segunda-feira, 15 de julho de 2013

Cervejas selvagens - Parte VII: Finalizando uma lambic


Sim, é verdade que esta série de matérias sobre as cervejas selvagens pode estar parecendo um teste de paciência para os meus leitores. Afinal de contas, quando vamos “provar” juntos as lambics de que estamos falando há tanto tempo? Calma, chegaremos lá no momento adequado! Se você acha que está esperando demais, pense em todo o tempo durante o qual o produtor de uma lambic fica aguardando pacientemente até que ela fermente, mature e atinja o ponto ideal – o que, como vimos, pode facilmente ultrapassar três anos! Nossa série durará (ligeiramente) menos que isso!

Mas, mesmo depois de todo esse tempo, o trabalho do produtor não terminou. E é justamente no final que a intervenção dele se faz mais necessária. Veremos, então, o que é preciso para finalizar uma boa lambic para que ela chegue perfeita ao seu copo!

Provar e blendar

É nessa fase que entra, de forma determinante, a perícia do produtor para garantir a boa qualidade do produto final. Cada barril fornece um ambiente físico-químico diferente, e cada brassagem produzirá um mosto com composição microbiológica distinta, de modo que as lambics de dois barris diferentes irão evoluir de maneiras completamente divergentes. Algumas se tornam intensamente ácidas, outras ganham aromas e sabores acentuados da madeira, outras ainda exibem sinais de oxidação mais evidentes, enquanto em outras as Brettanomyces imprimem aromas frutados e animais mais intensos. Enquanto algumas desenvolvem mais “caráter” (aromas e acidez elevados), outras parecem ficar mais neutras.

Prova de barris na 
cervejaria Belle Bue.
Fonte: Gueuze & Kriek
(
Jef Van den Steen)
É fundamental que o produtor prove constantemente o produto de cada barril para determinar quando a cerveja está no ponto para ser usada. Alguns barris se prestam melhor para serem blendados jovens, alguns são propícios para receberem a adição de frutas, outros já exibem mais potencial para envelhecerem bem durante três anos e contribuírem com uma gueuze de grande complexidade. Ao final do processo, o produtor precisará decidir se vai servir a lambic pura, sem blendar, ou se vai realizar uma mistura de vários barris para produzir uma gueuze ou uma lambic de frutas. Nesse caso, quais barris serão misturados a quais outros, e em que proporções? Essas decisões dependem do seu faro e da sua experiência como blender.

Hoje em dia, apenas uma pequena porção das lambics produzidas (aproxidamente 10%) é vendida sem blendar, de modo que a maioria irá ser misturada. A blendagem, portanto, é uma parte crucial do processo de produção das lambics. Ela não é exclusiva da produção de lambics, podendo ser empregada para se produzir qualquer estilo cervejeiro com três principais objetivos. Em primeiro lugar, blendar pode ajudar a atenuar ou disfarçar defeitos e problemas de produção. No caso de uma lambic, um barril que tenha ficado excessivamente acético pode resultar em um produto equilibrado se for misturado a outros barris menos ácidos, por exemplo. Em segundo lugar, o blend resultante combina características de vários barris, de modo que o produto final se torna mais complexo e interessante do que cada um dos barris separadamente. Se tivermos um barril extremamente frutado, outro bem amadeirado, outro mais terroso, e por fim um fortemente animal, a mistura resultante terá uma intrigante complexidade.

Por fim, a blendagem é empregada de forma a garantir a consistência do produto final. A fermentação das lambics e a maturação em madeira são procedimentos de resultados imprevisíveis. É possível detectar variações perceptíveis em safras ou mesmo em lotes diferentes de uma mesma lambic. Contudo, o produtor precisa obter alguma regularidade em sua cerveja, para que seus consumidores não estranhem variações excessivas e possam reconhecer sempre a “marca” de cada produtor. Isso requer muita habilidade e experiência para selecionar os barris de forma a conseguir enfatizar consistentemente as mesmas características. Claro que o terroir de cada cervejaria vai tender a produzir cervejas com um determinado perfil; contudo, uma blendagem competente é essencial para trazer à tona e explorar da melhor maneira possível esse terroir dentro da identidade que o produtor procura para a sua lambic. Um produtor pode querer uma cerveja mais ou menos ácida, com aromas mais animais, ou talvez mais frutados, quem sabe com um toque cítrico ou amadeirado. É sua perícia com a blendagem que vai garantir que sua lambic mostre isso ano após ano.

