sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XV: Oud bruin

Pesquise em cinco fontes diferentes, e você corre o risco de ter cinco formas de entender a separação entre os dois estilos selvagens da região de Flandres: as Flanders red ales, por um lado, e as Flanders brown ales ou oud bruin, por outro. A confusão é tão grande que o guia da Brewers Association simplesmente unifica os dois estilos sob uma única denominação: “Belgian-style Flanders oud bruin or oud red ales”. Outras fontes fazem distinção entre os estilos com critérios levemente diferentes. Sobre as red ales já falamos antes aqui nesta série de matérias sobre cervejas selvagens. Portanto, agora falaremos sobre suas menos conhecidas primas, as oud bruin.

Uma questão de definição

A tripartição do Império Carolíngio no tratado de 
Verdun. A fronteira entre as porções rosa e 
verde, no extremo norte, é o rio Escalda.
Fonte: http://commons.wikimedia.org
Num primeiro nível, a fronteira que separa as Flanders red ales das brown ales é geográfica, e localiza-se na cidade de Oudenaarde. Mais especificamente, no rio Escalda (em flamengo, Schelde). Ocorre que o Escalda é o marco divisório entre as duas províncias de Flandres Ocidental (domínio das Flanders red ales) e Flandres Oriental (lar das oud bruin). O Escalda foi um importante marco geopolítico da região pelo menos desde o final do Império Carolíngio em 843, quando o tratado de Verdun estabeleceu no rio a fronteira entre a Francia Ocidental e a Francia Central. O Escalda continuou exercendo papel demarcatório por muito tempo, demarcando a fronteira entre o reino da França e o chamado Sacro Império Romano-Germânico. Como se poderia prever, a influência latino-francesa do lado ocidental e a influência germânica do lado oriental acabaram por influenciar a produção de cerveja, fazendo com que o uso do lúpulo e de modernas técnicas de produção, mais semelhantes às das lagers alemãs, se disseminassem com mais rapidez no lado oriental de Flandres.

O resultado é que, enquanto as Flanders red ales têm um caráter selvagem mais acentuado, bem acético e animal, as oud bruin mostram-se mais limpas, com acidez mais suave e perfil de maltes mais acentuado. O método produtivo guarda muitas semelhanças com as Flandres red ales: um mosto pouco lupulado, com maltes escuros, é fermentado por uma cultura mista que inclui leveduras do tipo Saccharomyces cerevisiae (ou seja, da variedade ale) e bactérias láticas dos gêneros Lactobacillus e Pediococcus. Aliás, na mais tradicional produtora de oud bruin, a Liefmans, a cultura original deriva daquela obtida com a Rodenbach, tradicional produtora de Flandres red ales. Ou seja, Flanders red e browns compartilham boa parte de seu DNA. A cerveja fermenta por uma semana, normalmente em tanques abertos, e depois é maturada por até um ano, período durante o qual se torna mais ácida. A porção envelhecida é então blendada com uma ale jovem antes de engarrafar, exatamente como se faz com as Flanders red ales.

Então o que faz com que sejam diferentes? O segredo está em como a cerveja evolui durante a maturação. Derek Walsh considera que o estilo pode ser maturado em madeira; contudo, para o guia do BJCP e para Jeff Sparrow, é distintivo das oud bruin a maturação em tanques de aço inox. E por que isso a torna tão diferente? Ora, lembremo-nos de que a cultura mista com a qual se fermentam as cervejas selvagens de Flandres não inclui Brettanomyces. No caso das Flanders red ales, as Brettanomyces habitam os tonéis de madeira, e é durante a maturação que a cerveja sofre sua influência crucial. Tanques de aço inox, por sua vez, são ambientes cuja rigorosa assepsia e ausência de porosidade impedem a proliferação e infiltração de Brettanomyces. Como resultado, a cerveja não desenvolve traços associados a estes microorganismos – nomeadamente, os aromas animais (estábulo, couro cru) e a superatenuação (consumo de quase todos os açúcares residuais). Secundariamente, também não adquirem aromas e sabores amadeirados e abaunilhados, comuns nas Flanders red ales. Por fim, não sofrem micro-oxigenação, minimizando a produção de ácido acético.

Os tanques de inox onde a Liefmans matura suas 
oud bruin comportam impressionantes 700 hl.
Fonte: belgianbeerspecialist.blogspot.com
Isso significa que as oud bruin, em seu conjunto, parecem menos “selvagens” que suas primas ocidentais. Não têm uma pegada acética perceptível (que nas Flanders red frequentemente remete a vinagre balsâmico) e não exibem os aromas animais tão associados às cervejas selvagens. Como resultado, os sabores caramelados do malte se destacam, e os ésteres pendem decisivamente para o lado das frutas passas (uvas passas, ameixas, figos etc.). Os traços de oxidação tornam-se mais limpos e licorosos. De fato, ao beber uma oud bruin, às vezes se tem uma sensação mais semelhante à de uma dubbel do que aquela sensação “selvagem” a que nos habituamos ao beber Flanders red ales e lambics.

