segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

As gigantes cervejeiras e a "revolução artesanal"

Quem tem medo do lobo mau?
Fonte: money.cnn.com
2015 acabou enfim, e é hora de fazermos um balanço sobre alguns dos destaques cervejeiros que chamaram a minha atenção nesse ano que se foi. É verdade que não consegui acompanhar inteiramente os novos lançamentos cervejeiros de 2015, por dois motivos – um bom e um mau. O mau é que, depois de terminar meu doutorado, fiquei um tempo sem emprego e sem condições de gastar dinheiro para acompanhar os lançamentos. Felizmente, isso vai mudar muito em breve. O bom motivo foi simplesmente o volume avassalador de novos rótulos, sobretudo nacionais, que tivemos no mercado. Num ano em que as novas importadas perderam um pouco do lugar na prateleira devido à alta do dólar, as cervejarias nacionais brilharam. Provei o que o orçamento apertado permitiu, aqui e ali, dentre aquilo que mais interessou.

Ao contrário do que fiz nos anos anteriores, não farei uma listagem com as cervejas mais interessantes que provei ao longo de 2015. Nem sei se a amostragem foi suficiente para uma listagem minimamente justa com o conjunto do mercado. Na verdade, quero apenas comentar alguns fatos que acabaram concentrando as minhas atenções nesse ano que acabou: a entrada da AB-InBev no mercado cervejeiro (com os dois pés no peito) e o crescimento na produção de cervejas ácidas por cervejarias nacionais. Nesta postagem, comento a questão da AB-InBev e do significado da entrada dos grandes grupos no cenário cervejeiro. Na próxima parte, falarei um pouco sobre a nova linha de artesanais e mezzo-artizanale da Bohemia e da Brahma. As ácidas de 2015 ficam para um momento posterior. Não queremos atropelar tudo, não é mesmo?

Artesanal ou industrial?

Como a maior parte dos que acompanham o cenário cervejeiro sabe muito bem, o ano de 2015 começou com uma notícia relativamente inesperada, até mesmo chocante para alguns: a gigante cervejeira AB-InBev comprou duas das microcervejarias mais icônicas e tradicionais do mercado brasileiro: a Wäls, de Belo Horizonte, e a Colorado, de Ribeirão Preto. No caso da Wäls, não se tratou meramente de uma compra: a Cervejaria Bohemia e a Wäls “associaram-se” numa nova empresa com controle acionário majoritário da AB-InBev (até agora, sem mudança nenhuma na existência de duas marcas independentes). OK, na prática, o resultado é mais ou menos o mesmo que o de uma compra, embora o vocabulário esteja cheio das elipses típicas das grandes operações do mercado de capitais.

Eu não compro das grandes corporações! Exceto meu 
iPhone, claro. E meu tênis Adidas. E meu Honda Fit. 
Ah, deixa para lá.
Fonte: cervezaplease.com
A notícia causou rebuliço, e as cervejarias prontamente ganharam acusadores e defensores na vasta, insólita e selvagem arena de batalha constituída pelas redes sociais. Recapitulemos os principais argumentos, de um e de outro lado (não, meu objetivo aqui não é tomar o partido de nenhum dos lados, e muito menos afirmar, de cima de muro, que “ambos estão relativamente corretos e é preciso buscar uma opinião intermediária”). Primeiramente, os críticos: uma parte do público prontamente rejeitou as duas marcas, chamando-as de “vendidas” ou de traidoras da suposta “revolução artesanal”. Como se as microcervejarias fossem entidades beneficentes que não visam nenhum tipo de lucro, mas apenas e tão-somente o combate revolucionário por um ideal abnegado e altruísta. Sei. Outros consumidores rejeitaram a marca e promoveram boicotes a seus produtos porque não querem dar seu dinheiro à AB-InBev (porque, imagino, já dão dinheiro demais a tantas outras megacorporações). Alguns até sugeriram que o padrão de qualidade das cervejas da Wäls e da Colorado iria cair depois da aquisição – porque, claro, o prazer supremo do Carlos Brito e da AB-InBev é produzir cerveja ruim e sistematicamente estragar as boas bebidas que existem no mundo, até sobrar só soda italiana e guaraná Dolly e eles poderem vender água pura a preço de uísque single malt. Outros, por fim, condenaram a concentração de capitais no mercado artesanal, com todas as práticas nefastas à concorrência que isso pode acarretar: acordos monopolistas nos pontos de venda e manipulações de preços em escala para prejudicar a concorrência. Disso eu realmente tenho medo. Aliás, já estamos vendo isso acontecer.

