sábado, 15 de junho de 2013

Cervejas selvagens - Parte V: O mosto de uma lambic


Na última parte desta matéria, tivemos a oportunidade de analisar em detalhes o longo ciclo microbiológico que torna a fermentação das lambics um dos mais complexos processos de produção cervejeira do mundo – senão o mais complexo! O vale do rio Senne, pequena região na Bélgica que compreende a capital Bruxelas e a área rural a oeste dela, levou o processo à perfeição ao longo de muitas gerações, desenvolvendo toda uma gama de métodos para garantir seu sucesso. Para se produzir uma boa lambic, não basta deixar o mosto à ação da natureza e rezar para tudo dar certo: é preciso tomar cuidados que passaremos a analisar agora e nas próximas partes desta matéria.

Esses cuidados começam pela própria composição do mosto. O mosto, base a partir da qual qualquer cerveja é produzida, é preparado a partir da fervura de água com grãos (principalmente, mas não exclusivamente, o malte de cevada) e lúpulo. Ao final da fervura, obtém-se uma solução rica em carboidratos extraídos dos grãos, que serão posteriormente fermentados pelas leveduras. Há um ditado que diz que o cervejeiro não faz cerveja; ele faz mosto. Quem faz a cerveja são as leveduras. O adágio não poderia ser aplicar mais adequadamente às lambics, já que, nelas, o cervejeiro nem sequer inocula o mosto com as leveduras: ele apenas prepara o banquete e espera que os microorganismos se instalem e se fartem dos nutrientes disponíveis. Para que isso funcione bem, é preciso selecionar os ingredientes e prepará-los tendo em vista as peculiaridades do ciclo fermentativo que a cerveja irá sofrer. Vejamos, então, como é preparado o mosto de uma lambic.

Trigo e malte de cevada: a dupla dinâmica

Da esquerda para a direita, 
espigas de trigo e cevada.
Fonte: www.inforural.com.mx
As lambics belgas empregam apenas dois tipos de grãos em sua produção: malte de cevada (do tipo “pilsner”, ou seja, o mais claro) e trigo não malteado. A proporção de trigo na receita pode chegar a 40% (em relação ao total de carboidratos), embora normalmente fique em torno de um terço. Essas quantidades relativas parecem vir de longuíssima data. Um regulamento de 1137 já dava aos produtores de cerveja da região privilégios para a moagem do trigo (além do malte de cevada), e um relato de 1559 das cervejas da área descreve uma proporção de trigo para malte de cevada idêntica à que ainda se observa até hoje.

A importância do trigo na receita de uma lambic nos autoriza a categorizar o estilo entre as “cervejas de trigo”, portanto. Mas por que o trigo não-malteado? Além das witbiers, as lambics são o único estilo cervejeiro que ainda emprega o trigo “cru” até hoje, e em enormes quantidades. Não seria mais eficiente usar o trigo malteado (como nas demais cervejas de trigo), que fornece mais açúcares fermentáveis para uma produção mais eficiente de álcool? Aí é que mora a particularidade do mosto de uma lambic: enquanto qualquer produtor busca compor o seu mosto de modo a facilitar uma fermentação rápida, o produtor de lambics precisa atingir uma composição variada de carboidratos, um verdadeiro labirinto de açúcares, nem todos fermentáveis pelas leveduras cervejeiras convencionais. Como vimos, a primeira fermentação alcoólica de uma lambic é realizada pelas leveduras do gênero Saccharomyces (como em qualquer outra cerveja), mas ainda há outras etapas importantes depois disso. Para que elas ocorram, é preciso que sobrem nutrientes o bastante depois da ação das leveduras convencionais, e a única maneira de fazer isso é lotar o mosto de açúcares que as Saccharomyces não conseguem fermentar.

Um mosto que, em qualquer ale ou lager, resultaria em uma cerveja doce demais, com muitos açúcares residuais não fermentados pelas leveduras, é perfeito para um ciclo fermentativo tão longo quanto o da lambic, com microorganismos capazes de consumir todo tipo de carboidrato e realizar a superatenuação. O trigo cru fornece uma alta quantidade de amido, que as leveduras comuns são incapazes de metabolizar e que, por isso, irá permanecer no mosto até o momento em que começará a ser consumido pelas Brettanomyces, quase um ano depois do início da fermentação. Além disso, o trigo não-malteado melhora a estabilidade da cerveja, o que é importante para um produto que precisa de até três anos de maturação antes do engarrafamento.

