quinta-feira, 15 de maio de 2014

Cerveja e cinema: The Bling Ring e as redes sociais cervejeiras

Sim, O Cru e o Maltado agora está no Facebook após anos de teimosa recusa. Bastou um perfil falso homenageando nosso querido bispo devorado pelos caetés (hilariamente, considerando seu sobrenome) e eu me esqueci do risco de ser pressionado por alunos impertinentes a respeito de meus hábitos cervejeiros. (Alunos, nunca se esqueçam de seus professores também têm vida privada e preferem que ela continue assim.) E, sim, eu finalmente troquei meu jurássico celular por um smartphone (obrigado pelo presente, minha linda!) e faço parte da legião de cervejeiros que faz check-in de tudo o que bebe no Untappd. Nunca estive tão internético. E também nunca estive tão enfadado a respeito desse fato.

Cartaz do filme.
Fonte: www.awardsdaily.com
Quero digredir um pouco. Historiador adora uma digressão, mas eu juro que volto ao assunto. É que o filme mais recente da diretora Sofia Coppola me parece o ponto de partida perfeito para voltar a falar sobre o zum-zum-zum cervejeiro nas redes sociais, embora não haja muita cerveja no filme (só vodka, energético e cocaína, pode ser?). Conheci Sofia Coppola quando da repercussão de seu primeiro grande sucesso comercial no Brasil: Encontros e Desencontros, de 2003. Odiei o tom pretensiosamente pseudofilosófico e a sucessão de chavões vazios do filme. Também odiei de morte o anacronismo insultoso de sua película subsequente, Maria Antonieta, de 2006. Assim sendo, estava preparado para continuar detestando-a quando aluguei The Bling Ring, de 2013 (que ganhou no Brasil o duvidoso título de “A gangue de Hollywood”). Só que eu amei perdidamente o filme.

Bling Ring inspira-se em uma história assustadoramente real, mostrando que a realidade é frequentemente mais incrível que a ficção. Spoilers adiante – o que não quer dizer muita coisa, já que os fatos aconteceram e todo mundo sabe como a história terminou. O enredo foi baseado em um artigo escrito pela jornalista americana Nancy Jo Sales para a revista Vanity Fair, intitulado The suspects wore Louboutins (“Os suspeitos calçavam Louboutins”), que conta a história de um grupo de adolescentes de Los Angeles que descobriu que podia facilmente invadir casas de celebridades enquanto elas estavam ausentes, fazer festinhas privadas e roubar pequenos “mimos” dos guarda-roupas de seus ídolos.

Luxo, ostentação e Facebook

O filme, obviamente, conta uma interpretação da história, sendo que altera ou dá menos importância a alguns detalhes do caso para imprimir à narrativa sua própria perspectiva. Isso não é um demérito: pelo contrário, é o que permite à diretora expressar com mais consistência e clareza sua visão dos eventos. Ou você acha que existe alguma narrativa que conta “fielmente” todos os fatos “como eles de fato aconteceram” (como dizia o caduco historiador Leopold Von Ranke no século XIX)?  Na vida real, os roubos somaram um impressionante montante de 3 milhões de dólares em produtos, dinheiro e joias. No filme, o valor monetário ganha pouca importância: as etiquetas com os emblemas “Dior”, “Chanel” ou “Louis Vuitton” eram o verdadeiro troféu contido nos objetos levados pelos adolescentes. E, convenhamos: ninguém vira uma celebridade mundial somente por roubar 3 milhões de dólares, concorda?