Era essa a sua ideia de “cerveja popular”?
Fonte: @eapsp (Instagram)
Por outro lado, houve aqueles que acolheram a notícia com braços abertos, afirmando que ela vai popularizar o consumo de boas cervejas no Brasil. Alguns previram uma queda no patamar de preços devido à maior eficiência no processo produtivo e à aquisição de matérias primas em escala maior. Não estamos observando isso. Aliás, pelo contrário: a Wäls só tem lançado novos rótulos com patamar de preços significativamente superior, chegando a astronômicos R$ 60 por uma garrafinha. As cervejas da Colorado também têm sofrido um aumento de preços considerável, chegando ao patamar dos R$ 20 pela garrafa de 600ml nos supermercados, o que, pelo menos por enquanto, invalida o argumento da redução dos custos. Outros louvaram o fato de que boas cervejas nacionais passarão a ser distribuídas pela estrutura logística da AB-InBev, atingindo mais pontos de venda e regiões mais remotas do país, melhorando a acessibilidade do consumidor a esses produtos. O fato é que, aqui em São Paulo, já tínhamos Wäls e Colorado em supermercados, mas eu imagino que não fosse assim em todos os lugares do país, de modo que esse ganho logístico realmente fará muita diferença para os consumidores distantes do eixo sul-sudeste. Outras pessoas, por fim, imaginam que a aquisição por um grande grupo possa possibilitar uma injeção maciça de capitais, necessária para aumentar a estrutura produtiva dessas marcas. De fato, as novas fábricas da Wäls e da Colorado terão capacidade produtiva imensamente superior e maquinário de ponta, e é muita inocência imaginar que elas não faziam parte do acordo de aquisição das duas empresas pela AB-InBev.

Argumentos à parte – e há argumentos bons, razoáveis e até prováveis de ambos os lados –, a verdade é que a reação da maior parte dos consumidores foi guiada pela emoção pura. A verdade tem de ser dita: boa parte do público consumidor de cervejas artesanais (pelo menos se levarmos em conta os “raivosos” que se manifestam nas redes sociais) rejeitou a notícia simplesmente porque se sentiu “traída”. Porque são pessoas que se acostumaram a acreditar no besteirol de que tinham um gosto mais “sofisticado” e “evoluído” do que a grande indústria que atende as massas (mesmo que estivessem enchendo a lata de Skol até anteontem). Porque consomem “artesanal”, e não “industrial” (mesmo que não consigam definir precisamente qual é a diferença entre uma coisa e outra). Porque se acostumaram a desdenhar da AB-InBev como uma empresa para “bebedores ignorantes”. No fim das contas, muitos repudiaram a notícia porque – vamos ser sinceros? – têm um medo enorme de que “a Massa” passe a beber as mesmas cervejas que eles e eles não possam mais dizer que estão acima das outras pessoas. Entraram na ciranda do consumo de artesanais justamente porque era um mercado elitizado (e não a despeito disso), e agora estão correndo o risco de se sentirem novamente confundidos com o populacho. Convenhamos: esse é o pior motivo possível para repudiar a notícia.

Quem tem medo de “revolucionar”?

Desce um Velho Barreiro para cada um; 
e depois uma Cantillon Grand Cru Bruocsella!
Fonte: temmais.com
Eu, como consumidor, estou do lado da popularização da diversidade cervejeira. Do lado de uma cultura de consumo com opções de verdade e com acesso fácil e popular. Quero cervejas boas, baratas e com variedade. Quero entrar num boteco da esquina (digo a esquina aqui de casa, na Vila Guilherme, e não uma esquina gourmet em Pinheiros ou nos Jardins) e ver meia dúzia de pés-rapados que nem eu comendo salaminho e bebendo American lager, ou bock, ou pale ale, ou dubbel, ou weiss, ou barleywine, não para pagar disso ou daquilo, mas porque realmente podem escolher o que querem beber pelo gosto pessoal, já que são todas igualmente acessíveis e disponíveis.

