sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XIV: Sete vermelhas de Flandres - e de outras paragens

Na última parte desta matéria, tivemos a oportunidade de fazer um panorama dos métodos de produção e das características sensoriais das Flanders red ales, cervejas selvagens típicas do norte da Bélgica que, por misturarem características de ales com traços de acidez e Brettanomyces, costumam ser uma ótima primeira aproximação ao universo das cervejas selvagens para paladares menos acostumados. Todas as cervejas do estilo são produzidas usando o mesmo tipo de fermentação mista e maturação em madeira, mas suas características variam muito conforme os tempos de maturação e as proporções usadas para compor o blend final.

É o que veremos na prática a partir da comparação de sete cervejas do estilo. As cinco primeiras são representantes mais fiéis do estilo, com teor alcoólico mediano e obtidas por meio da mistura entre cervejas jovens e envelhecidas, em diferentes proporções. As duas últimas – infelizmente indisponíveis no Brasil – são versões mais fortes, longamente maturadas em carvalho, sem mistura com cervejas jovens, e nos mostram quão ousadas podem ser as cervejas de Flandres.


Fonte: belgianbeershrimper.wordpress.com
A cervejaria Rodenbach é a maior referência mundial no estilo, e foi dela que se originou a cultura mista de leveduras e bactérias atualmente empregada pela maior parte dos produtores de Flanders red ales, donde se pode dimensionar sua importância histórica. A cervejaria vende cinco versões de sua cerveja, dentre as quais a Rodenbach (também denominada “Rodenbach Classic”) é a mais simples e amena. Composta a partir de um blend em que entra um quarto de cerveja envelhecida (por dois anos) e três quartos de cerveja jovem, mostra predomínio das características maltadas, tostadas e frutadas da ale fresca. Caramelo, castanhas e tostado unem-se a notas de morango maduro, uva roxa e pimenta-do-Reino. Ao fundo, algum animal e caprílico denunciam as Brettanomyes, enquanto os tonéis imprimem um tom levemente amadeirado e uma sutil baunilha que reforça a percepção dos morangos. Ela começa medianamente ácida na boca, mas logo abre uma envolvente doçura maltada que se prolonga no final. O corpo é médio, com textura é cremosa. Mantém-se suave, de paladar muito acessível, sem perder completamente a complexidade da maturação. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.boozehund.com
A “Grand Cru” é o segundo blend clássico da Rodenbach, com mistura de proporções invertidas em relação à “Classic”: dois terços de cerveja envelhecida em madeira (por dois anos) e apenas um terço de cerveja jovem. Como se poderia esperar, o resultado é que a complexidade e o caráter “selvagem” da cerveja envelhecida brilham com muito mais transparência, muito embora a maciez da jovem ainda se evidencie para tornar o blend mais amigável ao paladar. Quase tudo o que está presente na versão “Classic” reaparece aqui com mais intensidade. Couro cru, estábulo, caramelo e morangos maduros se equilibram no aroma em partes iguais, com sensações complementares de castanhas, chocolate, vinho tinto, pimenta-do-Reino e lírios. A maturação em madeira aparece mais – além dos aromas animais, notam-se amadeirado, amêndoas cruas, vinagre e uma baunilha que se junta às frutas para reforçar a sensação de morango. Ela entra bem ácida na boca, mas a acidez vai decaindo em direção a um final muito longo e gentil, em que a doçura do malte aparece de forma equilibrada. O corpo é mediano e a textura é aveludada, com uma certa adstringência da madeira. Um blend equilibrado e refinado, em que os encantos do estilo aparecem de forma mais clara sem que a doçura pese demais. Lembra muito um vinho tinto da Borgonha. É uma pena que custe tão caro no Brasil – bem que a importadora poderia trazer as garrafinhas de 330 ou 250ml para que ela se torne mais acessível. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: ministerieetenendrinken.nl
A denominação desta cerveja causa bastante confusão, já que seu rótulo traz a expressão “oud bruin” – que, em flamengo, significa “velha marrom” e que é homônima a um estilo que também pode ser denominado “Flanders brown ale”. Contudo, esta Bacchus não é uma Flanders brown, e sim uma Flanders red ale, com maturação em carvalho. O predomínio da acidez sobre a doçura e a intensidade dos traços de Brettanomyces sugerem uma grande proporção da cerveja envelhecida no blend, enquanto seu corpo surpreendentemente leve e sua baixa adstringência de taninos lhe garantem uma alta drinkability. No aroma, brilham as Brettanomyces, com frutas frescas (cerejas vívidas e uvas verdes) e os aromas de couro cru e estábulo. Caramelo, chocolate e toques discretos de vinagre e canela a complementam de forma agradável. A acidez é intensa, mas muito limpa e refrescante, e dá lugar a uma doçura final. O corpo é muito leve, crocante e seco. Uma Flanders red talvez pouco marcante, mas muito bela e graciosa, para refrescar uma noite de verão. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: 366bottles.blogspot.com
