quarta-feira, 15 de abril de 2015

Espumantes brazucas - Parte III: Borbulhas nacionais

Começamos essa conversa sobre espumantes prometendo falar sobre os vinhos espumantes produzidos no Brasil. Depois de vermos algumas informações sobre a história, o método de produção e o perfil sensorial dos vinhos espumantes, chegou a hora de fincarmos os pés no solo brasileiro. A proposta pode parecer um disparate, para quem não está muito familiarizado com a produção vinícola nacional. Afinal de contas, a gente cresceu ouvindo que no Brasil só se fazia vinho de baixa qualidade, e que bons mesmos eram os vinhos dos nossos vizinhos hermanos ou dos países europeus. Não é isso?

Não, não é isso. A produção de vinhos finos no Brasil tem melhorado dramaticamente de qualidade nas últimas décadas, o que reflete os investimentos no setor e a pesquisa dos melhores terroirs e das variedades de uvas mais adequadas aos nossos solos e climas. Hoje temos regiões que produzem bons vinhos, alguns dos quais têm obtido projeção internacional. E se há uma coisa na qual os especialistas em geral concordam, é que a produção de espumantes de alta qualidade é uma das maiores (senão a maior) vocação do terroir brasileiro. Portanto, se você tinha preconceito contra os vinhos nacionais, reveja seus conceitos, passe no empório mais próximo, compre uma garrafa de um espumante nacional e abra para seguir acompanhando esta matéria! Um brinde!

A Serra Gaúcha

Imigrantes italianos com suas vinhas em Bento Gonçalves.
Fonte: http://www.bentogoncalves.rs.gov.br/
O estado que mais se destaca na produção de vinhos no Brasil é hoje o Rio Grande do Sul. Ele se localiza em uma região bastante próxima da faixa de latitudes consideradas ideais para a viticultura (entre os paralelos 30º e 50º) e tem condições climáticas adequadas para o cultivo de uvas. Ademais, é uma região de povoamento marcado pela chegada de imigrantes alemães e principalmente italianos, que trouxeram consigo o hábito de produzir e beber o vinho. Pronto: estavam dadas as condições para que a vinicultura se desenvolvesse na região. Os alemães introduziram as primeiras mudas da variedade Isabel na região – videira forte e vigorosa, mas que resulta em vinhos de qualidade inferior –, e os italianos expandiram a produção nas duas últimas décadas do século XIX. Com o tempo, no século XX, a região foi migrando para variedades aptas a produzir vinhos de melhor qualidade.

As principais regiões produtoras de vinho do Rio Grande 
do Sul. Os espumantes se concentram na Serra Gaúcha.
Fonte: http://www.academiadovinho.com.br/
O Rio Grande do Sul apresenta quatro sub-regiões produtoras de vinho: a Campanha Gaúcha, a Serra do Sudeste, a Serra Gaúcha e os Campos de Cima da Serra. A mais antiga – e mais adequada à produção de espumante – é a Serra Gaúcha. Por muitos anos, os vinicultores se debateram contra as intempéries da serra tentando produzir vinhos de variedades tintas. Contudo, o clima da região tem algumas particularidades que dificultam a tarefa: trata-se de uma região chuvosa e úmida. Para piorar, as chuvas ocorrem tradicionalmente no verão, no período que antecede imediatamente a colheita das uvas (que ocorre entre janeiro e março). Isso faz com que não ocorra a plena maturação e a concentração de açúcares nas uvas, resultando em vinhos de alta acidez. Clima inadequado para a plena maturação das uvas, vinhos ácidos em excesso. Você, leitor que está acompanhando esta matéria desde o começo, lembrou de alguma coisa? Pois é: o clima da Serra Gaúcha tem várias semelhanças com o da região de Champagne. Semelhanças no clima, semelhanças nos vinhos.

