terça-feira, 15 de outubro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XIII: Flanders red ales

Antigo forno de malte da cervejaria 
Rodenbach, possivelmente a mais 
tradicional produtora de Flanders red ales.
Fonte: http://commons.wikimedia.org
Nas últimas partes desta matéria sobre cervejas selvagens, temos concentrado nossas atenções sobre as lambics, as cervejas de fermentação espontânea do vale do rio Senne. Algumas pessoas consideram “lambics” e “cervejas selvagens” como sinônimos – contudo, como vimos antes, as intrigantes cervejas do Senne compreendem apenas uma parte dos estilos selvagens, mesmo dentro da Bélgica. Tão importantes quanto elas são aquelas produzidas tradicionalmente na região de Flandres, no norte da Bélgica, que podem ser divididas em dois subestilos: Flanders red ales e Flanders brown ales (também conhecidas como oud bruin). Ambas se caracterizam por sofrerem uma fermentação mista, com fermento ale, bactérias láticas e leveduras selvagens. É sobre o primeiro desses subestilos que falaremos a partir de agora.

O processo produtivo

As “cervejas vermelhas de Flandres” fazem parte de uma tradição cervejeira que, no passado, era mais largamente disseminada, e que se caracterizava pelo hábito de blendar cervejas escuras envelhecidas e jovens. As envelhecidas adquiriam traços selvagens acentuados com a longa maturação em madeira, tornando-se ácidas, secas, complexas e levemente vínicas. As jovens traziam sabores mais adocicados e gentis. A mistura das duas preservava a complexidade da cerveja envelhecida e a refrescância da acidez, ao mesmo tempo em que trazia equilíbrio pela doçura e maciez da cerveja jovem. Antes do século XX, processos de controle microbiológicos eram menos bem conhecidos, de modo que tanto lambics quanto as cervejas de Flandres deviam ser mais ácidas do que são hoje. Lambics costumavam ser adoçadas no copo; as cervejas de Flandres, por sua vez, tornavam-se naturalmente adocicadas por meio do blend, ganhando equilíbrio.

O hábito de blendar também obedecia a imperativos econômicos. A cerveja envelhecida era razoavelmente mais cara devido ao seu longo tempo de maturação, que ocupava o equipamento produtivo e diminuía a rotatividade das cervejarias. Existiam até intermediários especializados que compravam a ale jovem da cervejaria, deixavam-na maturando e a vendiam aos bares, já envelhecida, praticamente pelo dobro do preço. Sendo assim, a mistura de cervejas jovens e velhas era uma maneira de oferecer aos clientes aquele “gosto selvagem”, tão apreciado pelos consumidores, por um preço mais baixo e em maior volume.

Antigamente, as Flanders red ales eram fermentadas espontaneamente, depois de receberem leveduras selvagens e bactérias em um koelschip, tina de resfriamento aberta que permitia a inoculação natural do mosto pela microflora do ambiente – damesma forma como ocorre ainda hoje com as lambics. Atualmente, são inoculadas de forma artificial, como quase todos os demais estilos cervejeiros: o produtor prepara o mosto e adiciona os microorganismos responsáveis pela fermentação. Contudo, em vez de serem inoculadas apenas com uma única cepa de leveduras, elas usam uma “cultura mista”, composta Saccharomyces cerevisiae (as leveduras usadas em cervejas ales) e bactérias láticas dos gêneros Lactobacillus e Pediococcus. A maioria das cervejarias que produzem Flanders red ales emprega uma cultura mista originária da tradicional cervejaria Rodenbach, isolada a partir da microflora que ocorria espontaneamente na cerveja no passado. O estilo é nativo da Bélgica, mas hoje também é produzido abundantemente nos polos da revolução artesanal, sobretudo nos EUA, onde a maior parte das novas incursões de microcervejarias no reino das cervejas selvagens se inicia com uma Flanders red.