Uma das palavras mais constantes do vocabulário do público de cervejas artesanais é “revolução”. Também é uma das mais vazias de significado. Empresas e consumidores levantam a bandeira de que a produção e o consumo das cervejas artesanais estariam “revolucionando” a sociedade brasileira. Nessas horas, o historiador dentro de mim se revira. Alguém por favor me explica que raio de “revolução” é essa? No jargão das ciências humanas, “revolução” é um termo empregado para qualificar processos históricos que impliquem reformulação completa das estruturas econômicas ou políticas de uma sociedade. Alguns historiadores usam o termo num sentido mais amplo, falando em “revoluções culturais”, mas ainda assim a palavra indica um processo de virar tudo de ponta-cabeça. Aliás, o termo “revolução”, etimologicamente, vem da astronomia e significa “o ato de girar”. Não sei se estou olhando para o lado errado, mas eu não vi nada virando de ponta-cabeça no padrão de consumo de bebidas alcoólicas no Brasil. Só vi as velhas estruturas do consumismo de luxo sendo solidificadas: paga-se bem mais por um produto com prestígio e status social agregado (a “cerveja especial”) para diferenciar o padrão de consumo das classes A e B daquele que predomina nas classes inferiores. Como sempre foi nesse Brasil metido a besta. Só que antes era com outros produtos e outras bebidas – nomeadamente, o uísque, o vinho e a vodca importada. Agora é com cervejas especiais. “Revolucionamos” exatamente o quê? Só se tivermos revolucionado a conta bancária de meia dúzia de microcervejeiros, aí pode ser.

Viva la revolución!
Fonte: www.pinterest.com/jcerveau/che-guevara/
A verdade é que as microcervejarias brasileiras adoram se dizer revolucionárias, mas pouquíssimas ousaram realmente fazer algo no sentido de promover a única “revolução” que poderia mudar esse quadro: tornar seu produto acessível para que pudesse ser consumido de forma casual, retirando-lhe a aura de prestígio e status. Ou seja, fazer cerveja artesanal para beber como se fosse a “de sempre”. Aliás, é mais ou menos assim que a coisa sempre funcionou nos mercados norte-americano e europeu – onde os nossos cervejeiros dizem buscar inspiração. Nos EUA ou na Bélgica, as pessoas bebem corriqueiramente cerveja artesanal nos cafés, levam six-packs para beber em casa com os amigos, e fazem isso porque elas não são dramaticamente mais caras do que as cervejas comuns. Mas muito pouca gente tentou caminhar nessa direção no Brasil. Alguém já viu clientes entrando em um empório para comprar six-pack de IPA ou imperial stout (a não ser em promoção)? Nossos supermercados nem sequer oferecem engradados de cerveja artesanal nas gôndolas!

Pelo contrário, o mercado microcervejeiro, sobretudo nos últimos 5 anos, tendeu a se acomodar num certo modelo de negócios típico de mercados emergentes onde o padrão de renda está em alta, puxando o consumo de luxo. Esse modelo se baseia em apostar numa demanda crescente oriunda das classes A e B. Essa demanda é restrita e não poderia sustentar uma grande produção em massa, mas é suficiente para impulsionar uma produção industrial ou importação de pequena escala. Busca-se capturar o consumidor pela curiosidade (ou o “modismo”) ou pelo seu afã de se diferenciar, com o intuito de convencê-lo a comprar, uma vez, um produto de altíssimo valor agregado. Vendeu uma garrafa para esse consumidor, é hora de buscar o próximo.

É um mercado baseado na lógica da prova e da degustação, porque o valor do produto justifica uma “nova experiência” e/ou um dia de “ostentação”, mas não justificaria o consumo regular. Os consumidores constituem um grupo mais ou menos restrito de “entusiastas”, que veem a cerveja quase como um hobby. Os produtores e vendedores, via de regra, não procuraram capturar os consumidores mais ou menos indiferentes, que não vão ficar correndo atrás da última sour session oak-aged India black ale do mercado. Numa dada altura, o mercado se acomodou ao tamanho dessa comunidade de entusiastas e conseguiu, por meio de vários testes de percepção de valor, entender o quanto esse consumidor estava disposto a pagar por uma nova degustação. Fixou-se então esse valor como o preço básico para qualquer cerveja. No Brasil dos últimos dois anos (sobretudo depois da escalada do dólar, que impactou o preço das cervejas importadas), esse preço gira em torno de R$ 15 a 25 para uma garrafinha. Qualquer uma. Todo grupo de entusiastas é, por natureza, um universo pequeno de pessoas, mas o crescimento mais ou menos espontâneo desse grupo ao longo dos últimos anos deu fôlego suficiente para o aparecimento de novas microcervejarias.