Não tardou para que os produtores radicados na Serra Gaúcha percebessem o enorme potencial da região para a produção de vinhos espumantes de alta qualidade. A renomada casa francesa Möet & Chandon, produtora da região de Champagne, escolheu a região para estabelecer uma subsidiária (a marca possui quatro subsidiárias ao redor do mundo: na Austrália, nos EUA, na Argentina e no Brasil), fixando-se na região de Garibaldi em 1973. Um dos técnicos contratados pela Chandon Brasil foi o chileno Mario Geisse, que em 1979 deixou a gigante para fundar sua própria vinícola, pesquisando minuciosamente o que ele acreditou que seria a localidade ideal para a produção de espumantes de alto padrão. Geisse se estabeleceu em Bento Gonçalves, município vizinho de Garibaldi. Daí em diante, os espumantes da região só ganharam cada vez maior notoriedade. O vale localizado entre os dois municípios passou a ser conhecido como Vale dos Vinhedos. Em 2001, depois dos esforços conjuntos dos produtores da região e de muita pesquisa, o Vale dos Vinhedos conseguiu obter a Indicação de Procedência Vale dos Vinhedos, primeiro passo para que a região tenha, futuramente, uma DOC (denominação de origem controlada). Para o público cervejeiro, uma denominação de origem controlada pode parecer uma besteira, mas não é (e faz todo sentido no mundo dos vinhos): ela implica o estabelecimento de um perfil de produtos mais adequados ao clima da região e um órgão regulador capaz de monitorar o padrão de qualidade dos vinhos elaborados naquele terroir. Uma DOC Vale dos Vinhedos, hoje já em implantação, certamente vai contribuir para impulsionar a fama dos vinhos nacionais no país e no exterior.

Três espumantes do Vale dos Vinhedos

É dessa pequena região localizada entre os municípios de Bento Gonçalves e Garibaldi que vêm os três espumantes sobre os quais quero falar aqui. Trata-se de produtos renomados, consistentemente bem avaliados pelos especialistas: qualquer um dos três, portanto, configura não apenas uma boa opção para conhecer o Vale dos Vinhedos, como também uma ótima escolha no vasto universo dos vinhos espumante para quem pretende conhecer um pouco desse tipo de vinho. São espumantes de um patamar de preços intermediário, entre os R$ 60 e os R$ 80 – não estão nem na faixa inferior de preços, e nem são os produtos mais caros e exclusivos de seus respectivos produtores. Além disso, são substancialmente mais baratos que espumantes importados do mesmo patamar de qualidade. Acredito que se situem em uma faixa de preços relativamente confortável para o público cervejeiro, acostumado eventualmente a gastar até R$ 50 numa long neck em uma ocasião especial.

O primeiro espumante é, sem dúvida, o mais conhecido do público. Carro-chefe da Chandon Brasil (subsidiária da famosa produtora da Champagnes Möet & Chandon), o Chandon Réserve Brut é elaborado a partir da assemblage de vinhos de base das variedades Chardonnay, Pinot Noir e Riesling Itálico. As duas primeiras são castas de uvas tradicionais da região de Champagne; a terceira, uma variedade que tem se adaptado bem ao clima do RS. O Chandon Brut é elaborado pelo método Charmat – uma inusitada escolha para uma empresa de Champagne, berço do método champenoise ou tradicional. A vinícola tem como filosofia privilegiar a qualidade dos vinhos de base, e não enfocar a refermentação e as características de autólise, de modo que o método Charmat lhe permite obter a melhor expressão das uvas, e não necessariamente do processo.

