terça-feira, 1 de março de 2016

As novas cervejas da AB-InBev

Na última postagem do blog, eu me permiti fazer algumas reflexões pessoais e digressões acerca da entrada da gigante AB-InBev no mercado nacional de cervejas artesanais em 2015. Essa presença da megacompanhia se efetivou no ano passado por meio da compra de duas importantes microcervejarias brasileiras (a Wäls e a Colorado) e por meio do lançamento de novas cervejas com “cara de artesanal” nos portfolios das marcas da AB-InBev, com estilos diferentes da loira gelada de sempre. A polêmica foi grande, tanto na época da notícia quanto na repercussão do texto, mas não é disso que quero falar hoje: agora, o que me interessa é saber quão bons são esses novos produtos apresentados pela gigante cervejeira. A seguir, farei uma degustação atenta de todas as cervejas da nova linha da Bohemia e da linha Brahma Extra. Convido meu leitor a fazer o mesmo e tirar suas próprias conclusões.

A nova Bohemia: uma velha tradição repaginada


As novas Bohemias: artesanais ou “artesanescas”?
Fonte: www.bohemia.com.br
No início de 2015, a Bohemia aportou no mercado artesanal com três novos rótulos: a Bela Rosa, a Caá-Yari e a JabutIPA. Mas a verdade é que essa não é a primeira vez que a Bohemia lança cervejas em estilos diferentes da “pilsen” de sempre. Em 2005, quando eu ainda nem ligava muito para essa coisa de diversidade cervejeira, a Bohemia lançou no mercado uma cerveja envasada em uma garrafa imitando cerâmica, com rótulo de ares medievais e monásticos. Seguia o estilo Belgian blond ale, com receita claramente inspirada pela Leffe Blonde (que, à época, já pertencia à InBev), e chamava-se Bohemia Confraria. Foi uma das portas de entrada de muita gente (eu incluído) para o universo da diversidade cervejeira. Não era uma má cerveja. Era uma blond bem doce, com mais presença de malte e frutas em compota do que de especiarias, um pouco enjoativa, mas saborosa. Depois, a Bohemia repaginou a Confraria e a relançou em uma linha de cervejas que incluía ainda a Bohemia Escura (uma Schwarzbier muito leve) e a Bohemia Weiss (uma Weissbier de estilo alemão que cumpria bem seu papel por um preço módico). Depois vieram ainda a Bohemia Oaken, receita bem fraquinha maturada com chips de carvalho, e a Bohemia Imperial, uma receita pretensamente histórica com ares de Vienna lager. Ainda era uma linha pouco antenada com o que estava acontecendo no mercado de cervejas artesanais, dando a impressão de um produto da década passada.

Com o tempo, e com o crescimento do mercado artesanal, a Bohemia decidiu repensar sua estratégia para o segmento e descontinuou essa antiga linha, deixando no mercado apenas a clássica Bohemia Pilsen. Isso foi ainda em 2014, salvo engano. No seu lugar, no começo de 2015, entrou a nova linha da Bohemia, com uma identidade visual e conceitual muito mais próxima daquilo que o mercado de cervejas artesanais veio a se tornar nos últimos anos. Os nomes, como é comum em muitas microcervejarias, remetem a ingredientes ou elementos culturais brasileiros. A identidade visual é moderna, colorida e descontraída, bem no padrão atual das micros. As receitas seguem os seguintes estilos: a Caá-Yari é uma Belgian blond ale, a Bela Rosa é uma witbier e a JabutIPA é uma IPA de perfil inglês. Com a exceção talvez da blond (estilo que já é figurinha fácil no portfolio da AB-InBev), são todos estilos que estão em evidência no mercado cervejeiro nos últimos dois anos. Seguindo um modismo recente das cervejarias nacionais, toda a linha emprega ingredientes tipicamente brasileiros na receita: a Caá-Yari leva erva mate; a JabutIPA é produzida com jabuticaba e, por fim, a Bela Rosa leva pimenta-rosa e limão. Na verdade, todas as cervejas são produzidas com extratos de seus respectivos ingredientes, para facilitar a padronização do produto, mas o resultado, do ponto de vista do marketing, é o mesmo. Em resumo: a Bohemia fez sua lição de casa e mimetizou de forma mais ou menos fiel aquilo que estava acontecendo nas microcervejarias brasileiras. Lançou uma linha de cervejas artesanais aparentemente crível. Vejamos como essa credibilidade se sai no copo.