A 3 Fonteinen é um blender 
independente que começou a fazer 
a transição para uma cervejaria.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
A importância da blendagem é tão grande que existem produtores que realizam exclusivamente essa parte do processo. Existem na Bélgica, hoje em dia, apenas 10 cervejarias que produzem suas próprias lambics desde a brassagem até o engarrafamento. Além delas, existem 5 “blenders” independentes, que não possuem a estrutura para a produção e a inoculação do mosto, e que apenas o compram, recém-brassado, de produtores estabelecidos para fermentá-los e maturá-los em seus próprios barris e realizar a blendagem. Apenas três produtores ainda vendem seu mosto excedente hoje em dia: a Boon, a Lindemans e a Girardin. Misturando o produto dessas três cervejarias, os blenders independentes conseguem obter lambics que mesclam as características do terroir de cada uma.

Finalizando uma gueuze

A gueuze é possivelmente o subestilo mais festejado e prestigiado entre os produtores e amantes de lambics. É na gueuze que um produtor ou blender normalmente exibe seu virtuosismo e todo o caráter de sua cerveja.  Uma gueuze é o produto da refermentação em garrafa de um blend entre lambics puras (isto é, sem adição de frutas) de diferentes idades, tendo a parte mais antiga pelo menos três anos de idade. O mais comum é que sejam misturadas lambics de um, dois e três anos. A proporção entre as partes varia de acordo com cada produtor: pode ser de 50% de lambic jovem, ou três partes iguais, ou mesmo um predomínio da lambic mais velha.

Em qualquer outro estilo cervejeiro, a refermentação é realizada adicionando-se novas leveduras e um pouco de açúcar na garrafa junto com a cerveja, o que reinicia a fermentação. O mesmo não ocorre com as lambics, que não recebem nem um, nem outro. Como vimos, a fermentação de uma lambic se estende por até dois anos, de modo que uma lambic de um ano de idade ainda possui uma certa quantidade de açúcares residuais a serem fermentados. Quando uma lambic jovem (de um ano de idade) e uma madura (de dois ou três anos) são misturadas, as leveduras “dormentes” da lambic velha irão encontrar na jovem mais açúcares para fermentar, e darão início a uma nova fermentação alcoólica. Como a garrafa é vedada, o gás carbônico produzido não tem para onde escapar e se dilui no líquido, dando origem à altíssima carbonatação que é típica de uma gueuze. Essa última fermentação normalmente demora por volta de seis meses após o engarrafamento, e apenas então a cerveja pode ser comercializada. Desde a produção do mosto até o consumo, portanto, a parte mais velha da lambic terá passado por pelo menos 3 anos e meio de fermentação e maturação.

A gueuze refermenta nas garrafas 
na cervejaria Cantillon.
Fonte: acervo pessoal
A lambic jovem é essencial para fornecer açúcares fermentáveis, enquanto as lambics velhas fornecem uma boa concentração de leveduras do gênero Brettanomyces, resultando em aromas mais maduros e desenvolvidos. Uma gueuze tradicional, para atingir a sua enorme profundidade aromática, deve levar em sua composição uma parte de lambic que tenha maturado durante pelo menos três anos em barris de madeira – mais do que em qualquer outro estilo cervejeiro conhecido. O produtor normalmente separa para isso os barris que tenham desenvolvido mais “caráter”, ou seja, maior complexidade de aromas e acidez mais bem acabada.

Frutas

“Mas lambic não é aquela cerveja com cereja ou framboesa? Estamos falando do assunto há tanto tempo e não ouvi uma palavra sequer sobre as frutas!” É, muitas pessoas associam as lambics imediatamente às cervejas com frutas, o que é um equívoco. Existem muitas lambics sem frutas, assim como existem cervejas de frutas que não são lambics e nem mesmo selvagens!

Na realidade, as frutas só entram na última etapa da preparação de uma lambic de frutas. Até o século XIX, as frutas eram adicionadas apenas pelo café ou estabelecimento que vendia a lambic aos consumidores finais, como forma de diversificar sua “carta” de cervejas numa época em que a cervejaria de cada região produzia e vendia uma única cerveja. Hoje em dia, porém, as próprias cervejarias passaram a assumir essa responsabilidade e preparar suas próprias lambics com frutas. O sucesso das fruit lambics foi tão grande que, atualmente, sua produção e consumo ultrapassa o das lambics “puras”!