O Chandon Réserve Brut apresenta coloração dourada clara, talvez a mais intensa dos três vinhos analisados aqui, perlage fino e espuma de pouca persistência. O aroma é direto, limpo e convidativo, não reservando muitas surpresas. Em primeiro plano encontra-se o frescor das frutas cítricas, como limões e abacaxis (estes, típicos da Chardonnay), tornando-o um espumante bastante frutado e alegre, o que condiz com o método Charmat. Ao fundo, as leveduras imprimem um discreto aroma de frutos secos, com destaque para nozes. Na boca é possivelmente o mais amigável dos três, apresentando uma doçura na entrada (sem exageros), desenvolvendo depois uma acidez precisa, comportada, e conduzindo a um final medianamente seco. O corpo é mediano, com textura levemente cremosa, muito agradável. Trata-se de um espumante na medida para agradar a todos: limpo, fresco, amigável, refrescante e muito agradável de se beber. Tem potencial para agradar um público mais amplo, principalmente por ser menos seco que os demais. Contudo, para mim, ele tem pouco destaque aromático e pouca personalidade. É tudo o que se espera de um espumante correto, mas pouco além disso. Tem excelente distribuição e pode ser encontrado facilmente na faixa dos R$ 60-70 pela garrafa grande, ou na faixa dos R$ 20-25 pela garrafinha de 187 ml, para quem quiser apenas provar ou beber uma solitária tacinha.

O segundo espumante do qual falaremos aqui vem de um dos mais bem cotados produtores de espumantes do Brasil: a vinícola Geisse. A vinícola foi formada por Mario Geisse depois que ele se desligou da Chandon do Brasil, e reflete sua busca pelo terroir perfeito para a produção de espumantes no Vale dos Vinhedos. Todos os espumantes do produtor são feitos pelo método tradicional, com tempo mínimo de maturação em garrafa de 24 meses, e a vinícola planta apenas uvas das variedades Chardonnay e Pinot Noir. São produtos feitos com esmero, dedicação e cuidado, visando à máxima expressão do terroir do Vale dos Vinhedos. Os críticos internacionais já indicaram que os vinhos da vinícola Geisse estão em seu radar e provavelmente seriam os primeiros a serem pontuados no Brasil.

Fonte: http://www.vinicolageisse.com.br/
O Cave Geisse Brut, elaborado com 70% de Chardonnay e 30% de Pinot Noir e com pelo menos 24 meses de maturação, é o carro-chefe da vinícola. Na safra de 2011, apresentou coloração muito clara (a mais clara dos três), amarela com uma nuance esverdeada-acinzentada, com abundância de bolhas bem pequenas e creme persistente. O aroma é elegante e equilibrado, desenvolvendo-se em camadas. Rosas, panificação, massa podre e nozes pecã denunciam o longo tempo de maturação e encontram-se bem equilibrados pelo frescor frutado do limão, um toque de laranja, um acento de mofo e um final lembrando maçã, que poderia ser mais delicado. O conjunto lembra uma torta de limão. Não é inteiramente seco, mas a doçura é muito breve na boca (são 8 g de açúcar por litro, quase no limite inferior do estilo Brut), seguida por uma elegante acidez predominante e finalizando com um toque de amargor. O corpo é leve e a textura é provavelmente seu ponto mais forte, “desmanchando” em bolhas na boca. Espumante vivaz, bem-resolvido e agradável sem excessos, muito equilibrado, possivelmente o mais austero dos três. É o mais difícil de ser encontrado dentre os três aqui apresentados (procure online ou em empórios especializados), situando-se na faixa dos R$ 70.

O último é um dos rótulos mais caprichados de uma das maiores vinícolas do Vale dos Vinhedos: a Casa Valduga, situada em Bento Gonçalves. A Casa Valduga tem desenvolvido uma linha de espumantes de alta qualidade, feitos pelo método tradicional, com preços bastante competitivos e convidativos, que vai desde os mais simples, com 12 meses de maturação, até o exclusivo Maria Valduga. O grupo Valduga ainda é detentor da marca Domno do Brasil, localizada em Garibaldi, que apresenta uma linha feita pelo método Charmat, mais barata mas ainda com boa qualidade, intitulada .Nero.

