quarta-feira, 25 de novembro de 2015

De John Stedman ao Brazilian wax: gênero e raça no marketing cervejeiro

Faz algum tempo que eu não tinha condições de escrever aqui no blog. Culpa dos compromissos profissionais. Mas – vejam só! – foram esses mesmos compromissos que também me deram o mote e o assunto para esta matéria. É que uma das coisas que fiz nesses meses foi reler, para um seminário acadêmico, um livro chamado Os olhos do império, da crítica literária canadense Mary Louise Pratt. Trata-se de um magnífico estudo sobre relatos de viagens, e foi uma leitura que influenciou fortemente minha formação desde minha graduação em História, quando tive a oportunidade de lê-lo pela primeira vez.

A escrava Joana é a heroína desta matéria. 
E é a segunda mulher negra do século 
XVIII homenageada neste blog!
Fonte: en.wikipedia.org
O livro não fala sobre cerveja. Fala sobre viajantes, e fala inclusive sobre o lendário diplomata e agente secreto inglês Richard Francis Burton, que passou 7 anos na Índia britânica na década de 1840 e teve a rara oportunidade – para um ocidental – de se tornar um brâmane hindu. Por coincidência, o sobrenome de Burton era homônimo à pequena cidade inglesa de Burton-on-Trent, de onde, na mesma época, saíam as cervejas claras e lupuladas enviadas para os oficiais ingleses na Índia, as mesmas que viriam a ficar conhecidas como India pale ales. Richard Burton deve ter bebido sua cota de IPA na Índia, talvez até mesmo na época em que ele professou o islamismo. Isso não posso afirmar.

Mas esta postagem não é sobre a vida de Richard Burton ou sua devoção ao imperialismo inglês na Índia, no Oriente Médio e na África. Ocorre que o livro de Mary Louise Pratt também fala sobre um soldado escocês chamado John Stedman, que teve um relacionamento amoroso com uma escrava mulata chamada Joana no Suriname no final do século XVIII. Quero contar sua história e mostrar como suas visões negativas e imperialistas sobre as mulheres, os negros (e sobretudo as mulheres negras) e a América Latina estão mais vivas do que nunca neste início de século XXI, e ainda habitam o imaginário do cenário cervejeiro contemporâneo. Mas vamos com calma.

A escrava Joana

John Stedman nasceu em 1744 na Escócia e herdou de seu pai o posto de oficial da Brigada Escocesa do exército holandês (era uma época em que os exércitos não eram tão nacionalistas quanto são hoje). À época, a Holanda tinha algumas pequenas mas lucrativas colônias agroexportadoras no Caribe, entre as quais estava o Suriname. Nessa região coberta por florestas tropicais, os escravos africanos que trabalhavam nas fazendas holandesas fugiam em grandes quantidades para as matas, formando grandes quilombos que existem até os dias de hoje e travando uma guerra feroz contra as forças repressivas coloniais. A despeito de terem assinado tratados de paz com os quilombolas, os holandeses organizaram em 1773 uma expedição militar repressiva, da qual fazia parte Stedman. A guerra holandesa contra os quilombolas foi um fiasco, e comprovou, desde então, a proverbial incompetência dos exércitos europeus para guerrilhas na floresta. Cerca de 80% dos soldados europeus morreram (a maior parte devido a doenças), poucos escravos foram recapturados e a maior parte dos quilombolas atacados fugiu para a Guiana Francesa.

Gravura de John Stedman sobre o 
cadáver de um negro quilombola.
Fonte: en.wikipedia.org
John Stedman era um soldado europeu, a serviço de uma potência colonial, encarregado de esmagar uma rebelião de escravos. Diante disso, é um tanto irônico – mas esta é justamente a ironia da colonização europeia nas Américas – que ele tenha se envolvido sexualmente e tenha até se “casado” com uma escrava, chamada Joana. Há duas versões dessa história de amor transracial: a que John Stedman publicou em seu livro de memórias de viagem, chamado Narrativa de uma expedição de cinco anos contra os negros revoltosos do Suriname (de 1796), e a que consta do seu diário pessoal de campanha. Qual você quer saber primeiro?