A mostura túrbida

O mosto de uma lambic é obtido por um complicado processo de infusão dos grãos conhecido como “mostura túrbida” (turbid mash). Normalmente, uma mostura convencional (“de infusão”) é feita infundindo-se os grãos moídos em água quente com uma ou duas pausas em temperaturas pré-determinadas. Já nas lambics, o processo começa adicionando-se uma pequena quantidade de água, relativamente fria, aos grãos moídos. Então se retira parte dessa água (as tinas de mostura dos produtores de lambic são equipadas com discos perfurados que facilitam a separação da água e dos grãos), que é levada a outro recipiente para aquecer até quase ferver, e depois retornada para o recipiente com os grãos, aumentando a temperatura da mistura. Esse procedimento é realizado várias vezes até se atingir a temperatura adequada. O processo, típico da escola belga, foi provavelmente motivado por uma lei holandesa de 1822 que fixava os impostos a serem pagos pelas cervejarias com base na capacidade de sua tina de mostura. Como resultado, os cervejeiros eram incentivados a incluir a maior quantidade possível de grãos nas menores tinas possíveis, adicionando e retirando a água aos poucos.

Mostura túrbida na cervejaria De Troch, 
que produz a linha Chapeau.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
Eis aí um caso em que a tributação foi grandemente responsável pelo sucesso de um estilo cervejeiro. O procedimento, inicialmente motivado por razões econômicas, era perfeito para a produção das lambics, pois resultava em cervejas com uma composição muito variada de carboidratos e altas quantidades de amido e açúcares não fermentáveis pelas leveduras convencionais – um banquete para os estágios finais da fermentação. Isso ocorre porque a fervura precoce de partes da água desnatura as enzimas do malte e as impede de decompor totalmente o amido em carboidratos menores e mais simples. A mostura túrbida produz grandes quantidades de um precipitado de textura borrachuda que é descartado junto com o bagaço dos grãos. Depois que essa sopa de grãos é filtrada, obtém-se um líquido de aspecto leitoso, rico em amido.

Muito ou pouco lúpulo?

A sensação amarga de uma lambic clássica é bastante sutil, e os principais guias cervejeiros apontam um índice de amargor muito baixo, de no máximo 20 IBUs, mas normalmente bem abaixo disso. Para efeitos de comparação, uma pale ale belga pode atingir os 30 IBUs, e uma cerveja de lupulagem assertiva, como uma India pale ale norte-americana, pode chegar a ter até 70 IBUs. Isso tudo nos levaria a crer que as lambics recebem pequenas quantidades de lúpulo, já que a erva é a principal responsável pelo amargor de uma cerveja. Certo?

Errado. Na verdade, o mosto de uma lambic é pesadamente lupulado, até seis vezes mais do que uma ale belga de teor alcoólico comparável. O lúpulo não adiciona apenas amargor e aromas à cerveja – mais que isso, e historicamente talvez até mais importante – ele melhora a estabilidade do produto, agindo como antibacteriano natural e impedindo a proliferação de microorganismos gram-positivos indesejados. É esse efeito antibacteriano que os produtores de lambics buscam no lúpulo, em especial para inibir o crescimento das Enterobacter (bactérias nocivas que atuam no primeiro momento da fermentação das lambics) e dos Lactobacillus. Uma cerveja não inoculada, exposta ao ar livre, que fermentará e maturará durante três anos antes de ser engarrafada precisa de algum tipo de proteção, e o lúpulo fornece o recurso ideal. O objetivo desse controle é garantir que o nível de acidez da cerveja não fique excessivo e desequilibrado – já que uma boa lambic não é simplesmente a mais ácida, mas sim a mais harmônica.