Fonte: http://www.vinhoparatodos.com/
O Casa Valduga 130 Brut é talvez o maior ícone da vinícola. Feito com as uvas Chardonnay e Pinot Noir, ele passa por um período espantosamente longo de maturação sobre leveduras, que pode se estender entre 48 e 60 meses (4 a 5 anos!), ampliando as características associadas à autólise e ao método tradicional. Sua coloração é amarela-clara, com tons esverdeados, formação de lágrimas (o que nem sempre é peceptível em espumantes, mas ocorre neste com teor alcoólico elevado de 13% ABV) e um perlage bem fino, ainda que disperso, encimado por creme persistente. O aroma é pujante e intenso, testemunhando toda a profundidade do método tradicional: em primeiro plano, uma explosão de pão fresco, amêndoas e nozes tostadas, panettone e brioches, que se sente ao abrir a garrafa, antes mesmo de servir. Seguem-se abacaxis frescos (marca da uva Chardonnay), muitas raspas de limão, sidra em compota e frutas cristalizadas. Ao fundo, algum cacau torrado, flores brancas e feno. Complexidade vertiginosa, dá vontade de ficar cheirando sem parar. Muito correto e equilibrado na boca, com entrada levemente adocicada, acidez moderada e correta (poderia até ser mais afiada para mim) e final sutilmente amargo com retrogosto cítrico. Sensação muito leve e cremosa na boca, desce muito fácil, como se você estivesse engolindo nuvens. O corpo é mediano para intenso, com textura envolvente e cremosa. Excepcional espumante nacional, com incrível complexidade aromática e sensação ao mesmo tempo delicada e envolvente. Talvez seja meu preferido entre os três, sobretudo pelo aroma. Pode ser encontrado na faixa dos R$ 80, sendo ligeiramente mais caro que os dois anteriores.

Três espumante de alto nível, que vão te proporcionar a oportunidade de conhecer o estilo e vão te convencer de que o Brasil tem, sim, potencial para a produção de vinhos de alta qualidade. É tudo uma questão de pesquisar a potencialidade de cada um dos nossos terroirs para cada variedade de uva, para cada estilo de vinificação. Agora, não tem desculpa para não brindar sua próxima data comemorativa ou sua próxima conquista prestigiando a nossa indústria vinicultora.

Na próxima – e última – parte desta matéria sobre espumantes nacionais, abordarei um pouco sobre os espumantes rosés, trazendo a degustação de três rótulos nacionais de bom custo-benefício. Não perca!


quinta-feira, 2 de abril de 2015

Espumantes brazucas - Parte II: Como se produz um vinho espumante?

Na primeira parte desta matéria dedicada aos vinhos espumantes nacionais (já vamos chegar neles!), discutimos brevemente o que define um vinho espumante e como o estilo surgiu na região de Champagne, na França, entre os séculos XVII e XVIII. É hora de falarmos sobre o processo de fabricação do espumante, bem como discutir o que podemos esperar dele na taça. Há dois métodos principais que são empregados na produção dos espumantes ao redor do mundo todo: o método tradicional ou champenoise, e o método Charmat ou italiano.

O método tradicional ou “champenoise”

Rótulo da Eisenbahn Lust, com o equivocado termo 
“método champenoise” em destaque. A Deus até poderia, 
mas a Lust não.
Fonte: www.case.agenciawow.com.br
O método tradicional foi o que se desenvolveu primeiramente em Champagne, sendo até hoje empregado na região. Há de se ter um pequeno cuidado no emprego dos termos: quando usado na região de Champagne, esse processo pode ser denominado “método champenoise”; contudo, quando o mesmo método é empregado em qualquer outra parte do mundo, deve ser chamado de “método tradicional” ou "método clássico", o que reflete o fato de que Champagne e seus termos associados são denominações de origem protegida. Então, você, apreciador de cervejas, quando escuta que a uma bière brut como a Eisenbahn Lust foi produzida pelo “método champenoise”, fique sabendo que se trata de um uso abusivo do termo. Para falar a verdade, a única bière brut que poderia ser legitimamente descrita como produzida pelo “método champenoise” seria a belga Deus, porque ela passa por todo o processo em Reims, na região de Champagne.

