segunda-feira, 1 de julho de 2013

Cervejas selvagens - Parte VI: A magia da fermentação de lambics


Na parte anterior desta matéria, vimos que o mosto de uma lambic é cuidadosamente preparado a partir de uma mistura de malte de cevada e trigo não-malteado, e que recebe generosas doses de lúpulos envelhecidos e oxidados. Depois de um complicado processo de brassagem, obtém-se um líquido de aspecto leitoso, com uma variada composição de carboidratos, que irão nutrir as diversas gerações de microorganismos responsáveis pela fermentação da cerveja. Vejamos agora quais os métodos empregados pelos produtores para garantir o bom andamento dessa fermentação.

A “inoculação espontânea”

Assim que o mosto é preparado e termina de ferver, ele precisa ser resfriado antes que a fermentação de qualquer cerveja se inicie; em caso contrário, os microorganismos que deveriam realizar a fermentação iriam morrer! Cervejarias convencionais empregam para isso equipamentos que realizam uma troca de calor entre o mosto e a água fria, agilizando o processo e evitando o contato com o ar e a contaminação do líquido. No caso das lambics, porém, é essencial que o resfriamento ocorra “ao natural”, deixando o mosto em contato com o ar para que ele receba os microorganismos responsáveis pela fermentação, já que não será inoculado deliberadamente pelo cervejeiro.

O fotógrafo Andrew Verschetze flagrou o momento exato em que 
o mosto fumegante começa a ser bombeado para o 
enorme koelschip da cervejaria Timmermans.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
Para isso, o mosto é bombeado para o koelschip (ou “coolship”, como costuma ser chamado em inglês), um recipiente muito largo e raso à semelhança de uma piscina de pequena profundidade. O nome koelschip significa algo como “barco de resfriamento” e provavelmente é uma referência a técnicas medievais de produção cervejeira, nas quais o mosto era resfriado em grandes toras ocas de madeira, semelhantes a canoas. Esse tipo de equipamento já foi usado para a produção de quaisquer cervejas antes do século XIX, mas hoje sobrevive apenas entre os produtores de alguns estilos de cervejas selvagens, sendo essencial apenas na fabricação de lambics. Uma vez transportado ao koelschip, o mosto fica resfriando naturalmente durante várias horas ao longo da noite, até atingir uma temperatura ideal de cerca de 20º C.

Tradicionalmente, as lambics são produzidas apenas durante as estações frias do ano, para aproveitar as baixas temperaturas da noite e agilizar o resfriamento do mosto, minimizando a atuação de bactérias indesejadas. O koelschip normalmente se localiza na parte mais alta do edifício, perto do teto, e diversas janelas e aberturas permitem a entrada abundante do ar noturno. O vapor do líquido quente se condensa no teto e goteja de volta, carregando hordas de microorganismos. Durante esse longo resfriamento, as bactérias e leveduras residentes no edifício e trazidas pelo ar externo irão se depositar e se instalar no mosto, inoculando-o. O recinto onde se localiza o koelschip é normalmente tido como “sagrado” devido ao delicado equilíbrio da microflora local, que não deve ser perturbado nunca. Quando a Cantillon reformou o teto do edifício, acima do koelschip, tive o cuidado de não mexer nas vigas de madeira onde colônias de leveduras estão instaladas.

Diante disso tudo, não é difícil perceber que chamar a inoculação de uma lambic de “espontânea” é, de certa forma, uma simplificação. É verdade que o fermento e as bactérias não são adicionados deliberadamente pelo produtor, mas ele prepara cuidadosamente todas as condições para que a magia aconteça. Na manhã seguinte, normalmente o mosto já se encontra na temperatura ideal e é drenado para um tanque a partir do qual é feito o embarrilamento de toda a produção.

Os barris

Quando pensamos em cervejas com maturação em barris, as famigeradas e prestigiadas “barrel-aged beers”, quase sempre nos vêm à mente estilos como old ales ou stouts imperiais. Pouca gente pensa imediatamente em lambics; contudo, o envelhecimento em barris é uma parte fundamental do processo. Segundo Frank Boon, proprietário da cervejaria Boon, uma lambic normalmente recebe uma boa quantidade de bactérias e leveduras do gênero Saccharomyces pelo ar, mas depende em grande medida dos barris para receber as Brettanomyces necessárias. Isso porque essas leveduras se instalam profundamente em materiais porosos como a madeira, resistindo a todos os processos de higienização pelos quais os barris são submetidos, e de lá passam ao líquido em fermentação dentro dos barris. Não há lambic tradicional sem madeira.