Fonte: degustaterapia.blogspot.com
A Bohemia Bela Rosa tem como base uma receita de witbier, a clássica cerveja de trigo belga, tradicionalmente temperada com sementes de coentro e raspas de laranja. Em adição a esses ingredientes, a Bela Rosa leva ainda extrato de limão e extrato de pimenta-rosa – fruto da aroeira, árvore nativa do Brasil. Foi a primeira que eu provei da linha, animado pelos bons relatos a respeito do lançamento do chope. Infelizmente, o desempenho da versão engarrafada não parece ter ficado à altura, embora ela não seja uma má cerveja. No copo, apresentou coloração amarela bem clarinha, com um matiz esverdeado, condizente com o estilo, mas com uma turbidez que me pareceu um pouco excessiva. Espuma de bom desempenho. No aroma, percebe-se com muita clareza a adição dos extratos da receita: a pimenta-rosa predomina de forma avassaladora, dando um toque extremamente picante ao aroma. Em segundo plano, um aroma forte, mas incomodamente artificial, de limão, lembrando capim-limão e desinfetante. Raspas de laranja são perceptíveis, mas as sementes de coentro ficaram bem apagadas. Aromas de fermento, aveia e rosas complementam o perfil aromático. Na boca ela entra docinha, depois mostra uma boa e refrescante acidez (seu ponto mais forte) e termina num final longo, com bom equilíbrio entre doce e ácido e aromas residuais de aveia, fermento e limão. Amargor muito sutil. O corpo é leve, talvez em excesso, com textura algo aguada e carbonatação muito vívida. No conjunto, o ponto positivo fica para o bom balanço entre doçura e acidez, que refresca, limpa o paladar e convida ao novo gole sem assustar o bebedor menos acostumado. O ponto mais fraco é o aroma, com uma sensação muito artificial e com protagonismo demasiado dos extratos de pimenta-rosa e limão. Não é uma má cerveja: tem personalidade, tem boa sensação na boca e boa evolução. Mas não é uma witbier que se destaque positivamente diante das melhores concorrentes do estilo. Para o meu gosto, não foi nem minha preferida, nem a que mais desagradou. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Fonte: degustaterapia.blogspot.com
A Bohemia JabutIPA é uma IPA de perfil inglês, produzida com adição de extrato de jabuticaba. Muitos consumidores saudaram de braços abertos esse rótulo como uma opção acessível de IPA num mercado em que há poucos exemplares populares de um estilo com fortíssima demanda. Mas o resultado acabou decepcionando que está acostumado com IPAs americanas de forte personalidade aromática. No copo, é a mais escura das três, com uma coloração alaranjada profunda e translúcida, pendendo ao cobre, e com creme de baixo desempenho. O aroma é inusitadamente fora de padrão para o estilo: no lugar dos lúpulos como protagonistas, a JabutIPA traz as sensações frutadas: um forte aroma esterificado de abacaxi em calda e presença expressiva de frutas vermelhas (que eu imagino serem advindas do extrato de jabuticaba). Em segundo plano vêm o malte, com notas de caramelo e uma sugestão de castanhas, e finalmente o lúpulo, possivelmente de variedade inglesa, trazendo grama molhada e rosas. Há um perceptível acento mineral no nariz. Infelizmente, o frescor do lúpulo fica muito aquém do esperado para o estilo. Na boca, ela entra medianamente doce e depois evolui para um amargor razoavelmente pesado, bem ousado até para um rótulo da Bohemia, culminando num final amargo, mineral e relativamente seco. O corpo é mediano para intenso, no padrão inglês do estilo, com textura mineral muito correta, mas com excesso de carbonatação. O aquecimento alcoólico e a adstringência são perceptíveis, diminuindo a drinkability. No conjunto, meu entendimento é o de que ela está completamente fora do estilo. O amargor é intenso e correto, mas o aroma é muito descaracterizado, dominado pelas notas frutadas e quase sem frescor de lúpulo. O extrato de jabuticaba acaba um pouco “perdido” no meio da receita, unidimensional, sem aquela gostosa complexidade de sensações em camadas da fruta fresca (doce, frutas vermelhas, terroso, fresco, levemente adstringente). No conjunto, ela parece mais uma Belgian pale ale mais amarga do que uma IPA, para ser sincero. É uma receita em que a sigla “IPA” significa, simplesmente, que se trata de uma cerveja amarga.  Das três cervejas da nova linha, foi a que menos me agradou. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Fonte: degustaterapia.blogspot.com
Por fim, a Bohemia Caá-Yari é uma leve e bem-resolvida Belgian blond ale com adição de extrato de erva mate. No copo, uma bonita coloração alaranjada profunda, brilhante, mas com espuma de baixo desempenho. O aroma é relativamente complexo, em camadas: em primeiro lugar, sente-se um jogo equilibrado entre ésteres (compota de abacaxi bem marcante, um tiquinho de banana) e cravo, remetendo imediatamente ao perfil aromático de levedura da Leffe Blonde. Em segundo plano, mel, rosas e um toque de ervas (orégano?) do lúpulo. Uma sensação metálica prejudicou o frescor do aroma. Na boca ela entra surpreendentemente leve e ácida, um tiquinho salgada, bem apetitosa, tornando-se depois mais rica e doce e finalizando com um final adocicado com leve amargor secundário, em que o malte é ressaltado pelo rico e macio sabor da erva mate. O corpo é leve para mediano, bem seco em comparação com outros exemplares do estilo, com textura frisante e crocante e carbonatação expressiva. O aquecimento é pouco perceptível, o que, junto com o corpo leve e a apetitosa acidez, eleva muito a drinkability. No conjunto, é uma receita inteligente. Parece ser fermentada com a mesma cepa de leveduras da Leffe Blonde, apresentando o mesmo perfil típico de abacaxi-e-cravo. Contudo, seu corpo é bem mais leve e crocante, ela é mais seca e possui acidez mais expressiva, junto com uma sugestão salgada, o que lhe dá uma gostosa sensação de aperitivo. É menos complexa nos maltes, o que a faz perder em intensidade e em riqueza de paladar em comparação com outras do estilo, mas é mais refrescante e apetitosa. A erva mate é sutil, bem integrada à receita, e só ajuda a reforçar as sensações de malte. Foi minha preferida dentre essas três novas receitas da Bohemia que chegaram aos supermercados. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