Vamos lá: comecemos pela versão do diário. Gostamos de segredos. Na época de Stedman, havia o costume de que os oficiais militares europeus (ou oficiais diplomáticos, agentes comerciais, administradores etc.) recém-chegados à América adquirissem os serviços de uma escrava local, seja por aluguel, seja por compra da escrava. Esses serviços a serem desempenhados pela escrava comprada ou contratada incluíam atribuições fundamentais para a vida cotidiana desses europeus sozinhos em territórios coloniais: tarefas domésticas, preparação de alimentos, cuidados de saúde. E, como você já deve estar imaginando, incluíam também serviços sexuais. Em alguns casos, para evitar o escândalo público, esses relacionamentos de concubinato eram oficializados por cerimônias de pseudocasamento. John Stedman teve várias companheiras no Suriname nesses moldes. Joana foi uma delas, aparentemente sua preferida. Stedman, depois de se casar com ela no Suriname, propôs que ela o acompanhasse de volta à Inglaterra, mas ela recusou, preferindo continuar a viver como uma escrava “próspera” na América do que viver como pária (uma mulher negra e escrava) na Inglaterra do final do século XVIII. Pois bem: Stedman voltou sozinho e se casou novamente com uma esposa inglesa. Fim de uma edificante história de exploração sexual nos trópicos.

Mas a versão da história contada por John Stedman em seu livro é bastante diferente. Segundo esse relato, Joana teria sido uma espécie de escrava “hipotecada”, propriedade de uma viúva endividada. Seu destino estava selado, pois ela seria vendida para liquidar a dívida da senhora. Stedman teria se apaixonado perdidamente ao vê-la na casa da viúva, descrevendo-a como “a mais elegante forma que a natureza pode exibir, [...] com uma face na qual reluzia, a despeito do tom escuro da pele, um lindo tom carmim.” [É, era tipo “ela é preta, mas é limpinha”.] Diante da inevitabilidade de sua venda, ela teria apelado ao bondoso soldado europeu, que então tomou, segundo seu relato, a “estranha decisão” de comprá-la e se casar com ela para evitar a separação, decidido a “ser seu protetor contra qualquer insulto”. Não preciso explicar a ironia, preciso? Stedman narra sua cerimônia de casamento, sua lua-de-mel, a paixão entre os dois e o nascimento de seu filho Johnny. Ao final da narrativa, conta que a escrava Joana não quis segui-lo até a Inglaterra e que depois morreu envenenada no Suriname.

Uma das gravuras do livro de Stedman. 
O soldado denunciou os rigores da 
escravidão mas não deixou de explorar 
uma escrava negra no Suriname.
Fonte: en.wikipedia.org
Num certo sentido, não é difícil ver na narrativa de John Stedman uma tentativa de construir uma versão idealizada e romantizada de um relacionamento que era, por natureza, brutal e desigual. Joana era, afinal de contas, uma escrava sexual do soldado escocês. Literalmente. A ligação entre os dois é contada como sendo de amor recíproco, e sua união é representada como voluntária para ambas as partes – quando sabemos que ela não podia sê-lo para Joana, a não ser muito parcialmente. Não se trata de dizer que é impossível que tenham se amado. Eu não chegaria a tais extremos metafísicos. O que é inegável, contudo, é que o relato de Stedman ocultava a violência do regime de exploração sexual nas Américas, em que mulheres negras eram vistas como sexualmente disponíveis para homens brancos que iriam se valer de sua companhia e depois descartá-las.

Essas histórias de amor transracial envolviam sempre mulheres negras (ou pelo menos não brancas, ou de alguma forma em posição subalterna) e homens brancos, e quase nunca o contrário. Pocahontas, Iracema, Bartira, a escrava Isaura – you name it. Isso não é fortuito, já que o pensamento da época considerava o gênero como uma metáfora da raça, e vice-versa: a raça branca era representada na pseudociência racial da época como sendo “masculina” (ativa, dominadora, racional), enquanto as raças não brancas eram consideradas “femininas” (passivas, irracionais, emocionas). A relação sexual entre homens brancos e mulheres negras, portanto, era o lugar ideológico em que todas essas questões espinhudas eram tratadas na cultura da época. Stedman deu a essa questão um tratamento lisonjeiro aos olhos de seus leitores europeus, em que a violência sexual e racial aparecia sob a roupagem da reciprocidade do amor romântico correspondido. Não à toa, seu livro foi um sucesso editorial, sendo publicado em 6 diferentes línguas europeias. A história de Stedman e Joana foi adaptada para teatro, poesia, conto e romance. Era um conto de fadas agradável para aplacar a consciência pesada do imperialismo europeu.

