terça-feira, 15 de abril de 2014

Pegando pó: Orval, a divina alquimia

A fórmula VITRIOL resume, em latim, o princípio da 
alquimia: “visite a terra interior e encontre a pedra 
oculta pela retificação”. Do manual de 
Stolzius de Stolzenburg (1614).
Fonte: http://commons.wikimedia.org/
Alquimia. Do árabe al-khimiya, cuja origem é controversa, mas provavelmente derivada do grego khumeia, que significava o ato de fundir ou misturar líquidos. A alquimia chegou à Europa ocidental em torno do século XII por meio dos árabes (responsáveis por preservar boa parte do conhecimento científico da Antiguidade), e juntava-se à astrologia para formar o que os homens medievais tinham de mais próximo daquilo que hoje nós chamamos de “ciência”. A alquimia lidava com a transformação da matéria, e seu objetivo último era a obtenção da “pedra filosofal” (“khimiya”), que permitiria transformar o chumbo em ouro. Curiosamente, o lugar onde se praticava a alquimia medieval eram os mosteiros católicos – isso porque o clero era a única camada social letrada e com estudo formal na época. Na concepção dos alquimistas medievais, tratava-se de entender os princípios e leis com as quais Deus ordenou a matéria, para poder refinar as substâncias das mais rudes às mais preciosas, numa analogia com a purificação espiritual do homem por meio da religião. Portanto, para os padres medievais, nada estava mais próximo da alquimia do que o poder de Deus.

Nós, fãs de cervejas, sabemos que os monges medievais não se limitaram a tentar converter chumbo em ouro quando se trata de transformações da matéria. Pode ser que tenham falhado na busca da pedra filosofal, mas certamente tiveram muito mais sucesso em uma outra sorte de conversão química: aquela que transformava água, cevada e lúpulo em cervejas – de divino paladar e tão sofisticadas quanto o ouro.

Orval: o poder do tempo

A Orval faz parte do (cada vez menos) seleto grupo de cervejas que podem ostentar a denominação de “autêntico produto trapista”, devido ao fato de serem feitas dentro de monastérios trapistas (uma ramificação da ordem cistercience, pertencente à Igreja católica romana), sob supervisão dos monges. E é, sem sombra de dúvida, a mais idiossincrática de todas as cervejas trapistas. A começar pelo fato de ser o único rótulo distribuído comercialmente pela Abadia de Nossa Senhora de Orval, e ainda mais porque é muito distinta das ales belgas “de abadia” como as demais trapistas (com a exceção de alguns rótulos secundários da La Trappe). Boa sorte na tentativa de identificar seu estilo. A maior parte dos sistemas de classificação opta pela solução segura de incluí-la na categoria guarda-chuva de “Belgian specialty ale”. Já o especialista norte-americano Randy Mosher a descreve como “pertencente ao estilo saison, em sentido amplo”, postura discretamente endossada por Stan Hieronymus e por este que aqui escreve.

As ruínas do antigo monastério do século XII foram 
preservadas quando a abadia foi reconstruída 
na década de 1920.
Fonte: http://en.wikipedia.org/
A Orval é feita de acordo com uma receita da década de 1930, que provavelmente guardava semelhanças importantes com as saisons da época – muito populares na região do monastério –, como a água, rica em bicarbonato (o que acentua o amargor), a lupulagem expressiva e uma certa rusticidade rural. Mas o que realmente coloca a Orval numa categoria especial é a forma toda peculiar como ela evolui na garrafa depois de pronta. A Orval recém-saída da fábrica, depois de 6 meses e depois de 1 ano nem parecem a mesma cerveja.