A produção de lambics com frutas começa de forma exatamente igual à de uma lambic pura. A diferença é que, num dado momento do ciclo fermentativo, o produtor adiciona frutas ao barril (ou a um tanque de aço para onde desloca a cerveja), resultando em uma cerveja com cor, aroma e sabor da fruta escolhida. As frutas só entram em uma lambic quando ela já está pronta para servir ou blendar, o que ocorre entre um e dois anos após o início da fermentação. O produtor escolhe criteriosamente os barris que levarão frutas. Normalmente, ele evita lambics muito amargas, que não combinam bem com o sabor das frutas, bem como as muito ácidas, que podem encobrir a fruta. As cervejas de maior profundidade aromática também costumam ser reservadas para a produção de gueuze.

A fruta é tradicionalmente adicionada inteira, com casca e caroço. A casca é uma importantíssima fonte de leveduras selvagens que ajudarão a diversificar ainda mais o “mix microbiológico” da lambic, enquanto os caroços fornecem taninos e aromas peculiares que enriquecem uma fruit lambic. O ideal é usar a fruta fresca, mas, diante da escassez de pomares na região de Bruxelas, os produtores têm apelado cada vez mais para frutas congeladas ou, pior ainda, para polpa ou suco pasteurizado. A quantidade de frutas adicionada a uma lambic chega a até 30% da mistura total, em volume, o que normalmente garante uma excelente concentração dos aromas da fruta.

O blender Karel Goddeau adiciona cerejas 
para fazer sua Oude Kriek na De Cam.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
É ideal que a fruta tenha um bom balanço entre acidez e doçura. A acidez complementa de forma harmônica a própria cerveja, enquanto os açúcares da fruta são essenciais para darem início a uma nova fermentação. Sim, pois, quando a lambic recebe frutas, as leveduras têm à disposição um novo suprimento de açúcares para fermentar e transformar em álcool. Essa nova fermentação alcoólica (a terceira!) aumenta ainda mais a complexidade do produto. Mais de 95% dos açúcares originais da fruta são consumidos pelas leveduras, o que significa que a cerveja se torna seca novamente. No barril, sobram apenas os caroços. É um erro acreditar que lambics de frutas são docinhas: as que de fato possuem doçura acentuada receberam açúcar ou aspartame ao serem engarrafadas. Uma lambic de frutas tradicional é apetitosamente seca e ácida.

Após a introdução das frutas, o produtor ainda espera entre 6 e 9 meses para que essa nova fermentação se complete. Só depois disso a fruit lambic é engarrafada, seguindo o mesmo princípio da gueuze: lambics jovens, com açúcares residuais, são blendados com fruit lambics mais secas e velhas, e a mistura resultante sofre refermentação na garrafa (o que demora mais 6 meses), secando completamente e adquirindo uma típica e acentuada sensação frisante.

Uma lambic perfeita é uma obra-prima que combina magistralmente a ação do tempo e da tradição histórica com a competência de seu produtor. Diante de tempos de produção tão elevados, não deve causar espanto, portanto, o fato de as lambics, muitas vezes, terem preços ligeiramente acima das demais ales belgas. Uma boa gueuze demora pelo menos 3 anos e meio para ficar pronta, desde o dia da brassagem até a garrafa estar pronta para ser vendida. Da próxima vez que brindar com uma boa gueuze ou fruit lambic, faça uma respeitosa reverência a todo esse tempo durante o qual sua cerveja foi cuidadosamente preparada para chegar ao seu copo.

A produção de lambics é um empreendimento muito arriscado, devido ao enorme tempo de espera para o retorno dos investimentos (uma nova cervejaria demorará pelo menos 3 anos de meio para conseguir vender sua primeira "oude gueuze" tradicional), e economicamente pouco rentável, tanto é que boa parte dos produtores (sobretudo os blenders independentes) se dedica a essas cervejas paralelamente a outras atividades profissionais e ou à produção de outros rótulos mais comerciais, que são responsáveis por pagar as contas em dia enquanto o proprietário se diverte com sua paixão pelas cervejas selvagens!

Na próxima parte desta matéria, finalmente veremos o que todos esses procedimentos engendram no produto final. Começaremos falando sobre a acidez das lambics tradicionais para depois explorar melhor seus complexos aromas. Acompanhe!