O filme revela uma ironia interessante que esses adolescentes revelaram. Na montanha-russa da especulação e da ciranda do consumo global, um vez que os caríssimos artigos de luxo são usados publicamente pelas celebridades, eles perdem completamente o valor para elas. Afinal, não se vai a duas cerimônias do Oscar com o mesmo vestido. O closet das celebridades se torna uma espécie de cemitério de fantasmáticas roupas proibidas, objetos caríssimos completamente esvaziados de seu valor-de-uso. Tanto é que, no filme de Coppola, quando malas cheias de roupas, sapatos e acessórias são discretamente surrupiados, seus donos sequer se dão conta de que foram roubados. Os objetos readquirem valor na mão dos ladrões, que correm para postar os novos modelitos no Facebook e no Instagram. Paradoxalmente, é o crime que restitui o valor a esses objetos e os coloca novamente no circuito da ostentação que é seu habitat natural.

O filme poderia tranquilamente aproveitar a história para contar uma enfadonha lição de moral sobre as consequências negativas e a imoralidade de uma vida vazia, consumista e irresponsável, sobre como essa nova geração de jovens está perdida, sobre como tudo era melhor quando as pessoas eram menos fúteis (e as mulheres não saíam na rua de minissaia) e todo esse bla-bla-bla saudosista. Numa dada altura do filme, eu até achei que Sofia Coppola estava indo por aí – afinal, está na moda ser conservador –, mas, felizmente, ela optou por não fazer isso. Em vez disso, ela radicalizou: mergulhou de cabeça na linguagem e na sedução do mundo em que esses jovens viviam e, de lá de dentro, mostrou que eles não estavam fazendo nada muito diferente de 95% de tudo o que circula nas redes sociais.

Que “xis” que nada! O negócio é fazer biquinho!
Fonte: http://www.insanos.com.br/
O ritmo do filme capta magistralmente o tempo simultaneamente fragmentado, rápido e enfadonhamente repetitivo das redes sociais, análogo ao da publicidade: tudo é um flash de luxo, uma pose rápida para a câmera, uma balada exclusiva e descolada, um produto novo. As situações se alternam com uma naturalidade desconcertante: celular a postos, os adolescentes se levantam e, em perfeita sincronia, começam a dançar como se estivessem curtindo a noite há horas. Um biquinho para a câmera, um flash, e voltam a conversar naturalmente sobre problemas de família. O importante é “sair bem na foto”, pois os registros visuais, que serão mostrados para os outros, são mais importantes do que a situação em si. Lembrei daquela moda que deu entre as adolescentes de, em vez de sair para a balada, irem umas às casas das outras apenas para se produzir e postar as fotos. No filme, as casas das celebridades se sucedem numa mesmice de luxo e ostentação. O filme parece um gigantesco e interminável comercial da Tom Ford, ou um clipe de hip-hop bling-bling de 2 horas de duração. Acho que esse era o filme que Sofia Coppola queria gravar quando fez Maria Antonieta, mas, aqui, ela não cometeu o erro de ambientar a história no século XVIII. Ela encarou o desafio da contemporaneidade e direcionou suas preocupações estéticas para o ambiente correto.

Coppola insere quebras estrategicamente, fazendo a mesquinhez da vida cotidiana se intrometer na ostentação para perturbá-la. O luxo dos produtos de grife roubados das celebridades contrasta de forma decepcionante com os quartos de classe média onde os adolescentes escondem de seus pais o butim de suas traquinagens: cômodos chocantemente precários se comparados às casas-vitrine das celebridades. A própria infantilidade dos membros da gangue, adolescentes comuns de um colégio norte-americano, rompe eventualmente o véu do glamour que eles criam em torno de si. O resultado é o mesmo misto de constrangimento e sedução que experimentamos ao ver as fotos da balada de um adolescente deslumbrado no Facebook, ou o último videoclip das paradas norte-americanas com aquelas ridículas dancinhas sincronizadas e poses sensuais que você abomina e não consegue parar de assistir de tão chamativo. O mérito do filme de Coppola é que ela mergulha na linguagem fragmentada do consumo contemporâneo e leva seus descompassos às últimas consequências – sem nunca cometer o erro de julgá-la a partir de fora.