Para se produzir uma cerveja no estilo, um mosto de coloração escura é brassado e inoculado com essa cultura mista (ainda em tanques de aço inox). Num primeiro momento, as leveduras do gênero Saccharomyces se reproduzem e rapidamente dominam o mosto, realizando a fermentação alcoólica primária em torno de uma semana. Até aí, o processo difere muito pouco em relação a uma ale comum. Assim que a atividade das Saccharomyces diminui devido à escassez de açúcares fermentáveis restantes, as bactérias do gênero Lactobacillus tomam a dianteira e começam a metabolizar os carboidratos remanescentes. Essa segunda fermentação não produz álcool, mas sim ácido lático, resultando na acidez característica do estilo. Os Lactobacillus são pouco tolerantes à diminuição no nível de pH, de modo que, depois de mais ou menos um mês desde o início da fermentação, são substituídos pelas bactérias do gênero Pediococcus, que finalizam a fermentação lática.

A Rodenbach exibe em sua cave uma das mais 
impressionantes coleções de tonéis de carvalho – os 
foeders – do mundo cervejeiro, e lá promove 
refeições para grupos.
Fonte: www.palmbreweries.com
Depois desse período de fermentação, que pode durar até dois meses, a cerveja “jovem” está pronta. Ela tem uma boa dose de açúcares residuais e exibe certa acidez, além de aromas frutados e de especiarias típicos de ales. Pode ser usada imediatamente para blendar, ou pode ser reservada para envelhecer em tonéis de madeira por um período que varia entre 8 meses e 2 anos. Ao longo desse tempo, ocorre uma terceira fermentação, realizada por leveduras selvagens do gênero Brettanomyces, residentes na madeira. As Brettanomyces produzem pouca acidez, mas realizam a chamada superatenuação, ou seja, consomem os carboidratos restantes da cerveja, deixando-a seca (à semelhança de uma lambic). Além disso, também produzem ésteres e fenóis de aromas característicos, importantes para o estilo. Via de regra, quanto mais tempo a cerveja permanecer nos barris, mais marcantes serão os traços de Brettanomyces no produto final. Ao final do processo, a cerveja que envelheceu em madeira normalmente é misturada à jovem para compor o produto final.

Comparado a uma lambic, o mosto de uma Flanders red ale tem diferenças importantes que influenciam as características da cerveja pronta. Em primeiro lugar, as cervejas do estilo recebem lúpulos frescos, mas costumam ser bem menos lupuladas (em torno de 10 IBUs), o que permite a proliferação mais livre de bactérias láticas. Como resultado – e contraintuitivamente em relação a nossa percepção sensorial primeira –, uma Flanders red ale normalmente tem uma quantidade total de ácidos maior do que uma lambic! Em segundo lugar, a composição de grãos é diferente. Enquanto uma lambic usa trigo não maltado para obter muito amido e um mosto pouco fermentável, as Flanders red ales normalmente usam uma proporção maior (em torno de 80%) de malte de cevada, com o milho como adjunto para fornecer um pouco de amido. O resultado é que o mosto de uma Flanders red ale é mais facilmente fermentável do que o de uma lambic. Consequentemente, a maior parte dos açúcares é consumida nas primeiras fases da fermentação, deixando menos alimento para as etapas finais, conduzidas pelas Brettanomyces. Por isso, Flanders red ales envelhecidas (sem blendar) são mais ácidas do que lambics, mas exibem aromas animais (associados às Brettanomyces) em menor intensidade.

A mistura perfeita

O traço definidor das Flanders red ales clássicas, além da acidez, é a mistura entre características da cerveja jovem e da envelhecida. A ale jovem se assemelha a uma brown ale de estirpe “belga”: tem doçura residual bem perceptível (pois não sofreu superatenuação), sabores de malte levemente tostado e aromas evidentes de ésteres e fenóis produzidos por leveduras de alta fermentação (que lembram frutas doces e especiarias, especialmente pimenta-do-reino). Mal e porcamente comparando, seria uma espécie de Belgian dubbel mais ácida e menos alcoólica. A cerveja envelhecida, por sua vez, traz traços de maturação em carvalho, pouca doçura e corpo, maior acidez, toques acéticos e aromas associados a Brettanomyces – animais e de frutas frescas e ácidas.