Evil Twin Brazil Brazilian Wax

Infelizmente, como sabemos, esse regime de exploração sexual da mulher de cor (negra, indígena, asiática ou mestiça) do Terceiro Mundo por homens brancos do Primeiro Mundo não acabou. Claro que ele assumiu outras formas, que atualmente incluem o tráfico internacional de pessoas, o turismo sexual e várias formas, diretas e indiretas, de violência doméstica. Também sobrevive de formas mais sutis na nossa cultura contemporânea, traduzido em preconceitos a respeito da promiscuidade e/ou da sensualidade aflorada da mulher negra. É um estranho e abominável lugar ideológico onde se cruzam duas das mais perniciosas e duradouras pragas culturais do nosso mundo: o machismo e o racismo, que, como vimos, andaram de mãos dadas pelo menos desde o final do século XVIII.

Eu adoraria dizer que o meio cervejeiro, por ser composto de pessoas “cultas”, “bem-educadas”, “sensíveis” e “de mente aberta”, [ironia detectada] não tem nada disso. Mas isso não é verdade. Uma polêmica relativamente recente a respeito de uma cervejaria europeia no Brasil reeditou, quase ponto a ponto, a velha história de John Stedman no Suriname, mais de dois séculos depois. Alguns dos meus leitores terão acompanhado essa discussão, enquanto talvez outros nem se lembrem mais dela. De qualquer modo, acho que o acontecimento foi tão emblemático de todas essas questões que vale a pena fazermos questão de não esquecê-lo. Falo da polêmica criada em torno do rótulo da cerveja Evil Twin Imperial Brazilian Wax.

Bunda ou virilha: eis a questão.
Fonte: http://www.bebendobem.com.br/
 
 
Para quem não sabe, a Evil Twin é uma cervejaria cigana de origem dinamarquesa (hoje em dia sediada nos EUA) que exporta alguns de seus rótulos para o Brasil. Em decorrência de uma parceria com a cervejaria Tupiniquim, do RS, a Evil Twin passou a produzir alguns rótulos no Brasil, na planta da microcervejaria rio-grandense. A primeira cerveja dessa linha produzida em solo nacional, em 2014, foi uma imperial stout que foi inicialmente batizada de Imperial Brazilian Wax – em alusão à técnica de depilação íntima frequentemente associada às mulheres brasileiras no exterior. O rótulo inicialmente anunciado para a cerveja é este que você vê acima deste parágrafo.

O anúncio suscitou uma justificada e previsível reação de protesto de diversos consumidores brasileiros – e especialmente de consumidoras brasileiras –, que viram no rótulo um subtexto machista e depreciativo. Alguns admiradores da marca tentaram aplacar a situação, dizendo que não havia nenhum machismo no rótulo e que era tudo uma espécie de teoria da conspiração de grupos feministas. A emenda saiu pior do que o soneto, e gerou uma avalanche ainda maior de críticas – desta vez não apenas à Evil Twin, mas a uma parcela substancial dos blogueiros e “formadores de opinião” do meio cervejeiro, que haviam perdido uma excelente oportunidade de ficarem em silêncio. Isso porque, ao deslegitimarem o protesto contra o rótulo, não só deixavam de reconhecer seu subtexto machista como também condenavam a expressão pública de indignação por parte de coletivos femininos. Por conta da pressão dos consumidores e da má publicidade em torno do fato, a Evil Twin acabou trocando o nome e o rótulo da cerveja, que foi lançada como Evil Twin Metro Man.

Uma análise semiótica elementar do rótulo proposto para a Evil Twin Imperial Brazilian Wax é suficiente para expor seu subtexto ideológico problemático, que nem de longe se limita ao machismo, mesmo que este tenha ganhado maior visibilidade e tenha se tornado o alvo prioritário de protesto nas redes sociais. Façamos a análise em três etapas: comecemos pelo nome da cerveja, passemos à imagem do rótulo e finalizemos com o texto de descrição comercial contido no rótulo. Ao final, juntaremos tudo isso para tentar extrair algum tipo de impressão global do rótulo (já adianto: não vai ser bonita).

O nome

Comecemos pelo nome proposto para a cerveja: Imperial Brazilian Wax. A ironia é tão deliciosa quanto involuntária. “Imperial” refere-se a estilos cervejeiros de teor alcoólico elevado – no caso, trata-se de uma “stout imperial”, como esclarece o rótulo na parte inferior (em letras pretas). Contudo, o termo também remete às complexas formações sociais e ideológicas criada pelo imperialismo europeu nos trópicos – as mesmas que deram origem às Joanas do período escravista e que reaparecem no rótulo da Evil Twin. Desde a primeira palavra do título, a Imperial Brazilian Wax já se apresenta como súdita do euroimperialismo.