O método tradicional reflete a história do desenvolvimento dos vinhos espumantes em Champagne. O espumante feito pelo método tradicional quase sempre é um blend entre vários vinhos, de diferentes variedades e/ou diferentes safras. O produtor produz uma série de vinhos de base a partir das uvas que ele selecionou e os submete à fermentação primária, separadamente. A maioria dos produtores fermenta e matura esses vinhos em tanques de aço inoxidável, para melhor preservar o frescor do vinho e os chamados “aromas primários”, ou seja, aqueles que vêm da uva. Outros, porém, empregam barris de carvalho em parte ou na totalidade da maturação, normalmente tomando o cuidado de só usar barris reutilizados, de segundo, terceiro ou quarto uso, para que os aromas, taninos e sabores da madeira não atropelem a elegância e a sutileza do vinho. Parte desses vinhos será usada jovem, no ano da colheita, para a produção do espumante. A outra parte (pelo menos 20%, segundo a lei francesa) deverá ser guardada para ser usada em anos posteriores.

Assemblage no produtor Marc Chauvet. Dúzias de 
vinhos de base e muita experiência e 
intuição para fazer o blend mais promissor.
Na sequência, o produtor realiza a assemblage, isto é, seleciona os vinhos para compor um determinado espumante e os mistura numa proporção adequada para o efeito que ele deseja obter. Na composição de um único espumante, podem entrar dúzias de diferentes vinhos, de até 10 safras diferentes. Uma safra excepcional pode render a oportunidade de produzir um espumante safrado, um produto mais bem cuidado, feito totalmente a partir de vinhos de uma mesma colheita considerada de alta qualidade, mas isso é uma exceção. O produtor escolhe os vinhos de base não pelo que eles são no momento da assemblage, mas pelo potencial que cada vinho tem de se desenvolver durante as etapas posteriores do processo. Na verdade, os vinhos de base normalmente são ácidos em excesso e pouco alcoólicos, muito pouco agradáveis em si mesmos. É preciso ver neles o potencial para algo melhor. Uma enorme experiência e uma dose de intuição são necessárias para escolher as proporções da assemblage. A assemblage é importante não apenas para garantir a padronização do espumante de ano em ano, mas também porque o clima de Champagne não é confiável o bastante, de modo que é preciso misturar safras para compensar os problemas advindos de uma má colheita.

Feita a assemblage, o blend é engarrafado com adição de um pouco de açúcar e leveduras. Na sequência, começa uma nova fermentação na garrafa, que irá elevar o teor alcoólico do vinho e produzir gás carbônico, fazendo com que o vinho fique espumante. Trata-se da fase conhecida como prise de mousse (ou “obtenção de espuma”). A garrafa é então deixada em repouso por um tempo de maturação de duração variável. Na região de Champagne, o tempo mínimo estabelecido por lei é de 15 meses. Em outras regiões, esse tempo varia desde 6 meses até vários anos. A longa maturação é crucial para a qualidade do vinho. Isso porque, durante esse tempo, as leveduras irão fermentar os açúcares disponíveis e, acabados estes, irão se autoconsumir num processo conhecido como autólise. A autólise é o pulo do gato de um espumante de alta qualidade: é quando as leveduras produzem uma série de compostos aromáticos que aumentam a complexidade do vinho e liberam proteínas que melhoram o corpo e a textura do espumante. Via de regra, quanto maior o tempo de maturação e autólise, melhor a qualidade do espumante. Antes de 9 meses, a autólise sequer se faz notar no produto final.

Gyropalettes em ação. É, tira um pouco daquela 
aura artesanal do Champagne.
Fonte: commons.wikimedia.org
Depois da autólise, é feita a finalização: as garrafas são colocadas de ponta-cabeça em suportes de madeira conhecidos como pupitres, e são viradas manualmente para que as leveduras se depositem no gargalo – o processo é conhecido como rémuage. Alternativamente, são usadas máquinas conhecidas como gyropalettes, enormes gaiolas de aço que fazem o mesmo processo de forma automatizada. Na sequência, é feito o dégorgement: o gargalo com a borra é imerso em uma solução frigorífica e a parte com o depósito das leveduras fica congelada. A garrafa é então aberta e a imensa pressão interna expulsa o fermento congelado, como uma rolha. O volume da garrafa é então completado com o chamado liqueur d’expedition, uma combinação do vinho primário com um pouco de açúcar para equilibrar a acidez do produto. A quantidade de açúcar usada nessa etapa irá determinar o estilo do espumante: um “Brut”, o tipo mais comum, recebe entre 6 e 15 gramas de açúcar por litro. Já um “Demi-sec”, meio-seco, recebe 33 a 50 gramas por litro. Um espumante que não recebe açúcar, ou que recebe menos que 6 gramas por litro, é chamado de “Brut nature” ou “Extra brut”. Do mais seco para o mais doce, temos a seguinte escala de denominações: Brut nature, Brut, Extra dry, Sec, Demi-sec e Doux.