A arte de blendar na tradição de Flandres, em seu mais alto estado, consiste em preservar ao máximo as características de ambas as cervejas, sem ofuscar a maciez frutada e caramelada da ale jovem e nem neutralizar a acidez e os aromas animais e amadeirados da velha. A mistura também deve neutralizar as características “negativas” de cada uma das cervejas-base, corrigindo a doçura demasiada da cerveja jovem e a secura inclemente da envelhecida. O resultado deve ser uma cerveja equilibrada, em que doce e azedo se misturam de forma harmoniosa na boca, sem que ela fique enjoativa ou agressiva demais, e com altíssima complexidade aromática. Ela deve preservar o melhor dos dois mundos: o exotismo firme da fermentação espontânea e a maciez reconfortante das ales belgas. Por conta disso, Flanders red ales trazem uma “pegada selvagem” muito clara e definida, mas ainda têm características de ales belgas bem claras. Como resultado, elas assustam menos os bebedores pouco habituados a cervejas selvagens (que ainda reconhecem nelas características claras de “cerveja”, como eles entendem o termo), e normalmente fornecem uma excelente porta de entrada para esse vasto reino da selvageria cervejeira.

A proporção entre cerveja velha e jovem no blend varia de cervejaria para cervejaria, de rótulo para rótulo – bem como a definição do tempo necessário para a cerveja ser considerada “jovem” ou “velha”. Flanders red ales têm métodos produtivos um pouco mais abertos e variáveis do que as lambics. Seja como for, a proporção de cerveja envelhecida foi gradualmente diminuindo ao longo do século XX na maior parte das marcas, para atender a um mercado com menor tolerância à acidez. Apesar disso, há um movimento recente em direção a Flanders red ales mais secas e menos doces, tanto na Bélgica quanto nos novos polos da revolução cervejeira artesanal (notadamente, nos EUA), e existem cervejarias que vendem a cerveja velha pura, sem blendar – sua profundidade de caráter é absolutamente estarrecedora. Algumas cervejarias produzem blends diferentes, vendidos sob denominações distintas, que variam apenas na proporção da cerveja jovem para a velha. Os rótulos mais caros e prestigiados, via de regra, são os que têm maior proporção da parte envelhecida.

Além de dois blends distintos, a Rodenbach vende sua 
cerveja envelhecida sem blendar sob a denominação “Vintage”.
Fonte: www.bestbeersfrombelgium.eu
O que esperar de uma Flanders red ale no copo? Qual é o seu perfil sensorial? Sua coloração é entre marrom e avermelhada, normalmente límpida se for servida corretamente. O aroma surpreende inicialmente pelos traços selvagens, mais claros quanto mais elevada for a idade média do blend: acidez volátil, traços animais evidentes lembrando couro cru e estábulo (mas não tanto quanto em uma lambic), terroso e até, em alguns rótulos, uma sensação acética clara, mas nunca dominante. Contudo, logo se sentem os traços da cerveja jovem (ou seus resíduos, no caso de rótulos que não são blendados): o malte traz caramelo intenso, algum acastanhado ou achocolatado. Os ésteres frutados frequentemente lembram frutas vermelhas (cerejas, morangos maduros etc.) e vinho tinto, e há, frequentemente, uma picância fenólica remetendo a pimenta-do-reino. Acetona e uvas verdes podem advir das Brettanomyces. Traços da madeira podem ser perceptíveis por meio de aromas amadeirados ou abaunilhados. É frequente que um ataque inicial bem ácido dê lugar a uma doçura maltada final para equilibrar. O corpo costuma ser mediano, nem tão doce e pleno quanto na cerveja jovem, nem tão seco quanto na envelhecida. As melhores devem parecer ser misteriosamente capazes de equilibrar e fazer conviverem pacificamente todos os opostos imagináveis – ao mesmo tempo doces e azedas, macias e inclementes, rústicas e envolventes. Uma espécie de síntese alquímica ideal.

Flandres e a Borgonha

Se lambics são frequentemente comparadas a espumantes brut, as Flanders red ales normalmente são postas lado a lado com os vinhos tintos. Seu jogo de doce-ácido e seus aromas amadeirados e frutados, remetendo muitas vezes a frutas vermelhas, fornecem uma comparação quase imediata com muitos tintos. Aliás, algumas cervejas belgas do estilo (como a Duchesse de Bourgogne e a Bourgogne des Flandres) trazem, no rótulo, referências a uma famosa região produtora de vinhos tintos da vizinha França, a Borgonha (Bourgogne, em francês). Na realidade, Flanders red ales assemelham-se notavelmente aos tintos da Borgonha, mais do que a qualquer outro tipo de vinho do mundo.