Isso acontece devido às duas técnicas (raramente empregadas juntas) por meio das quais a Orval é produzida. Em primeiro lugar, além de ser expressivamente lupulada na fervura, ela ainda recebe uma dose extra de lúpulos durante a maturação, em dry-hopping, o que lhe garante um intenso aroma herbal e apimentado, típico de variedades europeias nobres de lúpulo. As variedades foram alteradas ao longo do tempo, e hoje incluem a alemã Hallertauer, a eslovena Styrian Goldings e a francesa Strisselspalt. Além disso, a Orval é refermentada em tanques horizontais por três semanas com uma cultura de leveduras locais que inclui uma cepa de Brettanomyces – as mesmas leveduras “selvagens” que ocorrem na fermentação das lambics. Apesar de ela ser centrifugada e engarrafada apenas com uma nova dose do fermento primário, as Brettanomyces continuam presentes na cerveja e irão estender sua atividade fermentativa por mais nove meses, pelo menos, imprimindo à cerveja uma acidez suave e aromas frutados e animais lembrando uvas verdes e couro cru.

Especula-se que essa dupla técnica de produção seja um reflexo não só das saisons locais (que eram intensamente lupuladas para os padrões belgas e que frequentemente continham Brettanomyces), mas também da composição do time de cervejeiros responsáveis pela produção quando a cervejaria foi inaugurada, nos anos 1930: um alemão (possivelmente mais inclinado ao uso dos lúpulos nobres) e seu assistente de Flandres (região famosa pelas cervejas com Brettanomyces).

Ocorre, porém, que as características de dry-hopping e de Brettanomyces desenvolvem-se de forma inversamente proporcional com o tempo: enquanto o aroma herbal e apimentado dos lúpulos tende a arrefecer, o aroma animal e frutado das Bretta vai se intensificando e a cerveja vai secando à medida em que prossegue a fermentação dos açúcares remanescentes. Assim que ela sai da fábrica, predomina claramente o caráter de lúpulos, sem aromas animais. Aos seis meses, os traços de couro cru e uvas verdes começam a se insinuar e, com 12 meses, alcançam uma espécie de equilíbrio com o lúpulo. A partir daí, a cerveja vai ficando cada vez menos herbal e vai desenvolvendo uma profundidade cada vez maior de aromas animais e de frutas ácidas.

Dentro de suas pequenas e charmosas garrafinhas abauladas, a Orval cumpre a promessa dos monges alquimistas: a transformação e o refinamento da matéria, a conversão do chumbo em ouro. Como um fiel monge católico, a cerveja aperfeiçoa-se e empreende um refinamento espiritual que a torna algo realmente único, digno do divino selo que ostenta. Ela é um testemunho não só do poder do tempo, mas da engenhosidade do homem em domesticar e usar o tempo a seu favor para transformar o mundo.

O monastério já abrigou mais de 100 monges, mas hoje 
menos de 20 vivem lá. A igreja está com dificuldade de 
encontrar novas vocações, e nós cervejeiros 
estamos em perigo!
Fonte: europevideoproductions.com
No Brasil, a Orval tem distribuição lamentavelmente irregular. Há épocas em que se encontra em falta no mercado. Antigamente, era difícil encontrar uma garrafa jovem, com menos de um ano de idade. Hoje em dia, com o mercado mais aquecido e os preços mais competitivos, os novos carregamentos trazem garrafas bastante frescas, com menos de 6 meses desde o engarrafamento, que rapidamente se esgotam, tornando mais difícil a tarefa de comprar a Orval já envelhecida. A solução é envelhecer você mesmo as suas garrafinhas da Orval para ter a oportunidade de testemunhar sua gloriosa alquimia.

Foi exatamente o que eu fiz. Eu já havia bebido a Orval com cerca de um ano de guarda – foi como a conheci e como me encantei por ela. Ainda acredito que seja um dos pontos altos de sua evolução. Depois de comprar mais algumas garrafinhas no início de 2010, deixei-as quietinhas na minha adega. A Orval nos faz o favor de imprimir no rótulo a data de envase, fazendo com que seja mais fácil e preciso controlar o tempo de guarda. Abri uma das garrafas com quase 2 anos de guarda, depois mais uma com 3 anos e meio, e finalmente uma última com 5 anos, agora em 2014. Vejamos o que ela traz em cada momento de sua vida.