Há um fator limitante nesse modelo de negócios: você só vende cada cerveja para um consumidor individual uma única vez. Então, para aumentar suas vendas, a cervejaria só tem duas opções: ou ampliar a base de consumidores, ou lançar novas cervejas. A busca por novos consumidores implicaria visar um bebedor que não faz parte desse perfil do entusiasta disposto a gastar R$ 20 para provar cada nova cerveja. Implicaria mudar toda a estratégia. A segunda opção apresenta-se como a saída mais fácil para o problema, o que torna compreensível por que as microcervejarias inundaram o mercado de novos rótulos, nem sempre com qualidade consistente. Para quem só vai vender uma garrafa por consumidor, não é preciso investir em padrão de qualidade constante, pois a experiência de degustação não será repetida. De que vale investir em aprimorar uma receita antiga se ela não vai mais vender? É preciso investir, isso sim, em novas cervejas. Por mais medíocre que seja o resultado, a curiosidade, a paixão sincera ou a mera “síndrome de colecionismo” dos consumidores vai garantir que um primeiro lote venda. E aí nem é mais preciso fazer segundo lote, em muitos casos: basta passar para uma nova receita. Essa enorme rotatividade, que muita gente louva como sendo fruto da criatividade dos cervejeiros, na verdade pode ser entendido como um requisito do modelo de negócios do setor artesanal. Afinal, onde está a tão propalada “criatividade” em se lançar um caminhão de IPAs, sessions IPAs e saisons com frutas tropicais, quase nenhuma bem-feita o suficiente (com consistência) para ser uma boa representante do estilo?

Abra seu coração para algo totalmente inovador, 
sobre o qual você nunca tinha ouvido falar: IPA.
Fonte: www.avsforum.com
Acontece que esse modelo de negócios tem perna curta, porque essa demanda sobre a qual o castelo de cartas da cerveja artesanal brasileira está erguido é altamente específica e relativamente inelástica. O modelo funcionou muito bem enquanto ainda havia um grande contingente de público que nunca havia entrado em contato com a diversidade de estilos cervejeiros. As inúmeras matérias na mídia e ações de divulgação e degustação transformaram toda essa gente em consumidores potenciais. Acontece que eles já provaram e já decidiram se gostam ou não. Os que tinham de virar entusiastas já o fizeram. Já saciaram a curiosidade – que era o móvel principal da demanda até então. Agora sobraram poucos pagãos para converter, por assim dizer. Para piorar, a aura de novidade e exclusividade da cerveja artesanal está passando (hoje em dia, quem é que se sente “especial” porque sabe o que é uma IPA?), o que diminui o encanto daqueles que haviam entrado no barco só porque queriam estar antenados. Por fim, a demanda era vigorosa em um contexto de crescimento econômico, mas, com o cenário de recessão que estamos vivendo atualmente no Brasil, o consumo de luxo deixou de ser uma prioridade e passou a ser a primeira coisa a ser cortada no orçamento da classe B. A torneira está começando a secar. Não sou empresário nem bidu, mas não acredito que esse modelo tenha vida muito longa.

Qual a alternativa, então? Parece-me que seria preciso buscar um novo tipo de consumidor que não seja o “entusiasta” que tem sustentado o mercado artesanal até aqui. Um que consuma cerveja artesanal casualmente, sem precisar fazer parte de alguma espécie de “confraria dos iluminados de São Gambrinus”. Um que, em vez de sair caçado a última edição limitada de uma raríssima Scotch ale com manteiga de karité envelhecida em barris de vinho do Porto, contente-se em pegar uma Münchner dunkel gostosa para beber junto com a pizza na sua pizzaria preferida do bairro. Ou seja, alguém que beba uma artesanal como quem bebe as “de sempre”. Contudo, isso depende de algumas condições. Em primeiro lugar, a cerveja tem de ter boa distribuição, precisa chegar ao ponto de consumo casual do consumidor comum, e não apenas ficar restrita aos bares cervejeiros frequentados pelos entusiastas. Em segundo lugar, ela precisa ter preço justo e acessível, para que possa substituir a de sempre. Não digo que precise necessariamente ter o mesmo preço de uma Skol, mas seria interessante se uma witbier ou uma pale ale pudesse custar, digamos, não mais do que 30-50% a mais que uma premium de massa. Em terceiro lugar, num cenário (ainda muito distante) em que haveria várias cervejas nessas condições, é preciso haver qualidade e consistência no produto para impulsionar a repetibilidade da compra.