Mas como é que se preserva o potencial antibacteriano do lúpulo sem que ele imprima amargor à cerveja? Para isso, os produtores de lambics empregam apenas e tão-somente lúpulo envelhecidos durante dois ou três anos. As cervejarias podem comprar os lúpulos em flor ainda jovens e deixá-los envelhecer, ou comprar dos produtores lúpulos de safras antigas que não tenham sido vendidos. Ao longo desse tempo, o lúpulo oxida, e os ácidos alfa perdem seu potencial de produção de amargor, mas preservam sua capacidade antibacteriana. Como resultado, a cerveja fica com as propriedades bactericidas, com os taninos e com os polifenóis do lúpulo, mas não fica mais amarga por causa disso. Qualquer variedade de lúpulo é adequada (frequentemente em flor, já que o lúpulo oxida mais rapidamente dessa forma), mas normalmente se empregam variedades belgas, e ocasionalmente inglesas, alemãs ou tchecas, de preferência com baixos índices de ácidos alfa, ou seja, os chamados “lúpulos de aroma”, que já produzem pouco amargor naturalmente.

Lúpulos em flor envelhecidos, prontos para serem 
adicionados ao mosto de uma lambic.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
Além de perder seu potencial de amargor, o lúpulo envelhecido também perde seus óleos aromáticos, de modo que não transfere aromas tipicamente lupulados à cerveja. Dessa forma, uma lambic é, curiosamente, uma cerveja altamente lupulada, mas sem aroma nem amargor de lúpulo. Com o tempo, porém, os lúpulos envelhecidos adquirem aromas desagradáveis que podem remeter a palha e principalmente a queijo e mofo, e que se transferem inevitavelmente ao mosto. Essas características não devem estar presentem em quantidades relevantes no produto final: idealmente, elas irão gradualmente se dissipar durante a longa fermentação ou serão encobertas e mascaradas pelos intensos aromas típicos das lambics.

O mosto obtido com esses ingredientes e esse peculiar procedimento de brassagem ainda enfrenta uma longuíssima fervura de até seis horas contínuas antes de ser posto para fermentar. No passado, com fontes de calor e recipientes menos eficientes, a fervura de uma lambic chegava a durar até 12 horas, mas hoje tem progressivamente sido reduzida a quatro horas. Todo esse tempo é essencial para precipitar a imensa quantidade de proteínas e taninos do mosto. Assim que o mosto termina de ferver, precisa ser resfriado para dar início à instalação dos microorganismos e à fermentação. Depois disso, inicia-se todo um novo conjunto de cuidados para garantir o bom andamento da fermentação, que analisaremos na próxima parte desta matéria. Não perca!

sábado, 1 de junho de 2013

Cervejas selvagens - Parte IV: O ciclo fermentativo das lambics


Na última parte desta matéria, tivemos a oportunidade de olhar com mais cuidado o que define uma lambic e discutir um pouco a ideia de “fermentação espontânea” que caracteriza seus métodos de produção. Vimos que a fermentação das lambics é produzida por uma série de microorganismos, incluindo fungos e bactérias de diferentes gêneros, espécies e cepas, cujo número total pode ultrapassar duzentos! Cada um desses microorganismos age em momentos diferentes e traz contribuições diferentes para uma lambic.

Normalmente, numa cerveja ale ou lager convencional, a fermentação é realizada por uma única espécie de levedura (mais frequentemente uma única cepa isolada em laboratório) que leva em torno de uma semana para completar o processo e transformar todos os açúcares fermentáveis em álcool. Numa lambic, o processo todo chega a durar até três anos e se divide em pelo menos 4 diferentes fases, desde o momento em que o mosto é resfriado até a hora de engarrafar. Todos os microorganismos podem estar presentes desde o primeiro dia, mas as dinâmicas de crescimento microbiológico e as mudanças de teor alcoólico e pH fazem com que, a cada momento, um tipo de microorganismo se torne dominante no mosto e esteja presente em quantidade suficiente para agir decisivamente sobre a cerveja em fermentação. Vejamos quem são e o que fazem essas criaturas em cada etapa do processo.