Já “Brazilian wax” refere-se à chamada “depilação brasileira”, uma técnica de depilação introduzida nos EUA por profissionais brasileiras, que consiste na retirada total dos pelos da virilha e das áreas genital e anal, deixando, opcionalmente, uma “faixa” de pelos no púbis. A técnica atende a dois propósitos principais: 1. o uso de biquínis cavados sem revelar os pelos pubianos; e 2. o prazer sexual do parceiro ou da parceira da mulher que se submete à técnica. O biquíni, como sabemos, é um traje de banho que visa revelar a maior parte do corpo da mulher para a observação de terceiros, frequentemente uma observação de caráter erótico por parte de homens, deixando cobertas apenas as partes consideradas obscenas e ofensivas ao pudor público (genitália e mamilos). Portanto, não seria exagero afirmar que essa técnica de depilação tem uma conotação eminentemente erótica, e tem como objetivo potencializar os atributos da mulher como objeto de desfrute erótico. O fato de esse tipo de depilação estar associado, nos EUA e na Europa, às mulheres brasileiras já é uma reiteração daqueles velhos preconceitos que veem a mulher do Terceiro Mundo ou de regiões tropicais como mais intensamente sexualizada. Ou seja: num certo sentido, o próprio nome escolhido pela Evil Twin já é um tributo à cultura do imperialismo que herdamos de John Stedman e de outros europeus nos trópicos. Ponto para o império!

A imagem

A imagem do rótulo reforça esse sentido. Há um triângulo invertido amarelo (com as duas arestas inferiores côncavas) sobre um fundo marrom. Não é difícil ver a representação estilizada de uma mulher de biquíni – ainda mais quando consideramos que a técnica do Brazilian wax está associada ao uso do biquíni. Mas não se trata de uma representação de corpo inteiro da mulher de biquíni: pelo contrário, o rótulo faz um recorte que enfatiza apenas a região da genitália da mulher. Se esta é a parte da frente ou de trás do biquíni é matéria controversa, embora eu acredite que as concavidades do triângulo sugiram mais a volumetria da parte de trás. Seria, nesse caso, a representação estilizada de uma bunda de biquíni fio-dental – o que é razoável, considerando que o fio-dental é outra coisa tipicamente associada ao Brasil na mentalidade estrangeira. De qualquer forma, é evidente que se trata de uma representação erotizada da mulher, que atua por meio de uma estratégia retórica de metonímia, representando o todo (a mulher) por uma de suas partes (a genitália), que é considerada a mais importante ou representativa. É como se a mulher “se resumisse” a um traço fundamental, ou pudesse ser reconhecida apenas por ele: a saber, a bunda exposta.

As cores escolhidas para a imagem trazem outras associações e significados. O triângulo (que, como vimos, representa o biquíni) é amarelo. Como sabemos, o amarelo é uma das principais cores da bandeira brasileira, junto com o verde. As letras usadas no rótulo são verdes, e o biquíni é amarelo, remetendo de forma muito imediata e inequívoca ao Brasil. Portanto, não se trata apenas de uma mulher de biquíni, mas (pelo menos simbolicamente) de uma brasileira de biquíni. O fundo, por sua vez, é marrom. Forçando um pouco a barra (para aliviar para a Evil Twin), poderíamos até dizer que a cor lembra uma pele intensamente bronzeada. Mas me parece mais convincente que o marrom remeta à pele negra, ou, mais precisamente, à pele mulata. Ora, sabemos que, no exterior, o Brasil é frequentemente associado à imagem da mulata sensual, de modo que me parece bastante razoável supor que essa é a associação sugerida pelo rótulo. Sendo isso verdade, estamos diante de um rótulo que representa a bunda (ou a virilha) de uma mulata brasileira de biquíni, uma imagem que está, digamos, “disfarçada” por um trabalho de estilização formal. Portanto, é uma imagem da mulher brasileira representada como objeto de deleite erótico para o olhar masculino. Mais que isso, é uma mulher negra. E o olhar masculino em questão é o de um europeu (uma vez que a marca Evil Twin é dinamarquesa). Ora, se é assim, então a mulher do rótulo é uma Joana, pronta e disponível para o consumo e o deleite de um Stedman! A imagem, portanto, reforça e ecoa o imaginário euroimperial, machista e racista da disponibilidade sexual das mulheres de cor tropicais para o deleite dos homens brancos europeus.