Olha, não sou nenhum empresário do ramo. Mas, do meu ponto de vista, uma microcervejaria só pode almejar a isso se conseguir consolidar um mercado regional, buscando distribuir seu produto para o pequeno comércio de sua região com o intuito de cortar custos de logística e transporte a fim de atingir um patamar de preços competitivo (com o benefício adicional de preservar o frescor do produto), e se procurar atingir o gosto do consumidor regular, e não somente do entusiasta em busca de sabores exóticos. E, acima disso tudo, é preciso promover uma política de preços mais agressiva, que não se restrinja a brigar pelo entusiasta empoleirado num bar cervejeiro disposto a gastar uma soma vultosa em cerveja hipster, mas que tente entrar no território do consumidor que estava inicialmente disposto a tomar só uma American lager de massa. Distribuição, acessibilidade e custo-benefício, em suma, seriam as palavras-chave para, quem sabe, “revolucionar” alguma coisa no mercado cervejeiro no Brasil. É, vou deixar meu preciosismo historiográfico de lado e admitir que, nessas condições, poderíamos talvez falar em “revolução cervejeira”.

O bicho-papão papou!

Comprinha básica para o churras da galera.
Fonte: brooklynbuzz.com
Não estou dizendo nada de novo. Faz muito tempo que essa bola já vinha sendo cantada. Desde 2008, quando comecei a beber cerveja “diferentona”, a gente já escutava que o mercado ia crescer, que o público ia começar a se interessar por cerveja artesanal, que o volume de produção e consumo ia aumentar e que, depois disso tudo, finalmente os preços iam cair e a gente ia poder beber Rauchbier e IPA no churrasco. E que, aí, a cerveja artesanal ia se consolidar como um produto corriqueiro no Brasil. Todo mundo que fazia a concessão de pagar R$ 15 numa garrafa de artesanal, naquela época, tinha em mente essa espécie de utopia futura, quando a cerveja teria um preço mais razoável. Só que o mercado cresceu e os preços só fizeram aumentar. Naquela época, a cervejaria nacional que pedisse R$ 15-20 numa long neck de pale ale se arriscava a ser motivo de chacota pública. Hoje, não há nada mais corriqueiro. Mas todo mundo sabia que, uma hora, esse modelo de mercado ia começar a se esgotar. Com ou sem crise, com ou sem o assédio das megacorporações. A receita era simplesmente insustentável a longo prazo. E quase ninguém fez nada para mudar isso.

As microcervejarias não tentaram roubar o consumidor da AB-InBev – contentaram-se com o mercado relativamente restrito, mas lucrativo, dos entusiastas e das confrarias de esclarecidos que conseguiram amealhar. E sabe quem foi lá e aproveitou a oportunidade para roubar o bebedor da AB-InBev? A própria AB-InBev! Pois é. Todo mundo estava dizendo que era preciso mudar o modelo para buscar atingir o consumidor comum. Mas ninguém se mobilizou a tempo para isso, então as grandes corporações vieram para fazer o serviço. A compra da Wäls e da Colorado foram só a pontinha do iceberg, foram aquisições para entender como o mercado funcionava e ganhar expertise e para entrar nesse nicho dos entusiastas. Mas a entrada da AB-InBev tem objetivos mais largos.