No geral, a linha toda me dá a impressão de que a Bohemia está fazendo um grande esforço para se adaptar aos produtos do mercado brasileiro de cervejas artesanais. Não há como negar que essas três cervejas apresentam uma identidade “artesanal” bem mais definida do que todos os antigos rótulos “diferentes” da marca. Há uma convergência para uma identidade visual mais moderna, mais próxima das usadas pelas microcervejarias – com rótulos bastante agradáveis e bonitos, por sinal. Há também um trabalho com as receitas que, excetuando-se o irritante uso das essências, também está afinado com o esforço dos nossos microcervejeiros para usar ingredientes nacionais. As receitas, aliás, têm sofrido alguns ajustes sob a responsabilidade de José Felipe Carneiro, cervejeiro responsável pela Wäls. Esse é um fator bastante interessante da compra das microcervejarias pela AB-InBev: em adição às marcas e ao portofolio de cervejas artesanais das micros, a AB-InBev está se beneficiando também da injeção de know-how e expertise de microcervejeiros brasileiros consagrados.

Do meu ponto de vista, a Caá-Yari é a mais interessante e bem-executada cerveja dessa nova linha fixa da Bohemia que encontramos nas prateleiras dos supermercados. A receita-base é inteligente e funciona bem, e a adição da erva-mate agrega positivamente ao conjunto. Não é uma cerveja marcante nem especialmente rica e saborosa, mas não decepciona. As outras duas, ao meu ver, têm problemas estruturais mais ou menos sérios. A Bela Rosa tem boa sensação na boca, mas as essências de pimenta-rosa e limão mascaram suas qualidades e adicionam aromas artificiais, sem a complexidade de especiarias que se espera de uma boa witbier. Uma pena. Já ouvi relatos de que o chope, quando foi lançado, era significativamente superior a essa versão engarrafada, mas não tive a oportunidade de provar. Já a JabutIPA, a meu ver, não chega nem a ter muitas qualidades além de um amargor sólido para o padrão das macrocervejarias. Ela não tem nem o frescor aromático de uma IPA, nem a complexidade frutada de uma boa fruit beer, ficando incomodamente fora de estilo e proposta.