A Borgonha é uma tradicional região vinícola reconhecida por vinhos caros e muito prestigiados, que alcançam às vezes cifras fabulosas na casa dos milhares de euros. Seus tintos são produzidos exclusivamente com uvas da variedade pinot noir – contudo, é o terroir, mais do que a variedade da uva, que mais determina as características do vinho. Muitos tintos borguinhões têm um aroma característico descrito pelos enófilos como terroso, mas que nada mais é do que o nosso já querido aroma “animal” associado às Brettanomyces, que nós, apreciadores de cervejas, aprendemos a descrever como semelhante a “cobertor de cavalo”, “couro cru” ou “estábulo”. Alguns produtores de vinho, especialmente do Novo Mundo, consideram o aroma terroso/animal como um defeito, indicador de contaminação microbiológica, mas ele faz parte do caráter tradicional da região da Borgonha. Mais do que vinhos tintos em geral, as Flanders red ales lembram muito os tintos borguinhões. Quando tive a oportunidade de tomar meu primeiro tinto da Borgonha, eu já conhecia bem as Flanders red ales. Já ao derramar o líquido no decanter, fui acometido de uma inescapável sensação de déja-vu e disse para mim mesmo: “isso é cerveja selvagem” (para meu deleite, obviamente)!

Os vinhos da Borgonha são classificados em 4 níveis: há os vinhos regionais (denominados apenas Bourgogne Rouge ou Blanc), normalmente os mais baratos, que se originam de misturas de uvas cultivadas em diferentes vilas da região. Um degrau acima na escala de preços, os vinhos de vila são feitos apenas com uvas de uma única vila, exibindo de forma mais clara o caráter daquele terroir, e sempre exibem o nome da vila no rótulo. Acima deles, existem os vinhos de “primeiro cultivo” (Premier Cru), feitos apenas com as uvas de pequenas vinícolas que se destacam dentre todas de uma região. Por fim, os vinhos de “grande cultivo” (Grand Cru) advêm exclusivamente de uvas cultivadas nas melhores vinícolas da Borgonha, e correspondem a apenas 2% da produção total.

Fonte: thewinecountry.com
O vinho que me deu esse “estalo” em relação à sua similaridade com as Flanders red ales foi o Domaine Nicolas Rossignol Bourgogne 2008, um simples vinho regional de um produtor estabelecido na vila de Volnay (conhecida por alguns dos mais delicados e femininos tintos da Borgonha). Ótimo tinto, cheio de personalidade, apesar de sua classificação algo humilde. Delicado e leve, mostrou uma acidez fresca e um corpo pouco volumoso, com taninos amenos. No aroma, convidativo, predominavam as notas animais/terrosas lembrando couro cru e estábulo, sob as quais se sentiam, em harmonia e equilíbrio, toques de morangos frescos, algum tostado de café, leve baunilha e um quê defumado. Com o tempo, melancia e solvente apareciam no nariz, sem serem totalmente agradáveis. Não se mostrou um vinho corpulento ou marcante, surpreendendo e agradando antes pelo seu frescor. Guardadas as devidas proporções, me lembrou muito a Rodenbach Grand Cru, uma das mais clássicas cervejas vermelhas de Flandres! Provando que a fronteira entre fermentados de uva e cevada, frequentemente superestimada pelos apreciadores, pode ser bem mais fluida do que imaginamos.

Na próxima parte desta matéria, faremos uma degustação comparada de sete Flanders red ales, disponíveis e não disponíveis no mercado nacional. Não perca!


terça-feira, 1 de outubro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XII: De doce, basta a vida

Lambics são bebidas completamente secas e intensamente ácidas. Certo? Temos insistido nessa forma de caracterizar essas cervejas de fermentação espontânea nas últimas partes desta matéria, mas a verdade é que isso é apenas metade da história. Corra para o empório cervejeiro mais próximo e simplesmente peça ao vendedor ou sommelier para te indicar uma lambic para conhecer o estilo. Você tem 90% de chance de acabar degustando uma lambic doce e amena, muito distante das características que estamos discutindo há algum tempo. Isso se o vendedor não te empurrar alguma outra cerveja de frutas que não seja uma lambic – acontece. Hoje em dia, as lambics são conhecidas majoritariamente por meio de suas representantes adoçadas e pasteurizadas, que dominam largamente a produção e o consumo mundiais desse tipo de cerveja.