Produzida pela cervejaria Timmermans, esta Flanders red ale da região de Bruxelas apresenta algumas peculiaridades interessantes em seu processo produtivo. Como a Timmermans também produz lambics pelo método tradicional, esta cerveja não é inoculada com uma cultura mista de leveduras ale e bactérias. Antes, a cervejaria fermenta normalmente uma ale escura, à qual adiciona uma proporção de lambic pronta e matura a mistura em carvalho para que a lambic acidifique a ale. Depois de envelhecida, a cerveja resultante é blendada com a ale jovem e engarrafada. O resultado é que o produto final apresenta a profundidade aromática de Brettanomyces da lambic, mas sem tanta acidez quanto outras do estilo, já que não é inoculada com bactérias láticas. Aromas animais e principalmente terrosos e de mofo são acentuados, sugerindo mais acidez do que efetivamente se encontra na boca. Caramelo, frutas (morango, suco de uva, uvas verdes) e especiarias (alcaçuz e pimenta-do-Reino) aparecem com grande complexidade, junto com um abaunilhado perceptível. Há uma pontadinha de acidez lática no começo (sem traços acéticos perceptíveis), mas logo depois a doçura predomina, até de forma um pouco enjoativa. O corpo é leve para mediano, com textura agradavelmente cremosa e acetinada. O rótulo indica “aromatizantes” e não os especifica – fiquei com a impressão de que talvez seja caramelo. Interessante versão “alternativa” do estilo, com um contraste entre o aroma marcante e o sabor mais suave e amigável. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.camrgb.org
Este é o blend mais maduro da cervejaria Verhaeghe, que apresenta uma peculiaridade: a mistura usa apenas cervejas envelhecidas em madeira, sem ales jovens. Uma parte é envelhecida durante 8 meses, enquanto o restante matura por 18 meses. Assim sendo, o blend ganha forte acidez e aromas animais e amadeirados acentuados, tornando-se uma representante especialmente marcante do estilo. Belíssima no copo, com uma cor bordô intensa e boa espuma. Os aromas aparecem com bastante vigor: muito estábulo e couro cru, madeira, terra, aceto balsâmico e acetona convivem com sabores mais amenos, remetendo a suco de uvas azedas, caramelo e castanhas. A acidez, lática e acética, é intensa, mas equilibrada ao final pela doçura residual do malte e pela adstringência da madeira. O corpo é mediano, com marcante textura terrosa e um certo aquecimento com sensação “química”, mas não necessariamente desagradável. É uma representante do estilo com “pegada” bem forte e muita personalidade, bem rústica, mas equilibrada pelo balanço entre acidez e doçura. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: barleydine.wordpress.com
Esta espetacular e especialíssima cerveja da tradição de Flandres é uma versão da dark strong ale da cervejaria, a Oerbier, que matura por 18 meses em barris de carvalho usados para a produção de vinhos Bordeaux. A cerveja-base é uma potente ale belga de 13% de álcool, mas é produzida com uma cultura mista de leveduras e bactérias, de modo que a longa maturação a acidifica, exatamente como ocorre com uma Flanders red mais convencional. A complexidade aromática é vertiginosa: a cerveja-base traz bastante cereja madura, maçã-do-amor, caramelo, chocolate, rosas, pimenta-do-Reino, pimenta vermelha e anis. Dentre tudo o que a maturação lhe imprime, identifiquei amêndoas cruas, estábulo, couro cru, terroso, tabaco, mofo, vinagre, madeira e vinho do Porto. Tudo isso se funde num torvelinho delicioso de aromas, em que o rústico, o maduro e o doce se misturam deliciosamente. No boca, predomina o tempo todo a acidez, mas há uma breve doçura inicial e um surpreendente amargor final, levemente tânico. O corpo é mediano, seco considerando seu teor alcoólico, mas soberbamente estruturado por elegantes e impecáveis taninos. Uma joia rara cravada na coroa de Flandres. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.beerfm.com
Embora nem sempre os norte-americanos consigam com sucesso replicar cervejas selvagens belgas, alguns dos seus maiores acertos ocorrem quando eles não tentam seguir à risca os estilos originais, mas criam novas interpretações. É o caso desta Flanders red ale da californiana The Bruery, que matura durante 18 meses em barris de vinho tinto (sem blendagem com ales jovens) e que apresenta um dos mais impressionantes perfis de maturação que este humilde degustador já encontrou. Notas animais, terrosas, de mofo, baunilha e madeira, típicas do estilo, convivem com traços de oxidação e autólise lembrando molho de tomate, couro curtido, molho inglês e vinho do Porto. O malte aparece com um caramelado e as frutas sugerem figos secos e passas ao rum. O aroma parece uma mistura entre uma Flanders red ale e uma old ale inglesa longamente envelhecida. A acidez é muito intensa e reina ao lado de uma forte sensação salgada, mas ela começa e termina na boca com uma leve doçura de malte. O corpo é leve para mediano, mas os taninos acentuados lhe dão uma textura muito estruturada e adstringente. Impactante e intensa, mas misteriosamente harmônica em sua sobriedade. Prova de que as cervejas selvagens de Flandres podem ser palcos muito férteis para a criatividade da revolução artesanal. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Curiosamente, embora nosso mercado nacional ainda seja carente de boas lambics a preços acessíveis, temos boa disponibilidade de cervejas do estilo Flanders red ale. Dentre outros rótulos que podem ser garimpados nos empórios nacionais, é possível encontrar as 5 primeiras cervejas desta seleção. As duas últimas, contudo, seguem sendo rótulos raros, de difícil acesso mesmo em seus países de origem. As cervejas da De Dolle acabaram de chegar ao Brasil, mas ainda não há sinal da Oerbier Special Reserva, nem de sua irmã Stille Nacht Special Reserva – as duas são produzidas e lançadas em anos alternados.