Gert Christiaens brinda com sua gueze ao lado 
de seus imponentes tonéis de carvalho 
na Oud Beersel.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
Um barril novo pode demorar até atingir as condições adequadas e o equilíbrio microbiológico perfeito para a fermentação das lambics. Os produtores quase sempre preferem empregar barris já usados para maturar outras bebidas (como vinho, uísque, conhaque etc.), não só por eles serem mais baratos, mas também porque a madeira nova imprime sabores muito intensos à cerveja, que devem ser evitados nas lambics tradicionais. Contudo, um barril tem uma certa vida útil: depois de ser usado muitas vezes, ele pode começar a adquirir uma acidez acética excessiva, impossível de ser completamente neutralizada, e pode ter de ser substituído para que se obtenha um produto mais harmônico e equilibrado. Por isso, as cervejarias produtoras de lambics estão constantemente repondo seus enormes estoques de barris, o que obviamente acarreta altos custos.

Além da ocorrência das Brettanomyces na madeira, os barris ainda oferecem uma segunda vantagem importante para a produção de lambics: sua porosidade. Barris propiciam uma micro-oxigenação do mosto em seu interior, permitindo a entrada de pequenas quantidades de oxigênio. O oxigênio normalmente é tido como inimigo da produção de cervejas, mas é essencial para a produção de lambics. Isso porque estamos falando de um processo de fermentação que se estende por até dois anos – durante esse tempo todo, as leveduras aeróbicas precisam de uma fonte de oxigênio para continuarem ativas. Isso vale especialmente para as Brettanomyces, que são leveduras oxidativas e precisam de oxigênio para seu metabolismo. Contudo, oxigênio em excesso propicia o crescimento de bactérias acéticas que podem arruinar uma boa lambic. A madeira fornece o grau ideal de proteção, não deixando entrar oxigênio demais, nem de menos.

O tamanho do barril também é uma preocupação importante para os produtores. Quanto menor o barril, maior a área de contato entre o líquido e a madeira. Isso acelera a fermentação, mas também aumenta a oxigenação e pode trazer o risco de acetificação excessiva do mosto. Por isso, alguns produtores preferem os foudres ou foeders, imensos tonéis de madeira com vários metros de altura e/ou largura e uma espantosa capacidade de até 20 mil litros. Alguns tonéis chegam a precisar de várias brassagens para serem completamente preenchidos! Tonéis desse porte podem trazer algumas desvantagens e riscos: a fermentação demora mais para ser finalizada e, se algo sair do controle no processo, o produtor corre o risco de perder uma quantidade fabulosa de cerveja! O tamanho mais frequentemente empregado pelos produtores de lambics é o dos barris de vinho, com capacidade para 300 litros.

A própria espuma da fermentação, 
ao secar, tratou de vedar 
o respiro do barril.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
Assim que o mosto devidamente resfriado e naturalmente inoculado é transferido para os barris, ainda demoram alguns dias para iniciar-se a fermentação. Ao longo desse primeiro período, o orifício de respiro do barril, na parte superior, é deixado aberto. Se tudo correr bem, em mais ou menos uma semana inicia-se a fermentação alcoólica, mas esse tempo pode variar: a Cantillon já reportou casos de barris que demoraram seis meses para começarem a fermentar! A fermentação alcoólica produz grandes quantidades de espuma devido à concentração das Saccharomyces no topo do líquido. Essa espuma normalmente extravasa para fora do respiro e, quando seca, forma uma camada que veda naturalmente o barril. Alguns produtores, porém, preferem tampar o respiro assim que percebem que uma diminuição na intensidade da fermentação.

Como vimos, a fermentação de uma lambic dura até dois anos, e sua maturação plena precisa de pelo menos três anos. Após permanecer o tempo adequado nos barris, a lambic estará madura e pronta para ser consumida pura, ser engarrafada ou receber a adição de frutas. Contudo, isso não significa que o trabalho do produtor tenha acabado. Na verdade, uma das etapas mais importantes de todo o processo vem só ao final: a prova e blendagem dos barris para produzir a lambic perfeita. É exatamente o que analisaremos na próxima parte desta matéria! 

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