sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Amburana em três versões

É fato: as cervejas com maturação em madeira vieram para ficar. Se, há alguns anos, rótulos envelhecidos em barris de carvalho eram raros e difíceis de encontrar, hoje a oferta desse tipo de cerveja cresceu muito no mercado brasileiro. Mais importante que isso: antes eram apenas algumas poucas importadas que tinham estágio em madeira, enquanto hoje as principais microcervejarias brasileiras também têm feito experimentos com barris. Os primeiros resultados desse “surto madeireiro” brazuca já estão nas prateleiras, e não há dúvida de que mais outros chegarão.

O extraordinário barrel room da cervejaria 
Goose Island, em Chicago. Um dia a gente chega lá.
Fonte: www.esquire.com
A maturação em madeira é uma técnica cervejeira muito antiga, já que, antes do surgimento de tanques de maturação feitos em aço, os barris e tonéis de madeira eram o recipiente mais comum para fermentação e maturação das cervejas. A maioria das cervejarias migrou para o aço ao longo do século XIX, de modo que o uso da madeira foi se tornando mais e mais raro. Isso não foi fortuito. A madeira apresenta algumas dificuldades para o cervejeiro: em comparação com o inox, ela é porosa e difícil de higienizar completamente, ocasionando o surgimento de infecções e microorganismos indesejáveis para a maior parte dos estilos cervejeiros. Além disso, a troca de compostos químicos entre a madeira e o líquido ocasiona alterações no sabor, no aroma e na textura da cerveja, gerando diferenças difíceis de serem padronizadas. A idade da madeira, o tamanho dos barris, o tratamento e a tosta empregados, tudo isso causa alterações no produto final, de modo que é possível dizer que cada barril vai dar origem a uma cerveja diferente. A substituição da madeira pelo inox, portanto, fez parte do conjunto de transformações da indústria cervejeira no século XIX, que garantiram maior padronização dos produtos.

Ainda assim, a madeira seguiu sendo usada em alguns estilos tradicionais, como algumas old ales inglesas, bem como as lambics e as Flanders red ales da Bélgica. Mais recentemente, a maturação em madeira foi resgatada pela escola norteamericana, que voltou a empregar barris para maturar uma enorme diversidade de estilos. A princípio, a madeira passou a ser usada para a produção de estilos alcoólicos e robustos, como imperial stouts. Com o tempo, porém, começaram a ser usados em outros estilos, e hoje há até IPAs maturadas em madeira. O guia de estilos da Brewers Association, antenado às principais tendências do mercado cervejeiro, inclui nada menos que 5 categorias especialmente reservadas para cervejas envelhecidas em madeira (sem contar os estilos em que a madeira já era tradicionalmente empregada), atentando para diferenças em coloração, teor alcoólico e acidez da cerveja-base.

Madeira, madeiras

Um dos experimentos mais interessantes feitos pelas microcervejarias é o emprego de diferentes tipos de barris para maturar a mesma cerveja-base. As diferenças no produto final são surpreendentes. O estratagema mais frequentemente empregado pelas cervejarias para variar a madeira é maturar suas cervejas em barris de segundo uso que foram usados antes para maturar outros tipos de bebidas. Assim, pode-se oferecer uma mesma imperial stout maturada em barris de cognac, vinho tinto, vinho do Porto, uísque, Bourbon, e por aí vamos – como faz a belga Struise com sua prestigiada linha Black Damnation. O uso ubíquo de barris de segundo uso levou até ao surgimento de um conceito equivocado de que a bebida anteriormente usada nos barris afetaria o produto final mais do que a madeira em si – assim, cervejas maturadas em barris de uísque são descritas como tendo “sabor de uísque”, por exemplo, o que é uma tremenda simplificação dos efeitos da madeira sobre a cerveja. A Mikkeller foi ainda mais longe para produzir sua série Forêt: maturou a mesma cerveja-base (uma “barley wine” de 19,3% ABV) em barris feitos com carvalho francês de três diferentes origens geográficas, variando o grau de tosta dos barris.

A majestosa amburana, cuja madeira é amplamente 
empregada na indústria da cachaça.
Fonte: biosementes.com.br
Contudo, o que permanece quase sempre constante nas cervejas maturadas em madeira mundo afora é que, com pouquíssimas exceções, os barris empregados são sempre de carvalho – seja francês, seja americano. Isso reflete o fato de que o carvalho é a madeira mais amplamente empregada na produção de bebidas alcoólicas ao redor do mundo, devido à sua durabilidade, impermeabilidade e bom impacto sensorial nas bebidas. Contudo, nesse quesito em particular, o Brasil oferece uma interessante exceção: nossa brasileiríssima cachaça é uma das poucas bebidas que são corriqueiramente maturadas em barris e tonéis de diferentes tipos de madeira. Há cachaças envelhecidas em barris de carvalho, ipê, amendoim, amburana, bálsamo, jequitibá, e por aí vamos. E cada tipo de madeira interage de formas muito diferentes com a bebida dentro dos barris, gerando resultados completamente distintos.