A divina alquimia

Jovem, com apenas 7 meses de idade, a Orval mostrou seu lado fresco, rústico e campestre, com lúpulos em destaque. Sua coloração é âmbar escura, levemente acobreada, com baixa turbidez e um creme impecavelmente alto e fofo que é sua marca registrada – e que continua lá mesmo depois de 5 anos de guarda! No aroma, o dry-hopping é acentuado, predominando os tons terrosos, apimentados, herbais (capim-limão) e cítricos (casca de limão). O malte ainda é bem evidente, mostrando bastante castanhas e mel, e também se sente um leve frutado lembrando maçãs vermelhas. Os traços de Brettanomyces começam a se insinuar, tímidos, com algum caprílico e couro cru subjazendo a toda essa rusticidade herbal. Na boca, a versão jovem é a mais firme e assertiva de todas: mostra um amargor poderoso e encerra o gole com uma doçura breve que dá lugar a um final seco e amargo. A acidez é presente, mas suave. O corpo é mediano, mais intenso que nas versões envelhecidas, levemente acetinado, denunciando os açúcares residuais.

A Orval em sua glória, com sua poderosa espuma. 
O charmoso design da taça e da garrafinha foi 
feito pelo mesmo arquiteto que projetou 
a abadia reconstruída.
Fonte: edurecomenda.com
Nos próximos 6 meses, sua evolução é bastante acentuada. Que diferença em relação à Orval de 7 meses! Com 1 ano de guarda, a Orval apresenta equilíbrio entre características de lúpulo, frutado e traços animais, embora comece a pender mais para estes últimos. Couro cru predomina, e a complexidade do lúpulo se apagou em um aroma herbal mais genérico, lembrando ervas finas, com uma pontada de citricidade sugerindo laranja. As maçãs vermelhas ganharam terreno e dividem o palco com as uvas verdes das Brettanomyces. Amêndoas cruas denunciam uma elegante oxidação, e o malta se amaciou e converteu-se em um discreto, mas vívido pão branco. Na boca, a acidez é levemente mais perceptível, mas ela ainda guarda bem o amargor firme e perene e algo daquela doçura de malte no final do gole. O corpo continua mediano, ainda não secou completamente. Seu teor alcoólico seguramente já ultrapassou os 6.2% inicialmente indicados no rótulo, mas ela não o denuncia na boca. Este é seguramente um dos pontos altos de sua evolução, talvez aquele que tenha se fixado na minha memória como sendo o gosto da Orval.

A partir daí, ela começa a evoluir mais devagar, o que não significa que pare de se transformar. É só que as coisas chegam a uma espécie de ponto de equilíbrio e depois ela só vai “refinando”. Com quase 2 anos de idade, a Orval torna-se um pouco menos expressiva: perde seu frescor inicial e passa por uma fase em que a oxidação predomina de forma marcante com sensações terrosas e minerais de amêndoas cruas e marzipã, ao lado dos aromas animais e de uvas verdes das Brettanomyces. Estas também trazem violetas, pimenta-do-Reino, alguma canela e caprílico. O lúpulo já quase se apagou, tendo restado um toque de ervas finas e pimenta. O malte, maduro, mostra nuances de caramelo. Apesar da grande complexidade de aromas, parece que nem tudo está perfeitamente integrado, e o amendoado mineral rouba um pouco a cena na boca. A acidez é mais evidente no começo, sendo que depois o amargor seco predomina. A doçura final tornou-se suave. Seu calcanhar-de-Aquiles é o final breve, um pouco inexpressivo. Eu diria que a Orval atinge talvez seu ponto mais baixo nesse momento, para depois ressurgir mais resplendorosa.