Sua popularidade e sucesso comercial, porém, são inversamente proporcionais ao respeito que suscitam entre os entusiastas do estilo. De fato, os exemplares adoçados são normalmente encarados pelos apreciadores como variações menos autênticas e de qualidade inferior. O açúcar tende a reduzir as dimensões de interesse de uma lambic: neutraliza as nuances de sua acidez e seu amargor e mascara seus aromas e sabores mais exóticos e complexos. Contudo, mesmo os apreciadores mais ortodoxos precisam tirar o chapéu para as lambics adoçadas por conta de sua importância histórica (se não por nenhum outro fator): essas cervejas foram praticamente responsáveis por salvar a indústria de lambics na segunda metade do século XX. Elas conseguiram manter um mercado cativo na Bélgica e conquistar mercados internacionais quando a aceitação dos produtos tradicionais caiu drasticamente como resultado dos gostos e preferências de consumo criados pelo mercado de industrializados.

Faro

Lambics não começaram a ser adoçadas no século XX. Antes disso, pelo menos desde o século XIX, existem registros sobre a prática de adicionar açúcar a lambics para os consumidores que não gostavam da acidez natural da cerveja. É bem possível que as lambics da época fossem ainda mais ácidas do que as de hoje em dia, devido ao menor conhecimento dos métodos de controle microbiológico. Uma das formas de adoçar lambics no século XIX era fazê-lo diretamente no copo, macerando torrões de açúcar na cerveja com um instrumento chamado stoemper, que permitia ao próprio consumidor controlar a quantidade de açúcar que ele queria. Paralelamente, existiam as faro, como eram conhecidas as lambics adoçadas no barril com açúcar cândi escuro e, eventualmente, aromatizadas com especiarias.


“A faro e a lambic são as melhores cervejas do mundo”, 
segundo o cartão-postal do final do século XIX. 
Na época, a faro ainda era uma das formas 
mais populares de consumir lambics.
Fonte: http://sofei-vandenaemet.skynetblogs.be
Cabe fazer um parêntesis a respeito das faro (pronuncia-se “farrô”). No século XIX, o termo se aplicava provavelmente a um blend, composto por uma parte de lambic forte (como as que temos hoje em dia, em torno de 5% de álcool) e uma parte de bière de mars, que era uma lambic mais fraca, em torno de 2% de teor alcoólico, feita a partir de uma segunda lavagem dos mesmos grãos usados para fazer a cerveja forte. A bière de mars provavelmente era uma cerveja de consumo diário e corrente (“de mesa”) numa época em que era pouco seguro, do ponto de vista sanitário, beber água. O blend entre lambic e bière de mars era então adoçado com açúcar cândi escuro (essencialmente, uma calda caramelizada), dando origem à faro. As faro tinham de ser bebidas rapidamente, pois o açúcar fermentava e ela voltava a ficar seca e ácida em pouco tempo – para evitar isso, alguns cafés adotavam a prática de imergir contas de açúcar cândi nos barris para readoçar a cerveja.

As faro praticamente desapareceram na passagem do século XIX para o XX, e ainda mais a partir da metade do século XX, quando surgiram outros tipos de lambics adoçadas. Hoje em dia, voltaram a ser produzidas por algumas cervejarias que começaram a se distanciar dos produtos pasteurizados e viram na faro uma alternativa tradicional de lambic adoçada. Em comparação com a gueuze doce (sobre a qual falaremos a seguir), a faro se mostra mais interessante na medida em que o açúcar caramelizado adiciona não apenas doçura, mas também um sabor característico à cerveja. Contudo, as interpretações atuais são normalmente engarrafadas (à semelhança das gueuzes), o que significa que precisam ser pasteurizadas para evitar que o caramelo adicionado refermente e a garrafa exploda! A prática mais comum é adicionar açúcar cândi escuro a lambics de pelo menos um ano de idade, pasteurizar e carbonatar artificialmente.