Emma Watson encarna o “plastic sexy” 
de sua personagem.
Fonte: http://www.insanos.com.br/
Aquilo que, numa clássica história moral, seria o desfecho punitivo para o personagem vil, em Bling Ring é só mais um lance no jogo de autopromoção e sedução que os jovens jogam durante o filme todo. Por conta da própria publicidade que faziam de seus roubos, exibidos como troféus, a gangue acaba presa. E, das cortes de justiça, os adolescentes foram direto para as manchetes da Vanity Fair – finalmente lado a lado com as celebridades que tanto admiravam. Para a jovem Nicki, interpretada pela surpreendente Emma Watson, o julgamento, a polêmica em torno de seus crimes e até sua prisão não passam de mais uma postagem de grande repercussão na imensa timeline que era sua vida. Um meio de atingir uma audiência ainda maior. E nisso ela parece não se distinguir muito de seus ídolos mais famosos – afinal de contas, como relata em um programa televisivo, após ser detida pelos roubos e invasões, a adolescente teve a honra de ficar encarcerada em uma cela contígua à de Lindsay Lohan, cuja casa ela já invadira. As celebridades de Hollywood já aprenderam há muito tempo que, quando se faz um bom escândalo, a recompensa em termos de publicidade supera em muito a banalidade das prisões, fianças e multas administrativas. Nicki se revela aluna sagaz.

The suspects drank Westvleteren

Mas o que tudo isso tem a ver com cerveja? O leitor inteligente já terá percebido o rumo dessa conversa. Como disse lá no começo, recentemente entrei para o Untappd e criei uma página no Facebook. E fiquei assustado com a publicidade que as pessoas fazem em torno dos seus hábitos de consumo cervejeiro. Fotos de garrafas e copos cheios (e, principalmente, meio vazios) repetem-se monotonamente. Em geral são mal tiradas, mas não estão lá para serem bonitas, e sim como uma espécie de “prova visual” de que Fulano ou Cicrano realmente conseguiu pôr os lábios em um copo da tão cobiçada ____________ (insira aqui a mais nova importada de luxo do mercado ou alguma rara e exclusiva “whale” americana como a Dark Lord ou a Hunahpu’s). Como não bastasse ostentar os rótulos, caçam as medalhas do Untappd numa espécie de corrida maluca para ver quem bebeu a maior variedade de cervejas, o maior número de rótulos italianos, e por aí vamos.

Os “troféus” cervejeiros repetem-se com uma frequência assustadora pelo espaço virtual, muito raramente acompanhados de qualquer informação ou opinião útil sobre as cervejas. É difícil ler qualquer coisa além de “muito f*da pra c***lho”. E, bem, para ser sincero, considerando a quantidade de rótulos que o nosso não-tão-fictício degustador já postou antes na mesma noite, duvido que ele esteja em condições de avaliar seriamente o que está bebendo. Onde estou com a cabeça para querer qualquer coisa além de um “breja top!”? Beber menos e melhor? Sim, sei. E sabe o que é o pior? Em mim, essas coisas têm o exato mesmo efeito daquela mistura incômoda de constrangimento e sedução que Coppola conseguiu emular com seu Bling Ring. Repudio esse hábito, mas existe uma parte terrível de mim, lá no fundo, que também quer um golinho daquele copo de Hunahpu’s. Por mais idiota que saibamos ser essa lógica metafórica do troféu (tornada literal pelas medalhas do Untappd!), se ela ainda tem tanta força social, é porque exerce uma mórbida atração sobre nós, produtos da sociedade de consumo.