Com 3 anos e meio, sua complexidade de aromas se reduziu, mas ela se tornou mais consistente, elegante e harmônica. Animal, couro cru e uvas verdes predominam claramente, lembrando vividamente o aroma de lambics, com o amendoado mais bem integrado. Há um afago oriental, que lembra intrigantes resinas aromáticas, e o malte se refinou e deu lugar a um elegante mel aromático. Dos lúpulos, sobrou um toquezinho apimentado. O paladar é mais neutro e mais seco, com breve acidez inicial que dá lugar a um amargor suave e estável na boca, atenuado em comparação com as outras versões. Quase não há doçura. O corpo afinou, tornou-se seco e gentil. Neste ponto, parece que a Orval se livrou de suas “sobras”, aparou suas arestas e manteve apenas a essência do que as Brettanomyces lhe trouxeram. Purificada, ela está pronta para seu próximo salto espiritual – a conversão em ouro. VITRIOL.

Resplandecente, de fato, é a Orval plenamente madura, com 5 anos de idade. Sua coloração clareou levemente e ela se mostrou cristalina, mas a espuma continua sólida como rocha. O bouquet tornou-se extraordinariamente limpo e complexo, ganhando uma intrigante tensão, antes inexistente. Couro cru e uvas verdes dividem o palco com feno, um refrescante mentolado, apimentado fenólico e um agudo aroma de grafite e aço. Raspas de limão e amêndoas cruas aparecem sem roubar a cena, perfeitamente integradas. Traços de mel perfumado, cachaça, acetona aromática e pão doce a tornam discretamente inebriante. Na boca, ela voltou a ganhar um pouco da sensação vibrante que perdera: acidez e doçura já quase não aparecem mais, e o amargor volta a brilhar limpo e preciso, conduzindo a um final mediano com sensação mineral e de aço. O corpo é muito leve, mas com sensação decididamente mineral, quase metálica. Elegante e sóbria, a Orval emergiu de sua peregrinação de 5 anos com a precisão cortante de uma lâmina de aço, com uma sensação metálica e agradável difícil de explicar, e com a humildade de um fiel cristão: firme em sua convicção, mas suave e nada violenta em seu proselitismo. Foi uma honra tê-la no copo.

O gráfico abaixo sumariza a evolução de suas principais características ao longo do tempo.



A Orval percorre um longo caminho de purificação espiritual desde sua saída da fábrica. Seu perfil inicial de lúpulo vai lentamente se dissipando enquanto ela desenvolve os traços animais e frutados associados às Brettanomyces. Sua transformação é rápida ao longo do primeiro ano, e depois se torna mais lenta. Há um momento em que ela parece tornar-se menos expressiva, por volta dos 2-3 anos, para depois ressurgir com uma intrigante complexidade. Inspirados pela metáfora cristã, diríamos que ela vai lentamente abandonando as vestes mortais e naturais com as quais foi criada, deixando para trás sua natureza herbal e seu amargor irritadiço, e vai gestando o embrião de uma complexidade belíssima e etérea. Ela se desprende do que é supérfluo e, quando parece destituída de tudo o que tinha, está no ponto de pureza adequado para um surpreendentemente refinamento alquímico, finalmente vestindo o “manto de glória” prometido aos fiéis católicos capazes de suportar todas as provações deste vale de lágrimas que é a vida terrena. Belo exemplo para que nós aprendamos, no silêncio reverente que sua degustação demanda.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Cerveja e cinema: Possuídos


Cartaz do filme com a chamada: “O 
detetive John Hobbes está à procura de 
um criminoso que ele já encontrou... 
já prendeu... e já matou.”
Depois disso, vi descer do céu outro anjo que tinha grande poder, e a terra foi iluminada por sua glória. Clamou em alta voz, dizendo: Caiu, caiu Babilônia, a Grande. Tornou-se morada dos demônios, prisão dos espíritos imundos e das aves impuras e abomináveis, porque todas as nações beberam do vinho da ira de sua luxúria, pecaram com ela os reis da terra e os mercadores da terra se enriqueceram com o excesso do seu luxo. [...] os negociantes da terra choram e lamentam a seu respeito, porque já não há ninguém que lhes compre os carregamentos: carregamento de ouro e prata, pedras preciosas e pérolas, linho e púrpura, seda e escarlate, bem como de toda espécie de madeira odorífera, objetos de marfim e madeira preciosa; de bronze, ferro e mármore; de cinamomo e essência; de aromas, mirra e incenso; de vinho e óleo, de farinha e trigo, de animais de carga, ovelhas, cavalos e carros, escravos e outros homens. (Apocalipse, 18: 1-13)