Fonte: www.lindemans.be
Se lambics já são difíceis de encontrar no Brasil, as faro são quase impossíveis. Temos no mercado nacional um rótulo do estilo, de natureza infelizmente bem comercial, mas com preço e distribuição razoavelmente acessíveis: a Lindemans Faro. Ela é produzida a partir de um blend de lambics jovens e velhas, como uma gueuze, mas recebe adição de açúcar caramelizado e aspartame, ganhando uma bonita coloração escura, avermelhada com nuances alaranjadas. A doçura e a acidez se alternam na boca de forma agradável, conduzindo a um final em que se sente um suave amargor de aspartame, levemente incômodo. O aroma é maduro, como ocorre com as demais lambics adoçadas da Lindemans, mostrando abundância de notas animais e frutadas, lembrando raspas de limão (marca das lambics da cervejaria), uvas verdes e abacaxi ao lado do sabor caracteristicamente caramelado e levemente acastanhado do açúcar cândi. Para um apreciador de lambics secas como eu, ela não pode deixar de ser um pouco enjoativa, mas ainda assim é uma experiência interessante. Clique aqui para ver a avaliação completa.

A nova gueuze

Foi em meados do século XX, porém, que as lambics adoçadas realmente conquistaram um lugar de destaque no mercado. A partir dessa época, o mercado alimentício global foi cada vez mais invadido por produtos industrializados, pasteurizados e massificados, em que o açúcar e a gordura predominavam, e contra os quais o azedume seco das lambics parecia uma incômoda lembrança de alimentos perecíveis. Além disso, após a II Guerra Mundial, as bebidas alcoólicas foram sendo gradualmente substituídas pelos refrigerantes norte-americanos nos hábitos de consumo dos europeus. Esse teria sido o golpe de misericórdia sobre as plurisseculares lambics, não tivessem elas se adaptado para atender aos gostos modernos. Refrigerantes baseiam-se no equilíbrio entre doçura e acidez; ora, lambics já são naturalmente ácidas, de modo que, para aproximá-las dos refrigerantes, bastava deixá-las doces. Se você não pode vencer um inimigo, una-se a ele.

O prédio da Belle-Vue em Molenbeek é gigantesco se 
comparado às outras produtoras de lambic. E é a 
menor fábrica da cervejaria, onde ocorre 
apenas a maturação de uma parte das cervejas.
Fonte: www.panoramio.com
Essa nova geração de lambics adoçadas surgiu na década de 1940, quando a cervejaria Belle-Vue introduziu novos artifícios na produção da gueuze para baratear a produção e adaptar a cerveja ao mercado moderno. A cervejaria começou a aumentar a proporção de lambic jovem (portanto, mais doce) no blend, e pasteurizou o produto para evitar que as garrafas explodissem com tanto açúcar sendo refermentado. Como resultado, não ocorria refermentação na garrafa, de modo que os carboidratos residuais permaneciam na cerveja e ela ficava mais docinha. A carbonatação era introduzida artificialmente, como em outras cervejas industriais. A tendência foi seguida por outras cervejarias. Com o tempo, o nível de doçura do produto foi sendo gradualmente incrementado com a adição de açúcar e edulcorantes artificiais no envase. O aspartame se tornou uma escolha de sucesso para vários produtores, porque, como não é um carboidrato, não podia ser refermentado e metabolizado nem mesmo pelo voraz apetite das Brettanomyces.

Nas últimas décadas, a Belle-Vue (hoje pertencente à gigante AB-InBev) levou ainda mais longe o processo de transformação de sua gueuze, distanciando-a ainda mais da tradição. Hoje em dia, a produção, realizada pelo chamado “método DKZ”, tem muito pouco em comum com os métodos tradicionais que discutimos nas partes anteriores desta matéria. O mosto recebe adição de cascas de laranja e sementes de coentro e, em vez de ser resfriado naturalmente ao ar livre, no koelschip, é resfriado num trocador de calor convencional, não precisando necessariamente de noites frias para esfriar. Isso significa que a Belle-Vue pode brassar suas lambics durante o ano todo, e não apenas no inverno (a Mort Subite também emprega um método idêntico, com o mesmo propósito). Após o resfriamento, o mosto é levado a tanques de aço inox nos quais se introduz artificialmente ar não esterilizado e um pouco de lambic velha para iniciar a fermentação. Na Belle-Vue, a lambic jovem é fermentada por um período que varia entre 8 e 10 dias (e é difícil crer que ela não seja inoculada de nenhuma maneira diante de um tempo de fermentação tão abreviado), e matura por apenas duas a três semanas em tanques de aço inox (em comparação os 12 meses de uma lambic jovem tradicional). Já a lambic velha, denominada L5, é levada para tonéis de carvalho, onde repousa por três a seis meses (contra os 3 anos do método tradicional).