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Cervejas selvagens - Parte VI: A magia da fermentação de lambics


Na parte anterior desta matéria, vimos que o mosto de uma lambic é cuidadosamente preparado a partir de uma mistura de malte de cevada e trigo não-malteado, e que recebe generosas doses de lúpulos envelhecidos e oxidados. Depois de um complicado processo de brassagem, obtém-se um líquido de aspecto leitoso, com uma variada composição de carboidratos, que irão nutrir as diversas gerações de microorganismos responsáveis pela fermentação da cerveja. Vejamos agora quais os métodos empregados pelos produtores para garantir o bom andamento dessa fermentação.

A “inoculação espontânea”

Assim que o mosto é preparado e termina de ferver, ele precisa ser resfriado antes que a fermentação de qualquer cerveja se inicie; em caso contrário, os microorganismos que deveriam realizar a fermentação iriam morrer! Cervejarias convencionais empregam para isso equipamentos que realizam uma troca de calor entre o mosto e a água fria, agilizando o processo e evitando o contato com o ar e a contaminação do líquido. No caso das lambics, porém, é essencial que o resfriamento ocorra “ao natural”, deixando o mosto em contato com o ar para que ele receba os microorganismos responsáveis pela fermentação, já que não será inoculado deliberadamente pelo cervejeiro.

O fotógrafo Andrew Verschetze flagrou o momento exato em que 
o mosto fumegante começa a ser bombeado para o 
enorme koelschip da cervejaria Timmermans.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
Para isso, o mosto é bombeado para o koelschip (ou “coolship”, como costuma ser chamado em inglês), um recipiente muito largo e raso à semelhança de uma piscina de pequena profundidade. O nome koelschip significa algo como “barco de resfriamento” e provavelmente é uma referência a técnicas medievais de produção cervejeira, nas quais o mosto era resfriado em grandes toras ocas de madeira, semelhantes a canoas. Esse tipo de equipamento já foi usado para a produção de quaisquer cervejas antes do século XIX, mas hoje sobrevive apenas entre os produtores de alguns estilos de cervejas selvagens, sendo essencial apenas na fabricação de lambics. Uma vez transportado ao koelschip, o mosto fica resfriando naturalmente durante várias horas ao longo da noite, até atingir uma temperatura ideal de cerca de 20º C.

Tradicionalmente, as lambics são produzidas apenas durante as estações frias do ano, para aproveitar as baixas temperaturas da noite e agilizar o resfriamento do mosto, minimizando a atuação de bactérias indesejadas. O koelschip normalmente se localiza na parte mais alta do edifício, perto do teto, e diversas janelas e aberturas permitem a entrada abundante do ar noturno. O vapor do líquido quente se condensa no teto e goteja de volta, carregando hordas de microorganismos. Durante esse longo resfriamento, as bactérias e leveduras residentes no edifício e trazidas pelo ar externo irão se depositar e se instalar no mosto, inoculando-o. O recinto onde se localiza o koelschip é normalmente tido como “sagrado” devido ao delicado equilíbrio da microflora local, que não deve ser perturbado nunca. Quando a Cantillon reformou o teto do edifício, acima do koelschip, tive o cuidado de não mexer nas vigas de madeira onde colônias de leveduras estão instaladas.

Diante disso tudo, não é difícil perceber que chamar a inoculação de uma lambic de “espontânea” é, de certa forma, uma simplificação. É verdade que o fermento e as bactérias não são adicionados deliberadamente pelo produtor, mas ele prepara cuidadosamente todas as condições para que a magia aconteça. Na manhã seguinte, normalmente o mosto já se encontra na temperatura ideal e é drenado para um tanque a partir do qual é feito o embarrilamento de toda a produção.

Os barris

Quando pensamos em cervejas com maturação em barris, as famigeradas e prestigiadas “barrel-aged beers”, quase sempre nos vêm à mente estilos como old ales ou stouts imperiais. Pouca gente pensa imediatamente em lambics; contudo, o envelhecimento em barris é uma parte fundamental do processo. Segundo Frank Boon, proprietário da cervejaria Boon, uma lambic normalmente recebe uma boa quantidade de bactérias e leveduras do gênero Saccharomyces pelo ar, mas depende em grande medida dos barris para receber as Brettanomyces necessárias. Isso porque essas leveduras se instalam profundamente em materiais porosos como a madeira, resistindo a todos os processos de higienização pelos quais os barris são submetidos, e de lá passam ao líquido em fermentação dentro dos barris. Não há lambic tradicional sem madeira.