Parece-me evidente que, se a indústria cervejeira brasileira busca um diferencial na produção de estilos maturados em madeira, deve se valer da experiência das cachaçarias brasileiras com o uso de diferentes tipos de madeira. Por enquanto, o carvalho ainda predomina nas salas de maturação das microcervejarias nacionais, mas há experimentos com outras madeiras que podem abrir todo um imenso horizonte de variações de cores, sabores, texturas e aromas. Em especial, algumas cervejarias têm investido no emprego de uma madeira tipicamente sul-americana chamada amburana (conhecida ainda como umburana, imburana-de-cheiro ou cumaru), extraída de uma árvore (a Amburana cearensis) que, infelizmente, encontra-se ameaçada de extinção.

A amburana é uma velha conhecida dos apreciadores de cachaça – e, devo dizer, uma das minhas madeiras preferidas para maturação de uma boa “amarelinha”. Uma das minhas cachaças preferidas, a mineira Claudionor, da cidade de Januária, é maturada em amburana por 1 ano antes de ser engarrafada. A amburana tem um aroma marcante, adocicado e sedutor, que me lembra muito cocada preta, baunilha, móveis da fazenda (a amburana também é usada na fabricação de mobiliário, em parte devido ao seu odor agradável) e um toque de especiarias doces, como a canela.

Três cervejas maturadas em amburana

Fonte:
www.ocontadordecervejas.com.br
Temos hoje, no mercado cervejeiro, três rótulos com maturação em barris de amburana, todos com perfis muito diferentes. O pioneiro foi lançado em 2011 e faz parte de uma série especial, de inspiração norteamericana, produzida pela cervejaria Bäcker, intitulada 3 Lobos. A 3 Lobos Bravo é uma imperial porter que matura em barris de umburana, com receita do mestre Paulo Schiaveto. É provavelmente a cerveja com estágio em barris mais barata do mercado artesanal, com um excelente custo-benefício, podendo ser encontrada a partir de R$ 12 pela long neck. A mais escura das três, apresenta uma coloração marrom bem escura, quase preta. Seu aroma exala indulgência e doçura em doses cavalares: muito chocolate ao leite, açúcar mascavo e caramelo dos maltes interagindo com toques acentuados da umburana, remetendo a cocada preta, madeira doce e mobiliário colonial. Impossível não lembrar de cachaça! Toques frutados (banana e ameixas) ficam em segundo plano. Na boca, uma avalanche de doçura do começo ao fim, com amargor secundário mas correto (os respeitáveis 42 IBUs só equilibram a doçura do malte) e final longo, persistente, com retrogosto de coco, chocolate e madeira. O corpo é intenso e a textura é bem licorosa, açucarada. Os 9% de álcool são perceptíveis, mas não chegam a incomodar decisivamente. Os primeiros lotes dessa cerveja ficaram prejudicados por um toque muito intenso de acetaldeído (que tem aroma químico e acentua desagradavelmente o álcool), o que fez com que a cerveja deixasse uma má impressão nos degustadores, mas tenho a impressão de que a receita foi mais bem ajustada depois, o que elevou a qualidade da cerveja significativamente. A 3 Lobos Bravo tem boas condições para envelhecimento, de modo que é uma ótima opção para encher a adega!