1ª etapa: o pesadelo das lambics

A primeira etapa da fermentação de um mosto de lambic é também a mais perigosa, e aquela que mais tem causado problemas em relação aos padrões sanitários para a produção de cervejas na União Europeia. Diferentemente do que ocorre com as lambics, o mosto de uma ale ou lager convencional é inoculado com quantidades cavalares de leveduras, que se reproduzem a assumem a dianteira do processo imediatamente, sem dar a outros organismos a chance de se reproduzirem. Com as lambics, o papo é outro: como o cervejeiro não adiciona leveduras ao mosto, a quantidade de leveduras recebidas do ar não é suficiente para iniciar imediatamente a fermentação, de modo que o mosto se torna o ambiente ideal para o crescimento de outros microorganismos agressivos, como bactérias do grupo Enterobacter, bastante perigosas para a saúde e associadas à deterioração de alimentos, incluindo variedades simpáticas como Escherichia coli (sim, os famigerados coliformes fecais) e Salmonella.

Escherichia coli. Não são tão bonitinhas 
quanto gatinhos filhotes?
Fonte: depositphotos.com
Essas bactérias produzem imensas quantidades de ácido lático e acético – o ácido lático é desejável, mas o ácido acético deve ser limitado às menores concentrações possíveis para evitar uma acidez agressiva e desagradável. Boa parte do ácido acético de uma lambic é produzida nessa primeira etapa da fermentação. Além disso, as Enterobacter produzem odores e sabores desagradáveis, que deverão se dissipar nas etapas subsequentes da fermentação, como DMS (que lembra legumes cozidos e milho verde), mofo e um aroma fecal – delicioso, como você já deve imaginar. Nesse primeiro momento, também ocorre a atuação de leveduras da espécie Kloeckera apiculata, responsável pela quebra de proteínas que tenham sobrado no mosto.

Toda essa atividade começa alguns dias após a brassagem e dura aproximadamente uma semana. Há pouquíssimas contribuições positivas trazidas por esse primeiro momento do ciclo, mas ele é uma consequência inevitável do fato de que o mosto não é inoculado artificialmente. O objetivo de todo produtor de lambic é apressar o máximo possível o término dessa fase e iniciar com rapidez a próxima. Esse é um dos motivos pelos quais o mosto das lambics só é brassado durante as estações frias do ano: as altas temperaturas do verão iriam fazer com que essas bactérias nocivas dominassem o mosto com muita violência. Felizmente, o feitiço das Enterobacter acaba virando contra o feiticeiro: elas produzem tanto ácido que rapidamente derrubam o pH do mosto de 5.1 para 4.6, criando um ambiente desfavorável para seu próprio crescimento e dando espaço para outros microorganismos competirem por nutrientes. Como essas bactérias não suportam baixo pH e níveis de álcool superiores a 2%, rapidamente morrem na etapa seguinte.

As autoridades sanitárias da União Europeia começaram recentemente a questionar a ocorrência de bactérias nocivas à saúde na produção de lambics. Isso, somado ao desejo de minimizar as características negativas do produto associadas a essa primeira etapa, fez com que alguns produtores começassem a adotar medidas para interromper ou apressar artificialmente a fase enterobacteriana. Uma forma de fazer isso é adicionar ácido lático alimentício ao mosto para derrubar o pH subitamente e impedir a ação dessas bactérias. Outra forma, mais natural e equilibrada, é adicionar bactérias láticas para que ocorra a formação natural de ácido lático, inibindo o crescimento das Enterobacter, o que propicia um início mais rápido da fermentação alcoólica e um crescimento mais vigoroso das leveduras. Uma vez que os efeitos nocivos dessa fase não imprimem consequências decisivas para o produto final se tudo der certo, cabe a cada produtor fazer a escolha de interferir ou não no processo secular e natural de fermentação das lambics.

2ª etapa: a primeira fermentação alcoólica

Assim que as Enterobacter começam a minguar, entram em cena personagens com os quais qualquer cervejeiro está muito mais familiarizado: as leveduras do gênero Saccharomyces, as mesmas usadas para fermentar quaisquer outros tipos de cervejas. Existe uma lenda de que apenas as leveduras Brettanomyces atuariam na fermentação das lambics, mas a verdade é que o grosso do álcool é produzido por diferentes espécies de Saccharomyces, como em qualquer outro estilo cervejeiro. As espécies mais frequentes são a S. cerevisiae, a mesma das ales, e a S. bayanus, muito usada na produção de vinhos espumantes.