“Preciso de uma nova câmera fotográfica para 
conseguir pegar todas as garrafas da farrinha de ontem!”
Fonte: gemconevents.blogspot.com
Repete-se o mantra de que as redes sociais criam espaços para discussão e compartilhamento de informações, e que resultam em consumidores mais bem informados e supostamente mais qualificados. Às vezes eu fico me questionando se isso não é conversinha para boi dormir para justificar certos excessos de consumo. Afinal, se eu sou um consumidor bem informado e sei dar valor ao que compro, então eu sou merecedor de apreciar uma cerveja que me custou R$ 200 da mão de algum atravessador. E ainda chamamos isso de “cultura cervejeira”. O mercado de cerveja artesanal no Brasil se apoia no consumo de produtos muito caros que, por conterem álcool, são capazes de “flexibilizar” nossa capacidade de julgamento financeiro e nos tornam presas fáceis de seduções ridículas. Depois de quatro chopes, aquela garrafa de R$ 200 (que eu jamais compraria se estivesse sóbrio) não parece mais tão proibitiva. Lá vou eu abri-la, para depois me gabar de tê-la bebido. No fim do mês, esse dinheiro vai fazer falta para mim (ou, pior ainda, para as pessoas com quem divido meu orçamento). Mas eu tenho “cultura cervejeira”, “bom gosto” ou o-que-quer-que-seja que me diferencia dos meros mortais que continuam ignorantemente bebendo suas cervejas de milho transgênico – e é isso o que importa. É a autoindulgência do consumo justificando e encobrindo a lógica adolescente, competitiva e ostentatória do “meu pau é maior do que o seu” – subtexto de boa parte do que leio online nos meios cervejeiros. Leia-se: “minha carteira é mais recheada que a sua”. Sério que estamos reduzindo milênios de história cervejeira a isso?

Se meus leitores me dão licença, agora vou buscar um copo de cerveja. E, obviamente, tirar uma foto e fazer check-in no Untappd. Nos vemos por lá!


quinta-feira, 1 de maio de 2014

Vamos beber vinho?

Como assim, vinho? Este não é um blog sobre cervejas? Um blog virilmente másculo (ui!), autenticamente popular, descontraído, alegremente jovem, cheio de brasilidade? Vinho não é aquela bebida cara que se bebe em restaurantes esnobes de toalha branca quando se quer impressionar alguma mulher metida a besta no primeiro encontro?

Fonte: http://www.yelp.com/
Preciso dizer que a resposta a todas as perguntas acima é negativa? A secular guerra dos vinhos contra cervejas não começou ontem e parece bem longe de terminar. Também, pudera: com o teor alcoólico somado dos dois combatentes, qualquer guerra vira playground, e não me espanta que ninguém mais queira ir para casa! Sommeliers e enófilos frequentemente fazem uma discreta careta de desdém para as cervejas e voltam a seus saca-rolhas e seus decanters, imbuídos de uma suposta superioridade cultural e gastronômica do vinho. Já os apreciadores de cerveja costumam repudiar os próprios vinhos junto com o habitual esnobismo da cultura da enofilia – enquanto reproduzem seus mesmos hábitos, diga-se de passagem. Conhecemos os lugares comuns. Cerveja é para homem, vinho é para mulher. Cerveja é alegre, vinho é chique. Cerveja é popular, vinho é elitizado. Cerveja é barata, vinho é caro. Cerveja se bebe no bar, vinho se bebe no restaurante. Cerveja celebra a amizade, vinho celebra o amor. Nunca se deve misturar vinho e cerveja, senão você vai passar mal para sempre! E bla-bla-bla-bla.

Chegamos até mesmo a dividir o globo terrestre em supostas zonas de influência histórica do vinho e da cerveja, completamente alheios ao fato de que pouquíssimas sociedades na história da humanidade consumiram uma das bebidas à exclusão da outra. Os antigos romanos, tidos como grandes representantes históricos do vinho (eles tinham até deus para o fermentado de uva!), também plantavam cevada e faziam muita cerveja, em geral consumida entre as classes mais populares. Os ultracervejeiros alemães da Reinheitsgebot e da pureza cervejeira (“apenas malte, água e lúpulo hão de passar por nossos lábios!”) importavam vinho da França nas cortes – onde, nunca é demais lembrar, falava-se francês. Nem a Grã-Bretanha, insular terra das ales, manteve qualquer tipo de exclusivismo: além de fazer cerveja de primeira, a Inglaterra bebia tanto vinho que chegou a incentivar a criação de um tipo de vinho especialmente para eles: o vinho do Porto. Além, é claro, de importar hectolitros da França, ali do outro lado do canal da Mancha. Exclusivismo cultural e patriotismo cego são aberrações da nossa época – nossos antepassados praticavam a incorporação e mistura.