Não, não estou aqui para fazer pregação bíblica no blog. Na verdade, quero falar a respeito de um filme que vi recentemente. Lançado em 1998 e dirigido pelo pouco célebre Gregory Hoblit, o filme chama-se Fallen, título ineptamente traduzido no Brasil como “Possuídos”. Trata-se de uma película de pouca expressão, que teve recepção morna tanto de crítica quanto de público, mas que muito me agradou – o que só mostra que, assim como ocorre com cervejas, devemos primeiro fazer o nosso juízo sobre um filme que vimos e só depois levar em conta o que se fala sobre ele. O filme é um suspense policial com elementos sobrenaturais e conta a história de John Hobbes (interpretado pelo sempre competente Denzel Washington), um policial às voltas com um assassino serial – spoilers adiante! – que, na verdade, é um espírito maligno capaz de se apossar de diferentes corpos para perpetrar seus crimes.

Nas pistas deixadas pelo demônio em suas vítimas, o policial recolhe indicações que conduzem a um trecho do Apocalipse bíblico, cujo conteúdo se encontra reproduzido no início desta matéria. Embora seja irrelevante para o desenlace do enredo, o texto bíblico (que é apenas mencionado no filme, sem que seu conteúdo seja explicitamente revelado) fornece uma das chaves interpretativas do filme, ao comparar a decadente metrópole na qual a história se ambienta à Babilônia do Apocalipse: uma cidade corrompida, marcada pelo pecado, pela ganância e pelo luxo desmedido dos mercadores que negociam em produtos de luxo e em almas humanas. A sugestão do filme é clara: se o demônio Azazel desfila impávido e desimpedido pela metrópole, apossando-se de seus habitantes sem dificuldade nenhuma, é porque encontrou na cidade moderna um lar de decadência espiritual semelhante à Babilônia bíblica.

A representação da metrópole decadente era frequente na 
produção cinematográfica dos anos 1980 (acima, uma 
cena de Blade Runner, 1982). No cinema recente, tendeu 
ser substituída por imagens assépticas 
da prosperidade urbana.
Fonte: wah-magazine.tumblr.com
O interessante é que o demônio, apesar de disposto a transformar a vida do policial John Hobbes em um inferno, parece incapaz de possuir seu corpo. O espírito maligno circula livremente pelos habitantes de uma moralmente decadente metrópole norte-americana, mas o policial mostra-se imune a seu toque corruptor. Estaria ele num patamar moral superior ao dos demais habitantes? O filme não nos explica por que isso ocorre, mas nos dá indícios. Numa das primeiras cenas do filme, Hobbes senta-se à mesa de um bar para uma conversa com seus colegas policiais, que falam sobre o hábito que tinham de aceitar subornos. Hobbes mostra-se refratário e afirma não participar de esquemas de corrupção – mas também não julga nem condena seus companheiros que participam.

O filme poderia simplesmente se esvaziar numa espécie de lamento saudosista e vagamente conservador a respeito de como “a humanidade está corrompida nos tempos modernos” e de como “os homens eram mais decentes no passado”, e todo esse blablablá decadentista que forma o monótono feijão-com-arroz de 99% dos discursos políticos conservadores. Poderia; mas não chega a fazê-lo. Isso porque as cenas em que o demônio possui os corpos das pessoas ou comete seus crimes estão todos saturadas, de formas sutis mas importantes, pelos signos da sociedade de consumo: vendedores e compradores nas ruas, caixas de cereais matinais, contratos de trabalho e relações de patrão e empregado formam o habitat em que o demônio circula e atua. E a cerveja entra numa dessas sutis referências que esclarecem melhor o sentido do enredo.