Talvez ainda mais do que as tradicionalíssimas lambics, as Flanders red ales desafiam classificação e padronização. Seus métodos produtivos, sujeitos a uma certa variação de produtor para produtor, resultam necessariamente em produtos com caráter muito distinto. É verdade que a Rodenbach Grand Cru tem sido historicamente considerada o “paradigma” do estilo; contudo, se analisarmos todas as demais Flanders red tendo ela como referência, estaremos sendo injustos e deixaremos de ser capazes de observar a beleza que cada uma traz em sua proposta. Flanders red ales podem ser mais “selvagens”, desafiando nosso paladar com sua acidez e seus taninos, ou mais “amáveis”, conquistando pela maciez do seu corpo e dos seus açúcares. Podem, igualmente, trazer em primeiro plano os aromas e sabores mais rústicos e rurais das leveduras selvagens, ou podem ostentar o encantador frescor das frutas e especiarias.




Mesmo com toda essa variedade interna ao estilo, as Flanders red ales não são as únicas cervejas selvagens produzidas nos territórios flamengos. Na próxima parte desta matéria, teremos a oportunidade de entender as diferenças entre as Flanders red e as Flanders brown ales, dois estilos frequentemente confundidos entre si, mas que passaram por desenvolvimentos históricos razoavelmente distintos. Não perca!

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