As Saccharomyces cerevisiae brigam com os cães 
pelo posto de “melhor amigo do homem”.
Fonte: www.art.com
As Saccharomyces começam a trabalhar entre 3 dias e 4 semanas depois do resfriamento do mosto, a depender das condições atmosféricas e de temperatura, e só terminam seu trabalho três ou quatro meses depois disso. Durante esta etapa, em torno de 60% dos açúcares do mosto são convertidos em álcool etílico, o que elimina definitivamente todas as Enterobacter que possam ter sobrado da primeira etapa. Esta segunda parte da fermentação, portanto, assemelha-se à fermentação das ales, inclusive no sentido de que as leveduras se acumulam no topo do líquido e frequentemente extravasam para fora dos barris de madeira onde o mosto fermenta, mas a diferença é que, no caso das lambics, ela é bem mais lenta e ocorre num ambiente com pH mais baixo do que o de uma ale convencional. Além do álcool, as Saccharomyces produzem todos os compostos químicos e aromáticos normalmente encontrados nas ales, inclusive ésteres frutados típicos de ales (lembrando bananas, casca de maçã etc.) que serão depois reconvertidos pela ação metabólica das Brettanomyces para dar lugar a outros aromas mais característicos das lambics.

Eventualmente, as Saccharomyces irão parar de se reproduzir (o que ocorre assim que o pH cai abaixo de 4.5), consumirão todos os açúcares que elas conseguem metabolizar (apenas uma parcela dos açúcares totais do mosto de uma lambic) e darão espaço para o crescimento de outros microorganismos mais tolerantes e com maior capacidade de metabolização de açúcares. Como a lambic não é filtrada, o levedo morto acumula-se no fundo do barril e, sofrendo autólise, libera nutrientes que irão fornecer alimento para os microorganismos responsáveis pelas próximas etapas da fermentação. Uma nova geração da microflora irá prosperar sobre os restos mortais das Saccharomyces.

3ª etapa: a fermentação lática

A terceira etapa começa ao final da primeira fermentação alcoólica, quando as Saccharomyces dão lugar às bactérias produtoras de ácido lático, 3 a 5 meses depois do início do processo todo. Como as lambics são produzidas durante o inverno, é normal que isso ocorra no final da primavera, quase no verão, de modo que a fermentação lática se estende pelas estações quentes do ano, durante um período que varia entre 3 e 7 meses, a depender das condições climáticas.

Se a acidez das lambics for chocante demais 
para você, culpe as Pediococcus.
Fonte: bioweb.usu.edu
Como o mosto de uma lambic é pesadamente lupulado, as substâncias antibacterianas oriundas do lúpulo inibem o crescimento de bactérias do gênero Lactobacillus, que não têm, portanto, quase nenhum papel na produção de lambics. Isso cria o ambiente ideal para a proliferação das bactérias do gênero Pediococcus, mais resistentes ao lúpulo, que são as responsáveis pela maior parte do ácido lático de uma lambic. Essas bactérias convertem carboidratos em ácido lático. No início desta fase, cerca de 60% dos açúcares totais do mosto já haviam sido consumidos pelas Saccharomyces; ao final da fermentação lática, esse percentual subirá para aproximadamente 80%, derrubando a gravidade da cerveja para cerca de 1.012 e deixando apenas cerca de 20% dos carboidratos iniciais para a próxima etapa.

Como resultado da ação da Pediococcus e da alta produção de ácido lático, a lambic adquire um gosto extremamente ácido nesta etapa, que depois irá se atenuar e “arredondar” nas etapas posteriores. A fermentação lática também propicia a formação de grandes quantidades de um éster chamado lactato de etila, que dá às lambics um aroma caracteristicamente fresco e frutado, bem distinto do perfil das ales. As bactérias também produzem grandes quantidades de diacetil, que dão à cerveja um gosto amanteigado desfavorável para lambics, mas todo esse diacetil é eliminado nas etapas posteriores da fermentação e maturação da cerveja.