Numa das cenas em que Hobbes conversa com seus colegas, policiais assumidamente corruptos, segue-se uma breve discussão a respeito da cerveja que irão beber. Aparentemente, estão todos sentados em um bar que serve cervejas importadas, oferecidas como produtos “de luxo” (olha a Babilônia aí!). Hobbes pede uma cerveja comum e corriqueira – uma singela Budweiser –, ao que um dos seus colegas se espanta, sugerindo que ele deveria pedir alguma das importadas do bar: uma Beck’s, talvez uma Guinness ou Bass. Hobbes, resoluto, segue solicitando à garçonete sua corriqueira Bud. É questionado mais uma vez: “Então pelo menos uma Bud Dry, ou uma Bud Ice?” Não, só uma Bud normal mesmo. Sem frescura, sem novidade, sem invenção. Afinal de contas, o que há de errado com a velha Bud? Ou será que o policial precisa, necessariamente, entrar na roda do consumo e procurar sempre novos produtos, comprar mais e mais?

“Algum problema?”
Fonte: partparcelny.com
Às vezes eu me sinto um pouco como o policial Hobbes. OK, é evidente que meus leitores e eu compartilhamos um gosto por cervejas variadas, que fujam da mesmice. Mas o filme me fez pensar, não sem um certo incômodo, sobre a “Babilônia” em que tem se transformado o mercado brasileiro de cervejas ditas “especiais” ou “gourmet” (não sei qual dos dois termos eu detesto mais). Enquanto muitos falam hipocritamente em “beber menos e beber melhor”, contam o dinheiro gordo movimentado por esse mercado e suas amplas margens de lucro, incentivam e praticam uma espécie de consumismo desenfreado de acordo com o qual o que vale é beber sempre mais, a maior quantidade de marcas, os rótulos mais caros. Parece que “beber melhor”, na prática, quase sempre significa “beber mais e mais caro”. Se isso não é a imagem da Babilônia invocada pelo Apocalipse bíblico, eloquente a respeito de seus excessos de luxos e mercadorias, não sei o que é.

Afinal de contas, qual o problema em beber a boa e velha cerveja de sempre? Nas rodas cervejeiras, parece que virou pecado dizer que você bebe “a de sempre”. Pecado, meus amigos, é o esnobismo, o elitismo, o consumismo desenfreado. No caso do filme, a “de sempre” é a Budweiser, clássica lager estadunidense. Por muito tempo, a Bud não era produzida no Brasil; era uma cerveja importada, com posicionamento diferenciado, como a Beck’s, a Guinness ou a Bass da cena do filme. Hoje em dia é produzida no Brasil pela AmBev, mas sob uma curiosa classificação de “cerveja premium” (coisa que ela está distante de ser no seu país de origem). Aqui, o que corresponderia a ela seriam marcas de ampla circulação, tais como Skol, Brahma e que-tais.


Fica o desabafo: não tem nada de errado beber cerveja “comum”. Errado mesmo é excluir ou esnobar quem bebe essas cervejas – as quais, diga-se de passagem, 99% dos amantes das ditas “cervejas gourmet” um dia já beberam com prazer. Eu gosto de variar (acho que isso é óbvio pelo mero assunto deste blog), mas às vezes, quando quero me afastar um pouco dos excessos desta “Babilônia cervejeira”, abro uma garrafa da minha “ordinária” preferida – no meu caso, a velha e boa Bohemia, com aquele refrescante perfuminho cítrico que eu adoro. Às vezes a Heineken (nem sempre é fácil achar a Bohemia em boa forma nos bares e mercados...). Mas a verdade é que qualquer uma está valendo. O importante é não ser chato a ponto de excluir nenhuma. Porque, estou convicto, beber cerveja nenhuma vai me levar para o inferno, mas esnobar quem bebe tem boas chances de me garantir um encontro com os demônios da sociedade de consumo que atormentam nossas vidas.