O método Charmat ou italiano

O método tradicional, como se pode perceber, é um processo lento e trabalhoso, e implica pequenos volumes de produção e grande emprego de mão-de-obra, o que naturalmente resulta em um produto mais caro. Como alternativa, o italiano Federico Martinotti, no início do século XX, desenvolveu um método industrial que permitia produzir espumantes de forma mais rápida e barata, mimetizando todas as etapas do método tradicional em grande escala. O equipamento necessário foi desenvolvido e patenteado pelo engenheiro francês Eugene Charmat em 1910 – o que explica por que o método “italiano” tem um nome francês. O método Charmat ou italiano foi amplamante adotado pelos produtores italianos, mas também se disseminou para outras regiões do mundo e hoje está presente em praticamente todos os países que produzem espumantes.

As primeiras etapas são idênticas ao procedimento tradicional. Primeiramente, elaboram-se um ou vários vinhos que servirão de base para a refermentação. Espumantes mais simples produzidos pelo método Charmat muitas vezes utilizam um único vinho-base (dispensando a assemblage), embora os blends sejam mais frequentes. O uso de barris de madeira na fermentação e maturação primária é ainda mais raro do que no método tradicional, visto que o produtor normalmente visa acentuar o frescor que o método Charmat permite enfatizar, em relação ao método tradicional, e que a madeira poderia ofuscar. É feita a assemblage dos vinhos-base, com a diferença de que é muito mais frequente que se empreguem vinhos de uma única safra. Isso se explica por dois fatores principais: em primeiro lugar, o clima da Itália (região de referência para o método Charmat) possibilita a plena maturação das uvas, evitando que seja necessário blendar vinhos de vários anos para obter uma padronização eficiente. Em segundo lugar, os espumantes produzidos pelo método italiano enfatizam o frescor, de modo que as safras mais recentes oferecem melhores condições para se obter o efeito desejado.

Autoclave de refermentação para o método 
Charmat. Existem modelos bem maiores.
Fonte: alemdovinho.com
Feito o corte dos vinhos de base, o blend é posto em enormes tanques de aço inoxidável selados hermeticamente – autoclaves – com adição de leveduras e de uma quantidade determinada de açúcar, que varia para cada produtor e para cada rótulo. A temperatura é controlada de acordo com a rapidez com que o produtor deseja que a refermentação ocorra. O processo normalmente dura entre 30 dias e 6 meses, muito mais rápido do que o tempo mínimo de 15 meses do método champenoise. A refermentação ocorre no interior do tanque, sendo que uma hélice é responsável por misturar constantemente as leveduras com o vinho para evitar que elas se depositem e, assim, acelerar o processo. O gás carbônico produzido pela refermentação é retido no interior do tanque e se dissolve no vinho, gerando a carbonatação natural. O vinho é então filtrado para remoção das leveduras inativas e engarrafado sob pressão. Não há adição artificial ou posterior de gás carbônico. Pode haver adição de mais açúcar, dependendo do perfil desejado pelo produtor e da quantidade de açúcar que havia sido adicionada antes da refermentação.