As Pediococcus tendem a formar uma película viscosa no topo do líquido, composta por ácidos, carboidratos e proteínas, que tem aspecto oleoso e se aglutina em formas que lembram “cordões”. Os produtores referem-se a esta etapa dizendo que a lambic está “doente”. Ela já pode ser bebida, mas tem textura oleosa e viscosa e ainda não demonstra as características típicas da ação das Brettanomyces, que são a marca registrada do estilo. Essa película oleosa começa a se dissipar com a primeira noite fria do ano, normalmente no outono, e a partir daí já é considerada pronta para ser consumida ou blendada. Mas isso não significa que esteja em seu ponto ideal de maturação.

4ª etapa: as Brettanomyces entram em cena

A quarta e última etapa do ciclo fermentativo das lambics é aquela que dá ao estilo suas características mais distintas: os aromas selvagens tipicamente produzidos pelas Brettanomyces e o espantoso grau de atenuação, ou seja, de consumo de açúcares, o que deixa a cerveja extremamente seca. Há pelo menos cinco espécies distintas de leveduras dentro do gênero Brettanomyces, e dezenas de cepas ou variedades. Todas compartilham algumas características comuns, mas cada uma apresenta peculiaridades em seu comportamento metabólico. As mais características das lambics são a B. bruxellensis, nativa da cidade de Bruxelas (provavelmente dos antigos pomares de cerejas da cidade), e a B. lambicus, espalhada pelo cinturão rural a oeste da capital, conhecido como Pajottenland. Esta é a denominação tradicionalmente usada pelos cervejeiros, muito embora os biólogos hoje considerem que a B. lambicus seja na verdade uma variação da mesma espécie da B. bruxellensis. Como a ocorrência de cada espécie e cepa muda de acordo com o ecossistema local, cada cervejaria possuirá um terroir próprio, fruto da composição microbiológica de suas instalações e seu entorno, dando a cada lambic traços particulares e irreprodutíveis por outros produtores.

Acho que a Brettanomyces daria um ótimo mascote para 
o FC Brussels, time de futebol da capital belga.
Fonte: www.etslabs.com
Brettanomyces exibem características metabólicas que as tornam únicas entre todas as espécies de leveduras. Em primeiro lugar, elas possuem a capacidade de metabolizar e converter em álcool praticamente qualquer tipo de carboidrato, incluindo o amido, o que significa que, dado o tempo suficiente, as Brettanomyces vão consumir praticamente todos os açúcares de uma cerveja, deixando-a completamente seca. Esse fenômeno é conhecido como superatenuação. Quando começa esta etapa, a cerveja ainda tem uma certa doçura residual e contém cerca de 20% de seus açúcares originais. A superatenuação não ocorre da noite para o dia: as Brettanomyces vão lenta e progressivamente consumindo esses 20% dos açúcares, juntamente com os nutrientes oriundos das leveduras que morreram até esse ponto. Uma lambic pode chegar a demorar três anos para secar completamente, muito embora normalmente finalize esta etapa da fermentação em até 16 meses – ou seja, quando atinge quase dois anos de idade.

As Brettanomyces não produzem apenas álcool. Além da superatenuação, elas são responsáveis pelos aromas típicos das lambics, especialmente por meio de uma substância chamada 4-etil-fenol, cujo aroma, absolutamente particular, é normalmente descrito como “animal”, com remissões a couro cru e cobertor de cavalo. Também produzem, em menor quantidade, ácidos e ésteres caprílicos e cápricos, associados a aromas caprílicos (semelhantes a queijo de cabra) e substâncias conhecidas como tetra-hidropiridinas, cujo aroma é descrito como remetendo a rato. Além dos típicos aromas “animais”, essas leveduras “selvagens” também sintetizam outros aromas cruciais para uma boa lambic, como ésteres frutados (especialmente o lactato de etila), e metabolizam o acetato de isoamila produzido pelas Saccharomyces. O acetato de isoamila tem um aroma característico de banana e é uma das marcas das ales belgas, mas deve estar praticamente ausente em uma lambic.