Fonte: www.horecasupport.be
A lambic jovem e a L5 são blendadas, adoçadas com açúcar e adoçante artificial, carbonatadas artificialmente, engarrafadas e pasteurizadas, dando origem à Belle-Vue Lambic Gueuze. O resultado lembra muito pouco do seu estilo originário. Enjoativamente doce, tem apenas uma leve acidez lática e uma certa adstringência que remete a lambics. Os aromas animais são imperceptíveis, o que se explica pelo pouco tempo de maturação, insuficiente para a ação das Brettanomyces. O que predomina é o sabor de malte, remetendo a mel, castanhas e pão-de-ló, ao lado de traços de laranja, sementes de coentro e tutti-frutti que lembram mais uma witbier. Na ausência de outros traços de maturação, a doçura acentua fortemente a baunilha advinda da madeira. A garrafa que degustei mostrou sinais evidentes e incômodos de oxidação (papelão), o que sugere que a cerveja resultante do método DKZ talvez não tenha estrutura suficiente para suportar nem mesmo os 3-6 meses de maturação na madeira. O corpo é intenso para o estilo devido à doçura maltada, com textura cremosa e levemente tânica. Fica tão longe de uma gueuze tradicional que se torna uma cerveja de proposta difícil de entender – não é complexa e intrigante como uma gueuze tradicional, e nem especialmente leve e refrescante. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Frutadas e docinhas

À gueuze adoçada se seguiram, quase naturalmente, as lambics de frutas adoçadas – estas sim, responsáveis pela quase totalidade das vendas atuais dos maiores produtores. Logo depois de criar sua gueuze pasteurizada, a Belle-Vue aplicou o mesmo procedimento à Kriek. Diante do sucesso dessa nova cerveja, outros produtores gradualmente aderiram à moda, dando origem a uma linhagem de lambics de frutas cujo teor de doçura não parou de crescer até o século XXI. A mistura da acidez das lambics, a doçura do açúcar e do aspartame e o sabor das frutas tornou-se um hit quase instantâneo, remetendo quase diretamente aos refrigerantes aromatizados e conquistando públicos que nem sequer tinham o costume de beber cerveja. Cervejarias como a Belle-Vue e a Lindemans, que se dedicam prioritariamente à produção de lambics de frutas adoçadas, têm um volume de produção muito superior ao dos produtores tradicionais.

Nos anos 1970, a Lindemans inovou ao usar, em vez das frutas inteiras, polpas e sucos pasteurizados, prática que se tornou lugar-comum entre os produtores de fruit lambics adoçadas. Em alguns rótulos, parte do suco é adicionada não durante a fermentação, mas no próprio engarrafamento, seguindo-se a pasteurização, de modo que não ocorre refermentação e a doçura da fruta se torna ainda mais evidente. O produto resultante é, na verdade, uma mistura de lambic com suco de frutas adoçado. Durante muito tempo, a tradicional kriek lambic, feita com cerejas, foi a única lambic de frutas a ser produzida e engarrafada. Contudo, as décadas de 1980 e 1990 testemunharam uma verdadeira explosão de novas frutas, começando com a lambic de framboesa, uma ideia da Cantillon que foi primeiro posta em prática pela Lindemans em 1980, à qual se seguiram versões com cassis, pêssego, maçãs verdes, morango e até chá!

A Lindemans oferece frutas para todos 
os gostos. Infelizmente, só a Kriek 
tem uma versão sem adoçantes...
Fonte: smakpiwa.pl
Para o apreciador de lambics secas, essas novas cervejas adoçadas e pasteurizadas têm muito pouco do caráter dos produtos tradicionais. Nelas, a acidez muitas vezes é secundária diante de uma doçura que rapidamente se torna enjoativa, e os aromas da cerveja de base frequentemente são encobertos por uma avalanche de frutas que lembram mais xarope do que lambic. Para piorar, muitos produtores, para aumentar o volume da produção e acelerar a rotatividade, não dão às cervejas-base tempo suficiente para maturarem e desenvolverem o perfil aromático pleno e maduro das Brettanomyces (o que, como vimos, pode requerer dois anos ou mais), de modo que os encantadores aromas animais e frutados das cervejas selvagens estão praticamente ausentes. Por todos esses motivos, os apreciadores mais “calejados” costumam virar a cara para essas lambics docinhas, denominando-as “refrigerantes alcoólicos”.