Kultur gegen Zivilization

E de onde vem a secular querela dos fermentados? Eu não sei ao certo, mas está aí um excelente tema de estudo para os historiadores da cultura se ocuparem. (ops, parece que eu sou um deles!) Sabe aquele momento em que o seu amiguinho da pré-escola roubou o seu apontador em formato de moto, dando início a uma amarga inimizade que se estenderia até o final do Ensino Médio? Qual teria sido essa agressão fatal na guerrinha de Kindergarten que opõe gerações de enófilos e bebedores de cerveja? Minha intuição histórica (uma palavra mais chique para “palpite”) me sugere que a Alemanha da passagem do século XVIII para o XIX, se não foi o campo inicial de batalha, pelo menos foi palco de uma importantíssima escaramuça dessa história.

Ao final do século XVIII – convém lembrá-lo ao leitor que faltou a algumas aulas de História do colégio – a Alemanha não era um país. Antes, era um conjunto de pequenos reinos e coroas independentes e politicamente desunidas. Nas cortes desses pequenos reinos, era comum que a nobreza reivindicasse ascendência francesa, ou pelo menos falasse francês nas reuniões sociais e adotasse o estilo de vida da nobreza francesa setecentista – que, afinal de contas, era o must do século XVIII em termos de luxo e opulência. Hoje em dia, se você realmente quer esbanjar, vai viver como se fosse um rapper norte-americano, rodeado de garotas de microssaia e estacionando sua coleção de carros esportivos na garagem da sua mansão em Los Angeles. Naquela época, vivia-se como o rei Luís XIV. Eram outros tempos.

Foi nesse contexto que a burguesia intelectual alemã – a “classe média” da época – se contrapôs à nobreza. Essa oposição tinha a particularidade de se concentrar nos aspectos culturais do modo de vida da corte. Na França, a burguesia ascendente, detentora de poder econômico, havia elaborado uma crítica à nobreza em termos eminentemente econômicos e políticos, levando às reformas da ilustração e eventualmente à revolução francesa. Mas na Alemanha, uma classe média de limitado poder econômico escolheu a cultura como ponto de honra de sua luta contra a nobreza. Assim, criticaram os valores afrancesados, estrangeiros, superficiais e afetados da Zivilization francesa (o modo de vida da nobreza) e enalteceram as virtudes da Kultur popular alemã, supostamente mais íntegra, verdadeira, autêntica e profunda em seus hábitos e valores. Em poucas décadas, o que era uma querela entre classes sociais nos territórios alemães converteu-se em uma briga entre países e zonas de influência no continente europeu. A França napoleônica com sua esnobe e afetada civilização; enquanto a Alemanha estaria firmemente apegada a sua autêntica e íntegra cultura. França contra Alemanha. Elegância contra eficiência. Discrição contra algazarra. Sofisticação contra autenticidade. E bla-bla-bla-bla.

Nos territórios vermelhos, vinho e línguas latinas 
(pelo menos na porção ocidental). Para os amarelinhos, 
cerveja e línguas com raízes germânicas. Para os azuizinhos, 
o inverno é tão cruel que os fermentados não são páreo.
A fronteira entre vinhos e cervejas é geralmente vista como coincidente com os limites geográficos entre as sociedades de cultura germânica (ao norte/leste europeu) e as de cultura latina (ao sul/oeste europeu). Imaginamos romanos bebendo vinho em finas taças de estanho, e bárbaros germânicos bebendo cerveja em pesados canecos de pedra, não é mesmo? Na zona de fronteira entre os dois mundos culturais, França e Alemanha se entrechocam e trocam insultos há pelo menos 150 anos. Conheço alemães que, até hoje, consideram que a Alsácia ainda é um território alemão usurpado pela França. A batalha dos fermentados – vinho de um lado, cerveja do outro – é a expressão cultural e gastronômica dessa querela à qual a burguesia intelectual alemã deu um vigoroso pontapé nos tempos de Goethe e Schiller.