Ao mesmo tempo em que essas aquisições foram anunciadas, a Bohemia lançou uma nova linha de cervejas com “cara de artesanal”: uma IPA com (essência de) jabuticaba, uma witbier com (essência de) pimenta-rosa e uma Belgian blond ale com (essência de) erva mate. Inundaram os supermercados, os bares e os pontos de venda com essas novas cervejas, a um patamar de preços convenientemente próximo, mas um pouco abaixo das artesanais mais baratas. Como quem diz: “não daremos motivo para você desconfiar do nosso produto; ele é tão bom quanto essas outras aí, mas é um pouquinho mais barato e é de uma marca em quem você já confia.” Com isso, começou a forçar a porta para um novo mercado que está disposto a consumir artesanais, mas ainda tem receio devido ao preço e ao fato de as marcas serem pouco conhecidas. Com essa linha, a AB-InBev começou a engolir os consumidores que estavam quase dispostos a consumir as artesanais, ou seja, que já eram clientes em potencial. Ou aqueles que haviam provado uma ou duas e tinham gostado da brincadeira, mas que estavam só procurando uma um pouco mais barata para poder encher a geladeira. Ao mesmo tempo, atacou em uma segunda frente: repaginou a Brahma Extra, transformando-a numa linha que inclui uma amber lager e uma Weissbier a preços populares – o mesmo preço da American lager comum da marca, por sinal. Aqui, o público-alvo é outro: é o brahmeiro que até pode ter ficado curioso com tanta cerveja diferente no mercado, mas que tem um perfil conservador demais (ou tem poder aquisitivo de menos) para se permitir gastar mais de R$ 10 numa garrafa de cerveja.

Com isso, a AB-InBev está começando a roer o osso pelas duas pontas ao mesmo tempo: buscando o consumidor que ainda poderia comprar artesanais das micros que temos hoje em dia e, no outro espectro, ampliando enormemente a base de curiosos por novos estilos a partir do público que não está disposto a gastar mais do que já gasta para provar uma nova cerveja. O mercado já começou a se mobilizar por meio da concorrência para se adaptar a essa investida. Infelizmente, não me refiro à concorrência das microcervejarias estabelecidas, mas sim dos outros grandes grupos cervejeiros. A Brasil Kirin recentemente diminuiu os preços de toda a sua linha da Eisenbahn na tentativa de chegar antes da Brahma Extra ao consumidor de cervejas de massa. Pela nova política da Kirin, a Eisenbahn Pilsen deve custar o mesmo que a Heineken nos pontos de venda. E as demais da linha devem ficar em torno de 50% acima disso. É claro qual é o público pelo qual as gigantes estão brigando: o mesmo público pelo qual as microcervejarias não tiveram nem peito, nem fôlego para brigar ao longo dos últimos 5 ou 10 anos.

A pergunta que muita gente está se fazendo, a essa altura, é a seguinte: afinal de contas, a entrada da AB-InBev e a briga de “cachorro grande” que está começando no mercado artesanal é algo positivo ou negativo para o consumidor? Como eu disse, há bons argumentos para defender ambas as possibilidades. Contudo, minha questão não é essa. A questão é que era necessário, imperioso até, mudar um certo modelo de negócios com o qual todo mundo meio que “se acostumou”, na camaradagem. Alguém ia ter de fazer isso mais hora, menos hora. O triste é ver que pouquíssimas das nossas “revolucionárias” microcervejarias tiveram coragem para tentar fazer isso. Uma ou outra o fez, sejamos justos. Mas a maioria continuou num plano de negócios mais ou menos inercial, apostando em que o cenário de inchaço ia continuar para sempre. Agora o grande capital entrou no negócio para valer. E ele tem os meios de tornar essa briga bastante desleal para os pequenos. Será muito mais difícil agora as microcervejarias fazerem qualquer “revolução” com a AB-InBev e a Kirin tomando posições mais agressivas no mercado. Por um lado, é uma alegria para mim, como consumidor, ver que esse movimento de popularização real pode finalmente estar começando. Por outro lado, é uma tristeza ver que minhas cervejarias preferidas não toparam esse desafio e quem está fazendo isso é a AB-InBev, com uma série de práticas de mercado escusas e potencialmente prejudiciais a uma concorrência saudável nesse setor.

Resta sentar, abrir uma cervejinha descompromissada (que agora pode ser uma Weiss, ou quem sabe até uma kölsch ou uma Belgian golden strong ale) e observar os rumos que os acontecimentos vão tomar nos próximos anos. Na próxima postagem, vou provar e comentar todos os rótulos dessa nova linha de cervejas “artesanais” da Bohemia e da Brahma Extra. Não perca!