O texto

A descrição comercial apresentada no rótulo também confirma esses significados. Arrisco uma tradução do texto: “Há muitas coisas sobre as mulheres que os homens não entendem. Por exemplo, por que elas suportam tanta dor para corresponder aos ideais da sociedade moderna? Elas estão indo longe demais? Ou talvez os homens possam aprender uma ou outra coisa a respeito do comprometimento extremo das mulheres com a perfeição – seja beleza extrema, seja cerveja extrema – é tudo questão de gosto. Lembre-se de que, quando você beber esta stout extrema, ela pode doer um pouco, mas às vezes é preciso aguentar até o fim para ficar perfeito [to get it right].”

Para ser bem sincero, o texto já começa mal, sugerindo que as ações das mulheres são pouco compreensíveis para os homens. Como se elas fossem seres alienígenas, irracionais ou alguma coisa assim. Na sequência, o texto afirma que as mulheres “suportam dor” (e muita dor), ou seja, que sofrem, com o objetivo de “corresponder aos ideais da sociedade moderna”. A alusão aqui é ao doloroso processo da depilação brasileira: segundo o texto, as mulheres se submetem a esse sofrimento com o intuito não de atender a um desejo próprio, mas sim de corresponder aos padrões de beleza e aos ideais de perfeição feminina da sociedade. Ou seja, segundo o rótulo (e não sou eu quem estou falando isso, é a Evil Twin!), essa depilação não é feita pela mulher exatamente por vontade própria, mas para atender a padrões externos. Padrões estéticos masculinos, subentende-se, já que são eles, prioritariamente, que irão observar e se deleitar com as mulheres de biquíni após elas terem se submetido a esse sofrimento. O texto sugere que essa prática seria um tipo de excesso (“ir longe demais”), um “comprometimento extremo” para se atingir uma “beleza extrema”.

A última frase do texto coroa esses sentidos: “é preciso aguentar até o fim para ficar perfeito” (na frase original, de difícil tradução: “you just have to go all the way to get it right”). Ou seja, o sofrimento causado pela depilação é visto como um requisito necessário para que a mulher fique “perfeita” (ou “correta”, “right”). E o que seria essa perfeição a ser almejada pela mulher do século XXI? Talvez uma carreira profissional brilhante, talvez um comportamento ético irreprochável, quem sabe um alto nível de sofisticação intelectual? Não, não é nada disso. Para uma mulher ser “perfeita”, ela deve atingir a “beleza extrema”. Esse seria o ideal mais importante a ser almejado pelas mulheres: a beleza. E, quando falamos em depilação íntima, isso significa que ela deve fazer o necessário para ser um objeto agradável de contemplação e deleite erótico para os homens: deve suportar a dor da depilação para poder usar um biquíni cavado na praia e ser avaliada de forma positiva pelo olhar masculino. Em resumo: mulher tem que sofrer para atender ao deleite sexual dos homens. Estamos em pleno século XXI, mas a verdade é que poderíamos dizer exatamente o mesmo para descrever as demandas dos europeus do século XVIII nas Américas a respeito de mulheres como Joana. Será que evoluímos tanto assim?

Imperial no ** dos outros é refresco

Vamos juntar todas as peças. O rótulo que estamos analisando foi criado por uma cervejaria europeia (dinamarquesa, para ser mais exato) especialmente para sua primeira cerveja produzida no Brasil. É uma espécie de “cartão de visitas” representativo da colaboração entre o Brasil e uma empresa europeia. Há um intuito deliberado de condensar uma imagem ou representação sobre o país, o que se traduz no nome (“Brazilian”) e no verde-e-amarelo da paleta de cores do rótulo. Essa imagem parte de uma associação entre o Brasil e a sexualidade do seu povo (e especialmente das mulheres). Um europeu visitando o Brasil poderia elogiar positivamente muitos aspectos da cultura brasileira: nosso multiculturalismo, talvez nosso cosmopolitismo, quem sabe nossa tão propalada alegria, ou nossa hospitalidade. Mas a Evil Twin decidiu mencionar a sensualidade da mulher brasileira. Portanto, em primeiro lugar, o rótulo é ofensivo à cultura brasileira como um todo, sugerindo que sua disponibilidade erótica seria seu mais proeminente ou interessante atributo ao olhar de um estrangeiro. Exagerando um pouco a nota, é como se o Brasil fosse um grande bordel.