Sim, existem fatores climáticos objetivos. Existe uma determinada latitude ao norte da qual o cultivo da uva é muito difícil. Essa fronteira se situa mais ou menos na região francesa de Champagne, já quase na fronteira nordeste com a Bélgica e a Alemanha. Alguns passos para o sul, e as uvas atingem perfeita maturação. Alguns passos para o norte, e são os pés de lúpulo que dão majestosas flores amargas, enquanto as colheitas de grãos são abundantes. Mas isso não basta, por si só, para justificar toda essa briga. Não associamos o vinho e a cerveja apenas e tão-somente a territórios: associamo-los a culturas e valores. O clima não basta para explicar isso, embora possa dar um empurrãozinho. O resto fica por conta do trabalho da mente humana de investir o mundo de significado. Mas claro que tudo isso não precisa ser assim. Convencionou-se pensar dessa forma, associar a vinho a isso ou a aquilo, e a cerveja a tal e qual. Que tal repensar e formar a sua própria opinião?

Vamos beber vinho?

Esta postagem é um apelo a todos os meus colegas cervejeiros: deixemos os preconceitos de lado e aprendamos a nos deliciar com nossos primos próximos, os fermentados de uvas. A degustação de vinhos não só é recompensadora por si mesma, como é um interessante exercício sensorial para o apreciador de cervejas: as sensações são próximas o bastante daquelas do mundo cervejeiro para nos sentirmos mais ou menos em casa, como hóspedes bem-vindos, mas também são diferentes o bastante para que tenhamos de pisar fora da nossa zona de conforto. Conheço bebedores de cerveja que chegaram a um ponto em seu aprendizado que praticamente fossilizaram seus sentidos. Se vão beber uma stout, não precisam nem levar a taça ao nariz antes de começar a enaltecer os aromas de café. A degustação se torna um automatismo monótono. Confrontar-nos com vinhos e tentar decifrar seus segredos, ainda que de forma tateante, nos faz voltar a olhar com frescor para o hábito de degustar, nos coloca de volta em um terreno desafiador. Quando voltamos ao copo de cerveja, depois, parece que nossos sentidos foram renovados. Tenho certeza de que o mesmo acontece com enófilos calejados quando se dedicam a cervejas.

É engraçado que muitos apreciadores de cerveja “exigem” dos enófilos que deixem de lado o preconceito contra a “loira gelada” e experimentem a diversidade cervejeira. Reivindicam a seu favor o argumento, verdadeiro, de que a complexidade sensorial das cervejas é tão ampla quanto a dos vinhos. Muito justo. Mas são poucos os cervejeiros que estão realmente dispostos a fazer o contrário e manter uma postura aberta em relação ao vinho. Tem gente que brada conhecimento profundo sobre todos os subestilos de ales mas ainda acha que vinho tinto tem sempre o mesmo gosto de uva e frutas vermelhas. Abaixo os exclusivismos: os fermentados são uma grande família com a qual vale a pena manter sempre uma postura fraterna.