Fonte: acervo pessoal
A segunda cerveja maturada em umburana a ser lançada no mercado brasileiro foi a Way Amburana Lager. É uma das poucas opções de lagers envelhecidas em madeira, sendo que a receita-base se inspira levemente no estilo doppelbock, mas é um pouco mais seca e delicada. Na verdade, a receita foi toda pensada para interagir com a madeira, e a cervejaria também desenvolveu uma tosta específica dos barris para alcançar o resultado almejado. A Way Amburana Lager tem uma proposta bem diferente da 3 Lobos: trata-se de uma cerveja mais leve, com alta drinkability considerando seu teor alcoólico, de sabor e sensação amena e agradável na boca, mas sem abdicar de um toque decididamente amadeirado no sabor. Sua coloração lembra o mogno, com um bonito marrom-avermelhado e uma ótima espuma clara, muito persistente, deixando rendas na lateral do copo. O aroma é o menos expressivo das três cervejas analisadas aqui, predominando no nariz um perfume floral um pouco chapado dos lúpulos e um toque do malte caramelado, lembrando ainda melaço de cana. O que lhe falta de profundidade no nariz, porém, é compensado pela profusão de sabores na boca: o caramelo e o melaço do malte interagem lindamente com a madeira criando a impressão de toffee e até um toque de cappuccino. A amburana está lá com sabores de cocada preta, móveis coloniais, baunilha doce e um toquezinho sutil de defumação. Além disso, sentem-se frutas escuras e vermelhas, com destaque para cerejas e um agradável sabor de Amaretto que persiste na boca. Predomina a doçura do malte, mas o amargor secundário se faz perceber de forma firme e equilibrada no final. O corpo é leve para mediano, sutil para o estilo, com carbonatação suave e textura macia e agradavelmente acetinada. Os 8.4% ABV estão diabolicamente ocultados, tornando-a perigosamente fácil de beber. Falta-lhe a intensidade avassaladora que aprendemos a esperar de cervejas maturadas em madeira, mas ela compensa mostrando-se fácil de beber e agradável. Uma cerveja mais suave que a média do estilo, mas com um sabor agradavelmente amadeirado.

Fonte: tripstapix.com
A mais recente cerveja com maturação em amburana que chegou ao mercado faz parte da recente e já muito prestigiada linha Wood-Aged Series, da microcervejaria curitibana Bodebrown. A proposta da linha é apresentar diferentes cervejas com perfil adequado para longos períodos de guarda, todas maturadas em diferentes tipos de madeira. Depois da estreia da série com uma excelente strong ale maturada em carvalho, o segundo rótulo foi a Bodebrown Wee Heavy Wood Aged Series 2014. Trata-se de uma versão da premiada strong Scotch ale da cervejaria, maturada durante 6 meses em dornas de amburana de 750 litros, anteriormente utilizadas para a produção de cachaça pela cachaçaria gaúcha Weber Haus. Cerveja séria, seríssima. De coloração marrom-avermelhada, mostrou pouca espuma, o que é comum em cervejas maturadas em madeira. Seu aroma é, de longe, o mais complexo das três cervejas analisadas: uma tonelada de toffee, doce de leite e cocada-preta interagem em primeiro plano. A umburana imprime notas de baunilha, especiarias doces (canela e cravo) e uma sensação mineral, lembrando cal e gerânios, que se encontra em algumas cervejas maturadas em madeira, e que não é totalmente agradável – provavelmente seu maior defeito. Bananas passas e tâmaras secas dão-lhe um interessante toque frutado. Um quê de defumação, lembrando copa e embutidos defumados, reflete a pequena porcentagem de maltes defumados da receita-base e interage bem com a doçura do conjunto, sem ofuscá-la. Há uma certa untuosidade de DMS ao fundo, que não chega a comprometer a cerveja decisivamente. Na boca, mais uma vez a doçura é intensa e predominante, com amargor suficiente apenas para equilibrá-la, sem roubar a cena, e o retrogosto é muito persistente, macio e vívido. O corpo é intenso e licoroso sem exageros – em algum lugar entre a leveza da Way e o peso da 3 Lobos. Para mim, é a mais interessante e complexa das três cervejas avaliadas, ainda que tenha apresentado algumas arestas a aparar no aroma. A cerveja foi vendida apenas no site da cervejaria, em sistema de pré-venda – portanto, quando sair a safra 2015, não bobeie e garanta as suas garrafas!

Se compararmos as três cervejas pelas suas principais características, chegaremos ao seguinte resultado:


A 3 Lobos Bravo se destaca pela torrefação doce e pela intensidade. A Way Amburana Lager, por sua vez, mostra um perfil mais suave e elegante, fácil de beber. A Bodebrown Wee Heavy Wood Aged Series 2014 se localiza numa espécie de intermediário entre as duas anteriores, mas ganha proeminência especialmente pela complexidade aromática. Três excelentes cervejas maturadas em madeira, cada uma com suas características. Mais importantes que as diferenças, porém, é a marcante semelhança entre três cervejas de propostas e estilos-base tão distintos entre si. Essa unidade prontamente perceptível entre as três, que as diferencia de quaisquer outras wood-aged beers que eu já provei, vem evidentemente do perfume doce e inebriante da amburana. Prova de que o uso criativo da nossa biodiversidade na produção cervejeira não precisa se restringir à profusão, já um tanto banal, de frutos tropicais em cervejas brasileiras. Se buscarmos nossa inspiração na secular indústria colonial da cachaça e na sua diversidade de madeiras, encontraremos um sólido manancial para experimentação de técnicas produtivas que pode conferir às microcervejarias brasileiras um diferencial decisivo na produção de cervejas maturadas em madeira.