Não é difícil perceber que o método Charmat é muito mais barato do que o tradicional – como resultado, os espumantes resultantes costumam também estar situados numa faixa de preços sensivelmente menor. Isso não significa, contudo, que um espumante elaborado pelo método tradicional vá ser necessariamente melhor do que um feito pelo método Charmat. Se a refermentação se prolongar por tempo suficiente, o método Charmat também propicia o surgimento das características associadas à refermentação e às leveduras (já falaremos sobre elas), embora numa intensidade normalmente inferior. Mas uma coisa é certa: de forma geral, um espumante produzido pelo método tradicional, se a maturação se estender por tempo o suficiente, tenderá a ter um aroma mais complexo e maduro, além de uma textura mais macia, rica e “carnuda”. Um espumante produzido pelo método Charmat, por outro lado, tenderá a ter mais frescor e preservar melhor os aromas primários da uva, resultando em vinhos mais frescos e frutados. Tudo depende do que o produtor deseja obter. É preferível ter um espumante elaborado com cuidado pelo método Charmat do que um espumante feito às pressas, sem tanto capricho, pelo método tradicional.

O perfil sensorial

O que podemos esperar de um vinho espumante na taça? É difícil generalizar, devido à grande disparidade de técnicas e de variedades de uvas que podem entrar na composição de diferentes espumantes. Um Asti, feito pelo método Charmat, com baixo teor alcoólico e empregando a uva Moscato, será radicalmente diferente de um Champagne Brut Nature, feito pelo método champenoise, usando uvas Chardonnay, Pinot Noir e Pinot Meunier. Como vimos, em grande medida, um vinho espumante nada mais é do que um vinho que foi refermentado para gerar carbonatação. Desse modo, espumantes podem diferir uns dos outros da mesma forma como os vinhos, em geral, diferem entre si.

O perlage (“fio de pérolas”) é o fluxo 
de bolhas subindo à superfície. 
Preferencialmente, as bolhas devem 
ser pequenas e delicadas.
OK, pondo de lado toda essa diversidade, existem algumas características comuns. Em primeiro lugar, e muito obviamente, a carbonatação. Todo vinho espumante tem uma intensa sensação frisante advinda da carbonatação natural. Em alguns vinhos, ela pode ser sentida de forma tão intensa na língua que é chamada de “agulha”. A carbonatação tende a ressaltar a acidez do vinho, de modo que é comum que os vinhos espumantes também sejam bastante ácidos – ainda mais que os tintos e que a maior parte dos brancos. Essa combinação entre a acidez e a “agulhada” da carbonatação deve ser elegante e refrescante na boca, e não deve agredir o paladar. Dependendo do estilo (em especial nos meio-doces ou nos Moscatéis), existirá alguma doçura para equilibrar a acidez, muito embora a maior parte dos estilos tenda a optar por um perfil mais seco, em que a acidez possa se destacar e brilhar sem ter de competir com o doce. Algumas vezes (especialmente nos rosés), é possível sentir também um certo amargor no fundo da língua – alguns o consideram um defeito, enquanto outros (entre os quais me incluo) podem achar esse amargor refrescante e agradável. No fim das contas, eu sou um bebedor de cervejas – estranho seria se eu fizesse careta para uma pontinha de amargor.

O corpo, em grande medida, acompanhará o grau de doçura do vinho. Quanto mais doce, mais encorpado o vinho; quanto menos doce, mais seco e leve será o corpo. Essa leveza, acompanhada da expressiva carbonatação, pode gerar uma vívida sensação de crocância na boca, muito refrescante. Contudo, há algumas variações importantes, em especial nos vinhos feitos pelo método tradicional. Durante a autólise, as leveduras eliminam proteínas que afetam a textura do líquido. Assim, um espumante com longo tempo de maturação pode ter um corpo leve e seco, mas ao mesmo tempo deliciosamente rico, envolvente e cremoso. Os taninos (responsáveis por aquela sensação adstringente de “amarrar a boca”, que encontramos principalmente nos vinhos tintos) são raros nos espumantes, já que as cascas das uvas (onde se localizam os taninos) costumam não ser prensadas o bastante para liberar taninos – que iriam interferir na delicadeza da bebida.