Muitas pessoas cometem o equívoco comum de imaginar que as Brettanomyces sejam microorganismos que produzem sempre cervejas ácidas; contudo, essas leveduras produzem pequenas quantidades de ácidos em comparação com outras bactérias necessárias para a produção de cervejas selvagens realmente ácidas. Quando expostas a algum nível de oxigenação, as Brettanomyces podem produzir quantidades moderadas de ácido lático ou acético; no entanto, se forem usadas apenas na refermentação na garrafa, praticamente não contribuem com a acidez da cerveja. No caso das lambics, como vimos, a maior parte da acidez vem da ação da Pediococcus. Esta última fase apenas complementa a acidez e a torna mais elegante e redonda.

As Brettanomyces são leveduras oxidativas, que precisam de uma certa concentração, não muito elevada, de oxigênio para se desenvolverem. Contudo, durante o período em que se tornam dominantes, as Brettanomyces formam uma película espessa sobre o líquido, parecendo uma espuma grossa e branca, que protege a cerveja e a isola do ar, impedindo uma oxidação excessiva do líquido. Como resultado, essa película inibe a proliferação de bactérias aeróbicas, como aquelas do gênero Acetobacter (bactérias acéticas), que imprimem uma acidez muito agressiva à cerveja. Ela também pode conter quantidades variáveis de outras leveduras oxidativas, como a Candida lambica ou a Pichia fermentans, que podem produzir uma sensação levemente vínica, ou lembrando sidra.

A maturação estendida e a refermentação na garrafa

A rigor, assim que a lambic se torna seca e sua gravidade chega próxima de 1.000 (indicando que praticamente todos os açúcares se esgotaram), a fermentação alcoólica termina. Contudo, a cerveja continua evoluindo ao longo do tempo, dentro dos barris, durante pelo menos mais um ano. Nesse último período de maturação estendida, a lambic pode receber mais características de madeira ou de oxidação, e, o que é o mais importante, o caráter aromático das Brettanomyces irá se aprofundar, intensificando os aromas animais e frutados típicos do estilo. É por isso que os produtores esperam até que a lambic tenha pelo menos três anos para que ela seja usada para blendar com outras lambics mais jovens na produção das gueuzes: a profundidade aromática de uma lambic bem maturada irá refletir-se no caráter bem-acabado e maduro do produto final.

Quando uma lambic bem maturada é misturada a uma lambic jovem e o blend resultante é engarrafado, os açúcares residuais da lambic jovem (que apenas iniciou a quarta etapa da fermentação e, portanto, ainda não sofreu superatenuação) darão origem a uma nova refermentação na garrafa, reiniciando a quarta etapa do processo. Como, neste caso, a cerveja está na garrafa e não mais no barril, o gás carbônico produzido nessa fermentação alcoólica não tem para onde escapar e se dissolve no líquido, produzindo carbonatação. É assim que todas as gueuzes e fruit lambics adquirem sua intensa e característica sensação frisante!

Se quisermos resumir todas as informações que vimos, podemos dividir o ciclo microbiológico das lambics em cinco etapas: a primeira e mais curta, dominada pelas bactérias do tipo Enterobacter, é perigosa por produzir compostos desagradáveis e nocivos à saúde. A segunda, realizada pelas leveduras do gênero Saccharomyces, produz a maior quantidade do álcool de uma lambic. A terceira, dominada pelas bactérias Pediococcus, é responsável pela maior parte da acidez da cerveja. A quarta é realizada pelas Brettanomyces e corresponde à superatenuação e à produção dos aromas típicos do estilo. Por fim, a quinta é uma longa maturação que apura o paladar e os aromas do produto.

Na próxima parte desta matéria, entenderemos quais são os procedimentos empregados pelos produtores para garantir o sucesso de todo esse longo e complexo ciclo fermentativo, bem como veremos algumas inovações introduzidas modernamente por algumas cervejarias. Analisaremos técnicas e métodos produtivos antes de podermos compreender o perfil sensorial do produto resultante desse longo processo!