que apenas depois de engolir deu lugar a um amargor mais discreto, revelando no entanto a mesma picância num final de extraordinária longevidade e vivacidade.
Sensação na boca: a doçura mais acentuada traduz-se claramente em um corpo mais intenso e uma textura mais cremosa, além de um aquecimento alcoólico mais suave e equilibrado. A carbonatação também é menos evidente na boca.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A St. Bernardus Abt 12 é uma ótima interpretação do estilo na linha das cervejarias comerciais “laicas”: macia, envolvente e indulgente, com um gostoso perfil de maltes e uma sensação de toffee. A cervejaria afirma usar maltes escuros na receita, o que explica essa característica (que não encontrei na Westvleteren). As sensações frutadas e de especiarias estão lá, como manda o estilo, mas assumem segundo plano, perdendo em vivacidade e em complexidade.

O gráfico abaixo sumariza as principais diferenças encontradas na degustação:


Afinal de contas, é ou não é a mesma cerveja?

Definitivamente, não é a mesma cerveja. Essa foi a estarrecedora conclusão a que a degustação horizontal me levou, o que me fez buscar mais informações sobre as cervejarias para solucionar o mistério. Durante essa pesquisa (na qual Stan Hieronymus, autor de Brew Like a Monk, foi uma fonte preciosa de informação), descobri alguns fatos interessantes e esclarecedores.

A abadia de São Sisto mantém um intercâmbio técnico muito próximo com outra abadia trapista belga, a de Westmalle. Durante o período em que a St. Bernard produziu a Westvleteren sob licença, São Sisto continuou produzindo cerveja para consumo dos monges e visitantes, e introduziu mudanças importantes no processo produtivo. Em primeiro lugar, mudou sua cepa de leveduras, adotando a mesma usada na abadia de Westmalle. Até hoje, a levedura da Westvleteren é fornecida pela Westmalle. Isso significa que a levedura empregada pela St. Bernard pode ser a levedura original da Westvleteren, mas não é a mesma que o mosteiro usa atualmente. Ademais, St. Bernard emprega uma segunda cepa, diferente da primeira, na refermentação na garrafa.

O irmão Jos operando a nova tina de 
brassagem da abadia de São Sisto.
Fonte: Brew Like a Monk (Stan Hieronymus)
Em segundo lugar, as receitas podem ter sofrido uma série de mudanças desde 1946, quando a St. Bernard começou a produzir as cervejas da Westvleteren. A St. Bernard afirma usar maltes escuros “para dar estabilidade”, enquanto os monges trapistas declaram usar apenas maltes pilsen e pale (o caramelo, presumivelmente, é responsável pela coloração escura). Ademais, a linha St. Bernardus é pasteurizada antes de ser exportada para muitos países (entre os quais, suponho, o Brasil), o que interfere na maturação na garrafa. Do lado dos trapistas, todo o equipamento produtivo da abadia de São Sisto foi renovado sob supervisão dos técnicos de Westmalle (antes, o monastério usava fermentadores de madeira, e hoje emprega tanques de inox), o que possivelmente acarretou mudanças no processo e na receita. Stan Hieronymus cita pelo menos mais uma diferença crucial aferida por medições técnicas: enquanto a St. Bernardus Abt 12 possui 22 unidades de amargor (IBU), a Trappist Westvlereten 12 ostenta potentes 38 IBUs, o que explica sua poderosa sensação de amargor. Sabendo-se que o estilo tradicionalmente admite entre 20 e 35 IBUs segundo o BJCP (e entre 20 e 50 IBUs segundo o mais modernizado guia da Brewers Association), isso atesta de forma eloquente as diferenças entre as duas.

O veredito inevitável a que fui impelido por meus sentidos e minhas leituras é o de que as duas não são, definitivamente, a mesma cerveja. É verdade que diferenças na safra, na refermentação na garrafa ou no tempo transcorrido entre o envase e o consumo poderiam produzir pequenas alterações no aroma, sabor e sensação. Mas acho que estamos diante de algo que vai além disso, envolvendo diferenças nas cepas de levedura (que são a alma das cervejas belgas), nos maltes e nos índices de amargor. Isso inclusive ajudaria a explicar as diferentes percepções da cerveja pelo público norte-americano, que entronizou a Trappist Westvleteren 12 como melhor cerveja do mundo. Entre todas as dark strong ales trapistas, a Westvleteren exibe o maior índice de amargor (seguida de perto pelos 35 IBUs da Chimay Azul), o que bate em cheio com o gosto pelas cervejas amargas do público norte-americano.

Duas perguntas não querem calar: a Westvleteren é mesmo a melhor cerveja do mundo? Entre a St. Bernardus e a Westleteren, qual é melhor? Quanto à primeira pergunta, acho que minha posição já deve ter ficado clara ao longo deste artigo. Quanto à segunda, digamos apenas que “melhor” ou “pior” não dependem inteiramente de uma avaliação objetiva, esbarrando sempre em critérios e preferências que são, pelo menos em parte, pessoais. Eu gosto mais da complexidade aromática da Westvleteren, mas não posso negar que o perfil maltado da St. Bernardus é mais sedutor, para quem prefere esse aspecto. Aí vai de cada um: quando tiver a oportunidade de por suas mãos em uma das cobiçadas garrafinhas sem rótulo da trapista, não deixe de bebê-la tendo ao lado um copo da sempre companheira St. Bernardus e tire suas próprias conclusões!