Cervejas e vinhos têm algumas características diferentes. Assim como muitos apreciadores de vinhos se assustam com o intenso amargor de alguns estilos cervejeiros, é comum que alguns apreciadores de cerveja também se sintam repudiados pela intensidade da acidez e pelos mordazes taninos de alguns vinhos especialmente inclementes. O equilíbrio gustativo da maioria das cervejas está no balanço entre doçura do malte e amargor do lúpulo. No caso dos vinhos, esse equilíbrio se observa entre a doçura residual e a acidez das uvas. Entender isso é um importante primeiro passo para não fazer careta. Assim como estilos muito amargos são uma barreira para quem está começando a beber cerveja, vinhos mais secos, tânicos e ácidos (sobretudo os do Velho Mundo) costumam desafiar quem está começando a beber vinho.

Não se prenda ao preconceito bobo de que vinho é caro e esnobe. Desfaçamos esses dois mitos. Quanto ao primeiro, cervejas artesanais custam tanto quanto bons vinhos, pelo menos aqui no Brasil. Aliás, eu tenho bebido bastante vinho depois que descobri que, para quem não tem tanta litragem nos territórios de Baco, fica mais barato beber novos vinhos do que acompanhar as novidades do mercado cervejeiro brasileiro (que está ficando assombrosamente caro). Você pode achar que uma garrafa de um bom vinho, ali na faixa dos R$ 50, é bem mais cara do que uma cerveja média. Mas não se esqueça de que vinhos vêm (usualmente) em garrafas de 750ml e que têm teor alcoólico entre 11% e 15%. Isso significa que uma garrafa de vinho provavelmente vai te saciar tanto quanto umas quatro ou cinco long necks de uma cerveja de médio teor alcoólico, ali na faixa dos 6-7% ABV. É perfeitamente possível dividir uma garrafa de vinho em duas pessoas sem miséria. Por isso, o preço unitário menor da cerveja acaba sendo ilusório no contexto geral de consumo.

Se aquele seu tio bebedor de vinho é um chato 
de galochas, parabéns, a culpa é só dele.
Fonte: barrelroomsf.blogspot.com
Quanto à ideia de que vinho é esnobe, livre-se dela. Esnobes são as pessoas, e não as bebidas. Seu vinho só vai ser esnobe se você for esnobe com ele. Outra ideia boba da qual vale a pena se libertar é o dogma de que não se deve misturar vinho e cerveja, porque você supostamente passaria mal. O que faz passar mal é a quantidade de álcool e, quando você acumula bebidas, tende a ingerir mais álcool. Fora isso, não tem interferência nenhuma. É perfeitamente possível começar sua noite numa cervejinha e depois partir para um vinho sem enfrentar dor de cabeça no dia seguinte. Jantares harmonizados com cervejas e vinhos oferecem ótimas oportunidades de degustar ambos e vão te dar uma enorme flexibilidade e uma gama maior de opções para harmonizar. Seu bife de chorizo implora pelos taninos de um vinho tinto bem estruturado, e a mousse de chocolate vai ficar matadora com uma imperial stout ou uma kriek lambic.

Uma sugestão de compra

Para incentivar quem acompanha este blog a mergulhar no maravilhoso mundo dos vinhos, escolhi um rótulo a título de sugestão. Sou apreciador de vinhos, mas infelizmente meus conhecimentos sobre fermentados de uva são bem mais limitados do que sobre os de cevada. Mas isso não me impede de e compartilhar o pouco que sei. Estou ciente de que meus leitores, em sua maioria, não são entusiastas de vinho e não estariam dispostos a gastar muito dinheiro ou procurar lojas especializadas só pela curiosidade de beber um vinho. Por isso optei por um rótulo clássico, de ótimo custo-benefício, que se encontra com muita facilidade em supermercados e que não assusta o paladar. Aos iniciantes no mundo dos vinhos, recomenda-se quase sempre que comecem pelos vinhos do Mercosul (Chile e Argentina), mais baratos, de boa qualidade e normalmente feitos em um estilo que agrada com facilidade.