E a Evil Twin não é a única empresa estrangeira 
a enxergar o Brasil dessa forma...
Fonte: www.morganpr.co.uk
Em segundo lugar, o rótulo é ofensivo à dignidade feminina, pois reduz a mulher a um mero objeto sexual: seu corpo é seccionado para ser metonimicamente representado por uma bunda, e o ideal de perfeição a que ela deve almejar acima de todos é o tipo de beleza erótica que a transforma em objeto de satisfação sexual para os homens. Ainda por cima, ela precisa sofrer para atingir esse ideal pouco lisonjeiro. Por fim, o rótulo é ofensivo à dignidade racial negra, ao trabalhar em cima do velho estereótipo que associa as mulheres de cor à sensualidade exacerbada e as representa como sexualmente disponíveis ao deleite dos europeus nos trópicos. A mulher brasileira a ser eroticamente desfrutada pelo europeu não é branca, mas negra. Full house: a Evil Twin conseguiu ser ofensiva simultaneamente ao sentimento nacional brasileiro, às mulheres e aos negros. Com isso, ela reproduziu perfeitamente todas as coordenadas da velha ideologia imperialista europeia sobre os trópicos: a mesma mistura indigesta de uma representação negativa sobre as culturas tropicais com elementos de machismo e de racismo que encontramos em textos como o de John Stedman.

O infeliz rótulo da Evil Twin me lembrou muito uma polêmica criada em torno de duas camisetas comercializadas pela Adidas durante a Copa do Mundo da FIFA de 2014 (mesmo ano de lançamento da Imperial Brazilian Wax, por sinal). Uma das camisetas trazia os dizerem “I love Brazil”, sendo que o “love” era substituído por um coração estilizado para lembrar uma bunda de biquíni (a imagem você vê acima). A outra, ainda mais nojenta (era o modelo masculino), trazia a imagem de uma mulher de biquíni (sempre ele...) com o Pão de Açúcar ao fundo, e os dizeres “Looking to score”, expressão que tem duplo sentido, podendo ser traduzida como “tentando marcar gols” ou como “tentando obter sexo”. A Embratur e a presidente Dilma Roussef, corretamente, repudiaram as camisetas e exigiram produtos menos ofensivos à dignidade nacional e que não incentivassem o turismo sexual durante a Copa do Mundo. A venda das camisetas foi suspensa e o episódio foi uma tremenda bola fora diplomática da Adidas.

Boa, Evil Twin, agora ficou joia! #sqn
Fonte: http://www.bebendobem.com.br/
O rótulo da Evil Twin Imperial Brazilian Wax também foi suspenso. Em seu lugar, a cervejaria lançou a mesma cerveja com o nome de Evil Twin Metro Man. Muitas das consumidoras ofendidas celebraram a mudança, mas a verdade é que o novo rótulo não traz uma mensagem de gênero muito melhor. Não pretendo cacetear meus leitores (que já me acompanharam até aqui!) com mais uma análise extensa, mas a verdade é que a Metro Man reforça padrões de gênero heteronormativos, ao sugerir que a vaidade masculina estaria ligada aos “problemas de gênero” que a cervejaria havia enfrentado. Isso antes de dizer que esse problema todo seria “nonsense”. A Evil Twin realmente parece incapaz de deixar de ser ofensiva com seus consumidores: mesmo ao atender a uma reclamação e mudar o rótulo, não deixou de reiterar que a polêmica era vazia e sem sentido. Mas pelo menos a cervejaria aprendeu, da pior forma possível, que as Joanas do século XXI não pretendem ficar quietas diante dos abusos dos John Stedmans que continuam por aí.


Mas você deve estar pensando: “ah, mas isso tudo é tão sutil, tão subentendido, tão subliminar que ninguém percebeu!” Em primeiro lugar, muita gente não só percebeu como se ofendeu. Isso já é motivo suficiente para polêmica. Mas, ainda mais importante, como pretendi mostrar, todos esses significados estão perfeitamente acessíveis para uma interpretação semiótica básica. E o fato de eles serem sutis e de frequentemente passarem despercebidos não os torna inofensivos: como os estudos de psicologia do consumidor evidenciam, não precisamos nos dar conta, conscientemente, de todas as mensagens de uma peça publicitária para que ela exerça influência sobre nossa mente, nossos desejos e nossos sentimentos. A ideologia também funciona assim: é até desejável que nós não saibamos ou não possamos exprimir conscientemente todos os conteúdos das ideologias que nos influenciam. Elas moldam nossa sensibilidade, nossas opiniões e nossas ações de forma muito mais eficientes se continuarem “encobertas”, como estão no rótulo da Imperial Brazilian Wax. Não há absolutamente nada de inocente nisso tudo.