Gert Christiaens brinda com sua gueze ao lado 
de seus imponentes tonéis de carvalho 
na Oud Beersel.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
Um barril novo pode demorar até atingir as condições adequadas e o equilíbrio microbiológico perfeito para a fermentação das lambics. Os produtores quase sempre preferem empregar barris já usados para maturar outras bebidas (como vinho, uísque, conhaque etc.), não só por eles serem mais baratos, mas também porque a madeira nova imprime sabores muito intensos à cerveja, que devem ser evitados nas lambics tradicionais. Contudo, um barril tem uma certa vida útil: depois de ser usado muitas vezes, ele pode começar a adquirir uma acidez acética excessiva, impossível de ser completamente neutralizada, e pode ter de ser substituído para que se obtenha um produto mais harmônico e equilibrado. Por isso, as cervejarias produtoras de lambics estão constantemente repondo seus enormes estoques de barris, o que obviamente acarreta altos custos.

Além da ocorrência das Brettanomyces na madeira, os barris ainda oferecem uma segunda vantagem importante para a produção de lambics: sua porosidade. Barris propiciam uma micro-oxigenação do mosto em seu interior, permitindo a entrada de pequenas quantidades de oxigênio. O oxigênio normalmente é tido como inimigo da produção de cervejas, mas é essencial para a produção de lambics. Isso porque estamos falando de um processo de fermentação que se estende por até dois anos – durante esse tempo todo, as leveduras aeróbicas precisam de uma fonte de oxigênio para continuarem ativas. Isso vale especialmente para as Brettanomyces, que são leveduras oxidativas e precisam de oxigênio para seu metabolismo. Contudo, oxigênio em excesso propicia o crescimento de bactérias acéticas que podem arruinar uma boa lambic. A madeira fornece o grau ideal de proteção, não deixando entrar oxigênio demais, nem de menos.

O tamanho do barril também é uma preocupação importante para os produtores. Quanto menor o barril, maior a área de contato entre o líquido e a madeira. Isso acelera a fermentação, mas também aumenta a oxigenação e pode trazer o risco de acetificação excessiva do mosto. Por isso, alguns produtores preferem os foudres ou foeders, imensos tonéis de madeira com vários metros de altura e/ou largura e uma espantosa capacidade de até 20 mil litros. Alguns tonéis chegam a precisar de várias brassagens para serem completamente preenchidos! Tonéis desse porte podem trazer algumas desvantagens e riscos: a fermentação demora mais para ser finalizada e, se algo sair do controle no processo, o produtor corre o risco de perder uma quantidade fabulosa de cerveja! O tamanho mais frequentemente empregado pelos produtores de lambics é o dos barris de vinho, com capacidade para 300 litros.

A própria espuma da fermentação, 
ao secar, tratou de vedar 
o respiro do barril.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
Assim que o mosto devidamente resfriado e naturalmente inoculado é transferido para os barris, ainda demoram alguns dias para iniciar-se a fermentação. Ao longo desse primeiro período, o orifício de respiro do barril, na parte superior, é deixado aberto. Se tudo correr bem, em mais ou menos uma semana inicia-se a fermentação alcoólica, mas esse tempo pode variar: a Cantillon já reportou casos de barris que demoraram seis meses para começarem a fermentar! A fermentação alcoólica produz grandes quantidades de espuma devido à concentração das Saccharomyces no topo do líquido. Essa espuma normalmente extravasa para fora do respiro e, quando seca, forma uma camada que veda naturalmente o barril. Alguns produtores, porém, preferem tampar o respiro assim que percebem que uma diminuição na intensidade da fermentação.

Como vimos, a fermentação de uma lambic dura até dois anos, e sua maturação plena precisa de pelo menos três anos. Após permanecer o tempo adequado nos barris, a lambic estará madura e pronta para ser consumida pura, ser engarrafada ou receber a adição de frutas. Contudo, isso não significa que o trabalho do produtor tenha acabado. Na verdade, uma das etapas mais importantes de todo o processo vem só ao final: a prova e blendagem dos barris para produzir a lambic perfeita. É exatamente o que analisaremos na próxima parte desta matéria!