É de uma das vinícolas mais emblemáticas e famosas do Chile que vem minha sugestão de hoje. Trata-se de um vinho que você vai encontrar ali na faixa dos R$ 30-35 em qualquer supermercado: o Casillero del Diablo Cabernet Sauvignon 2011, da gigante Concha y Toro, famosa pela consistência e pelo custo-benefício de seus rótulos. A linha Casillero del Diablo é uma linha intermediária da vinícola, com vinhos varietais (feitos com apenas uma variedade de uva) limpos e de boa tipicidade, ligeiramente mais elaborados, mas ainda não tão caros quanto seus vinhos de mais alto pedigree. Estou indicando algo como a Eisenbahn dos vinhos sul-americanos. A uva Cabernet Sauvignon é um clássico imperdível, que qualquer iniciante precisa conhecer. Tão amada quanto odiada, ela proporciona vinhos de boa intensidade e estrutura, com aromas de frutas vermelhas e cassis, às vezes um toque vegetal/verde (pode lembrar pimentão verde), com coloração intensa e uma presença vigorosa de taninos (aquela sensação de amarrar a boca). Junto com a merlot e a cabernet franc, ela entra no corte de um dos mais famosos tipos de vinho do mundo, o corte bordalês, produzido na França, na região de Bordeaux.

Fonte: www.enoleigos.com.br
Este Casillero del Diablo Cabernet Sauvignon é produzido no Chile na região do Valle Central, e é fruto de um blend em que 70% do vinho maturam durante 8 meses em barricas de carvalho americano, ganhando uma textura mais amigável e aromas ligeiramente tostados, mas sem encobrir as frutas. É um vinho feito ao estilo do Novo Mundo, com frutado franco e aberto. É um dos rótulos que eu gosto de ter na adega, um curinga. Na safra 2011 (a última que eu bebi), apresentou uma coloração vermelha bem escura, quase arroxeada. O aroma mostrou-se assertivo e limpo, sem presença alcoólica ou química excessiva. Potentemente frutado, com bastante cassis, amoras maduras e alguma framboesa, ao lado de resina amadeirada, um docinho de caramelo, alguma canela sutil e um gostoso toque tostado e achocolatado. Minha memória das safras anteriores era de este rótulo ser ainda mais tostado e abaunilhado, mas, na safra 2011, sobressaíram-se as frutas maduras. A moda dos vinhos pesadamente amadeirados está passando. Antes que me perguntem, sim, a safra importa muito no caso dos vinhos, por causa das diferenças na maturação das uvas a cada ano. Na boca, ele é razoavelmente seco, com taninos presentes (sensação de amarrar a boca) mas acidez contida, o que o torna mais fácil de beber e amigável, pronto para agradar aos mais diversos paladares. Corpo intenso, adstringente, levemente cremoso. Vinho que consegue ser agradável e marcante ao mesmo tempo, sem assustar e sem custar caro.

É possível que muitos dos meus leitores já tenham encarado, alguma vez na vida, uma taça deste Casillero. Se não o fizeram, fica a indicação: na próxima compra no supermercado, qual tal passar na seção de vinhos (fica ali do ladinho das cervejas!) e levar uma das garrafas com o simpático diabinho no rótulo? Abra-o em um jantar sem compromisso, sem esnobismo (até porque é um vinho muito mainstream para você se gabar) e aprecie-o em boa companhia. Para garantir que ele vá desprender bem os aromas, vale a pena arejá-lo: despejá-lo em um decanter ou jarra de suco com meia hora de antecedência seria o ideal, mas se você desarrolhar a garrafa antes e deixá-la respirando (ou deixar o vinho descansar na taça antes de beber), já vai sentir uma agradável diferença. Ele vai bem com carnes grelhadas, e eu gosto bastante dele com massas com molho vermelho um pouco mais “encorpado” (por exemplo, com bacon ou linguiça). Muitas vezes, harmonizar um vinho de paladar mais desafiador vai torná-lo mais amigável. Se você já experimentou o Casillero mas nunca deu bola para essa história de vinho, então fica o convite para comprar mais uma garrafinha e beber com a mente aberta.


Ein prosit, salut!