Contudo, para quem não está acostumado com a acidez e a secura inclementes dos produtos tradicionais, às vezes essas versões adoçadas cumprem o papel de portas de entrada para lambics mais secas. Lambics tradicionais são um gosto adquirido com o tempo, e às vezes o paladar demora um pouco a se habituar com elas. Ademais, lambics adoçadas não precisam, necessariamente, ser cervejas boçais, enjoativas, infantis e desinteressantes. Tudo depende da forma como elas são produzidas. É possível empregar quantidades moderadas de açúcar e adoçante, apenas o suficiente para ressaltar o sabor da fruta e quebrar a acidez sem ofuscá-la, usando frutas inteiras, com casca e caroço (que adicionam complexidade aromática), e maturando a cerveja por tempo suficiente para que os aromas se desenvolvam. Fruit lambics adoçadas tendem a funcionar melhor quando a fruta tem uma quantidade suficiente de taninos para dar mais estrutura e equilibrar a doçura (donde se vê a importância da casca e do caroço). É possível deixar o preconceito de lado e apreciar também uma boa lambic adoçada.

Fonte: www.gistproducties.be
Um bom exemplo do que estou falando é uma velha conhecida do mercado brasileiro: a Kriek Boon. Sua complexidade, sua sutileza e seu caráter de fermentação espontânea são suficientes para que muitos degustadores nem se deem conta de que estão bebendo uma lambic com açúcar e adoçante (a cervejaria também produz uma versão sem adoçantes denominada “Oude Kriek”). No aroma, ela entrega a vivacidade da cereja, de tal forma acentuada pelo açúcar que lembra até Halls sabor cherry-lyptus, com nuances de geleia de frutas vermelhas. Contudo, sua complexidade não para aí: há um sofisticado e assertivo caráter terroso-mineral de amêndoas cruas ou marzipã, notas animais de couro cru, estábulo e caprílico, casca de limão, alguma terra e uma leve ardência de cebola crua. Na boca, a princípio sente-se uma doçura frutada, que logo dá lugar a uma firme acidez lática e a um amargor tânico bem colocado, conduzindo a um final em que permanece longamente na boca um adocicado de geleia. O corpo é mediano (mais denso do que as lambics sem açúcar), algo oleoso, com alta carbonatação e taninos evidentes, mas moderados. Uma lambic em que o açúcar joga a favor da fruta, e não contra a acidez e o aroma. Devido à salutar dose de taninos da fruta, ela acaba ficando mais equilibrada do que a Framboise Boon, a qual, por ser feita com framboesas, não tem a adstringência tânica para combater o doce e acaba ficando amena demais. Clique aqui para ver a avaliação completa.

O futuro?

Lambics adoçadas tiveram seu auge entre os anos 1970 e 1990. A partir daí, voltou a crescer o interesse por lambics secas e tradicionais – em parte impulsionado pelo público norte-americano, que começou a descobrir os encantos das cervejas selvagens. O reconhecimento, por parte da União Europeia, da lambic como produto tradicional também contribuiu para esse benfazejo retorno. Tanto é que diversas produtores de lambics que só produziam versões adoçadas voltaram (alguns muito recentemente) a apresentar rótulos tradicionais, com a denominação “oude” ou “vieille”. Vive-se hoje uma época de muito entusiasmo para o mundo das lambics, com novos blenders e cervejarias abrindo, ampliando a produção e testando receitas e métodos inovadores.


Isso significa que as lambics adoçadas vão desaparecer? Não há nenhum sinal nesse sentido. Na verdade, tem crescido a tendência a apresentar ao público versões com doçura cada vez mais acentuada, e caráter de lambic cada vez menos aparente. Hoje, os dois tipos de produtos destinam-se a públicos claramente distintos, e há espaço no mercado europeu e mundial para ambos. As adoçadas ainda representam um volume esmagadoramente maior da produção e consumo, de modo que não parecem fadadas a acabar tão cedo. Sempre haverá espaço para alguma coisinha para adoçar a vida.