Uma oud bruin especial

Atualmente, tornou-se difícil encontrar cervejarias que ainda façam cervejas que seguem fielmente o estilo. A maioria das cervejarias na região oriental de Flandres fechou ao longo do século XX, e poucas das remanescentes mantiveram a tradição. A maior e mais famosa delas é a Liefmans, que pertence ao grupo Duvel-Moortgat desde 2007. Hoje em dia, as oud bruin da Liefmans são brassadas na fábrica da Duvel, em Breendonk, e depois transportadas para a antiga fábrica em Oudenaarde, às margens do rio Escalda, onde são fermentadas, maturadas e blendadas.

Em sua linha, destaca-se a Liefmans Goudenband (a pronúncia é algo como "rudenband"), uma versão mais potente do estilo, com 8% de álcool e com vocação para guarda. As oud bruin tradicionais são cervejas de teor alcoólico mediano, em torno dos 5%, para se beber cotidianamente, e a própria Goudenband costumava ter 5.2% antes de ter sua receita alterada para a atual, em 1992. Hoje, mostra-se uma cerveja intensa, com um atrevido perfil adocicado e licoroso que se equilibra admiravelmente com a acidez do estilo. A cerveja costumava vir ao Brasil antigamente, por preços bastante salgados, mas hoje em dia não tem sido mais importada. O resultado é que não temos nenhuma – repito, nenhuma – representante fiel do estilo no mercado nacional. Agora que a gigante Interfood adquiriu os direitos de importação sobre a linha da Duvel-Moortgat, quem sabe não comecem a trazer novamente este belo rótulo?


Estilo: oud bruin / Flanders brown ale
Teor alcoólico: 8%
Aparência: bela coloração entre o ameixa e o castanho, escura e convidativa. O creme é volumoso, de persistência mediana.
Aromas: destaca-se de cara o equilíbrio entre o malte (açúcar queimado e caramelo bem marcantes) e os ésteres frutados (ameixas secas e maçãs vermelhas), tudo bastante intenso e impactante. Couro curtido e molho de tomate, ao fundo, lhe dão aquele sóbrio ar de “envelhecido” que se espera de uma cerveja de guarda. Nada dos aromas animais associados às Brettanomyces – nem adianta sair bradando que sentiu “estábulo” e “cobertor de cavalo” só para mostrar que entende de cervejas selvagens.
Paladar: predomina uma doçura muito intensa, lembrando licor, contrabalanceada por uma acidez lática bem perceptível, mas suplementar. Não espere uma acidez impactante. O amargor é suave. Em nenhum momento perde aquela sensação agradável, bem belga, de “cerveja doce”.
Sensação na boca: volumosa e opulenta, com textura licorosa que impõe respeito. A carbonatação é alta, e percebe-se alguma adstringência, mas menos do que a maioria das Flanders red ales, maturadas em madeira. O aquecimento alcoólico é bem perceptível, mas não propriamente exagerado.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A combinação entre a acidez lática, a doçura licorosa e os traços oxidativos lembra alguns vinhos fortificados, como os da Madeira, fazendo com que a Goudenband tenha vocação para digestivo, ao final de uma refeição. É uma experiência muito interessante para fãs de cervejas selvagens, na medida em que desvincula a acidez dos aromas rústicos, animais, produzidos pelas Brettanomyces. Lembra um pouco a sensação de uma barleywine ácida.

É uma pena que já não tenhamos nenhuma oud bruin no mercado brasileiro – que ainda engatinha quando o assunto é a selvageria cervejeira. Aí talvez alguns de vocês retruquem: “Mas eu vi no empório uma oud bruin outro dia mesmo!” Temos algumas cervejas que estampam a expressão no rótulo (a exemplo da Bacchus Vlaams Oud Bruin, que analisamos anteriormente, mas que são maturadas em carvalho, o que faz com que, tecnicamente, sejam classificadas como Flanders red ales, exibindo aquele distintivo traço animal das Brettanomyces. E não é só no Brasil que isso ocorre. Devido à sua maior sutileza nos traços “selvagens”, as oud bruin têm ficado relativamente negligenciadas em favor das Flanders red ales mesmo nos países que têm se interessado por produzir cervejas selvagens, como os EUA. Estaríamos assistindo, talvez, ao lento e silencioso crepúsculo de um estilo? É o que o guia da Brewers Association sinaliza, ao unir as oud bruin às suas primas ocidentais. Torçamos para que os sóbrios encantos deste estilo algo injustiçado sejam redescobertos e revalorizados antes que ele se torne pouco mais que uma memória!


Na próxima parte desta matéria, acabaremos de abordar as cervejas selvagens de Flandres falando sobre as versões com frutas. E você achava que toda fruit beer ácida era lambic? Não perca!

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