E no nariz? Aí é que a coisa fica complicada. Para os vinhos vale o mesmo que para cervejas: existem aromas primários, secundário e terciários. Os primários derivam da matéria-prima, ou seja, das uvas empregadas na fabricação do vinho. Em sua maioria, tendem a ser aromas de frutas e flores – em alguns casos, também de especiarias e minerais. Como a maior parte dos espumantes é branco, os aromas primários tendem a oscilar entre os de flores brancas e frutas cítricas e de caroço (pêssegos, por exemplo). No caso dos rosés, surgem ainda com frequência os aromas de frutas vermelhas. No caso dos espumantes produzidos pelo método Charmat, os aromas primários serão enfatizados, o que significa que esse método costuma resultar em espumantes mais frutados.

Os aromas secundários advêm do processo de fermentação e maturação do espumante. Aqui se localizam alguns dos elementos mais característicos dos vinhos espumantes – aqueles produzidos pelas leveduras durante o processo de refermentação. Esses aromas são descritos como notas de panificação, pão doce, brioches, bolo, fermento, massa podre, tons tostados e aromas de frutos secos oleaginosos, como nozes ou amêndoas tostadas. Um bom espumante pode exalar os perfumes de uma confeitaria inteira. Esses aromas de leveduras são a marca registrada dos grandes espumantes feitos pelo método tradicional, mas podem estar presentes também, em menor intensidade, naqueles produzidos pelo método Charmat, em especial os mais secos. Ocorre que esses aromas demoram a se desenvolver no vinho, durante o processo de autólise das leveduras, de modo que, quanto maior o tempo de maturação, mais intensos serão esses aromas denominados “tostados” e de “panificação”. Além dos aromas de leveduras, no caso de vinhos que sofreram passagem por barris de madeira (o que tende a ser infrequente nos espumantes), aromas amanteigados e abaunilhados também são comuns. Os aromas terciários, que advém do envelhecimento do vinho, são menos comuns em espumantes, já que eles raramente são envelhecidos por muito tempo, à exceção de alguns Champagnes e Franciacortas safrados.

Cabe fazer um aparte aos meus colegas cervejeiros. Todos os termos que usei para descrever os típicos aromas de leveduras associados aos espumantes (especialmente aqueles elaborados pelo método tradicional) podem ser empregados também na degustação de cervejas. Paradoxalmente, isso mais atrapalha do que ajuda o apreciador de cervejas a identificar esses aromas nos espumantes. Isso porque, apesar de os termos serem parecidos, os aromas podem ser bastante distintos. Nas cervejas, aromas de panificação (pão branco, bolo, brioches), de tostados (torradas, casca de pão) e de frutos secos oleaginosos (castanhas, nozes) podem estar associados ao malte de cevada, sendo bastante evidentes e intensos em alguns estilos cervejeiros. Nos espumantes, esses aromas são mais delicados, quase etéreos, sem o “peso” e a densidade dos aromas de malte. Portanto, quando estiver diante de um espumante feito pelo método tradicional, não adianta procurar um aroma semelhante ao de uma ESB, uma brown ale ou uma Münchner Helles. Afine seu nariz para tons mais delicados, lembrando talvez os aromas da confeitaria fina, que deverão estar equilibrados com o frescor floral e frutado das uvas.

Acidez vibrante, carbonatação expressiva e apetitosos aromas de leveduras – eis o tripé mais característico do perfil sensorial dos vinhos espumantes. Contudo, como vimos, muita coisa depende do método de produção e do perfil que o produtor deseja imprimir em seu vinho. Os espumantes feitos pelo método Charmat tendem a ser mais joviais e frutados, descompromissados e alegres. Aqueles feitos pelo método tradicional (em especial quando o tempo de maturação é longo, igual ou superior a 18 meses), pelo contrário, enfatizam os aromas de leveduras e a textura cremosa, ganhando complexidade aromática e mostrando-se mais austeros.


Mas, afinal de contas, como são os espumantes brasileiros – já que é sobre isso que queremos falar aqui? Já chegaremos lá! Na próxima parte desta nossa matéria, falarei sobre três rótulos brasileiros clássicos, bastante conhecidos e bem avaliados pelos especialistas. Não perca!