Afinal de contas, como avaliar o custo-benefício dessa nova linha mezzo-artisanale da Bohemia? O preço das três gira atualmente em torno dos R$ 12 pela garrafa de 600ml, ou R$ 6,50 pela caçulinha de 300ml. Isso as situa numa faixa equivalente ou um pouco abaixo das artesanais regionais mais baratas, com distribuição em supermercados – aqui em São Paulo, penso, por exemplo, nas cervejas da Therezópolis, da Baden Baden, da Burgman ou da Dama Bier, relativamente fáceis de encontrar. O problema é que as Bohemias não convencem como boas cervejas diante dessas concorrentes diretas. Não são boas o bastante para substituírem uma artesanal “de verdade”, mas também não são baratas o bastante para que essa diferença de qualidade seja irrelevante. Para quem sabe o que está comprando, vale mais a pena pagar 20%, até 50% a mais por uma cerveja de qualidade significativamente superior. Para falar a verdade, há até opções melhores e mais baratas, como algumas Therezópolis ou as Eisenbahn. Mas é preciso levar em conta que eu não faço parte do público-alvo dessas cervejas. Aliás, você que está lendo esse blog provavelmente também não faz. Se eu entendo a estratégia da AB-InBev, essa nova linha está voltada para o “curioso hesitante”: aquele que tem vontade de experimentar cervejas artesanais, mas não sabe o que comprar e fica perdido diante da diversidade, sem saber que microcervejaria vale a pena o investimento.

Duas “outras” Bohemias: correndo por fora

Em adição a essas três cervejas de ampla distribuição, a Bohemia também lançou, em  2015, dois outros rótulos de distribuição mais restrita, com uma pegada um pouco diferente dessa linha “básica”. Parece-me que elas têm um caráter experimental, e talvez a Bohemia ainda esteja estudando a possibilidade de elas entrarem no portfolio permanente. Ambas, aliás, parecem ter sido feitas com participação mais intensiva da Wäls no processo.

Fonte: www.brejas.com.br
A primeira delas é a Bohemia Oito e Um Session Stout, uma dry stout produzida com adição de extratos de laranja e hortelã, além de flocos de aveia. Ressalte-se, ainda, o emprego de extrato de lúpulo (no lugar dos tradicionais pellets de lúpulo) na receita: a Bohemia está trilhando um caminho definido de padronização por meio do uso de extratos. O termo “session stout” refere-se ao fato de que a cerveja possui teor alcoólico relativamente baixo (4%) e foi pensada como uma cerveja para consumo em quantidade, mas, ao contrário do que fica sugerido, isso não significa que seja uma versão menos alcoólica de uma stout: na verdade, ela fica dentro da faixa de ABV tradicional do estilo dry stout. O nome “Oito e um” é uma referência ao famoso chocolate inglês com menta, chamado After Eight, pois a cerveja busca emular o mesmo perfil sensorial, combinando torrado (chocolate) e refrescante (laranja e hortelã). O resultado, para ser sincero, é surpreendentemente bem resolvido e agradável. Na taça, ela apresenta coloração marrom bem escura, mas não chega a ser totalmente preta, encimada com um creme de baixo volume e persistência apenas mediana. O aroma é equilibrado, complexo e vívido: o perfil torrado de malte é macio e rico (com chocolate, café de coador e casca de pão torrada em equilíbrio) e a laranja faz um contraponto cítrico preciso. Em segundo plano, hortelã e mentolado aparecem sem roubar a cena. O lúpulo, de perfil inglês, é deliciosamente presente, com notas apimentadas, de frutas vermelhas frescas e toque de limão. Circundando tudo, uma presença mineral definida. Na boca, ela entra com uma doçura muito breve que logo é sobrepujada por um amargor mineral e seco, que se prolonga no final persistente, como deve ser. O corpo fica entre leve e mediano, muito macio e acetinado, mas não pesado o suficiente para diminuir a drinkability, com uma sensação mineral muito inglesa. No conjunto, uma bela dry stout com a adição de uma “alegria” cítrica e mentolada. O perfil torrado é rico e profundo, os extratos aparecem bem integrados ao conjunto, sem sensação de artificialidade, e os lúpulos são uma surpresa inesperada e bem-vinda. O corpo é mineral e macio na medida, com pegada bem inglesa. Essa é a melhor cerveja que já provei da Bohemia até hoje. Poderia destronar a Guinness no mercado se fosse apresentada como concorrente direta com um trabalho bem feito de marketing. Como curiosidade, é interessante apontar que, embora o rótulo apresente apenas a marca Bohemia, a cerveja foi produzida na fábrica da Wäls. Na faixa dos R$ 12 pela garrafa de 600ml, é uma compra que vale a pena. Espero que entre na linha permanente e seja distribuída em supermercados como as demais. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Fonte: www.instafotom.net
Por fim, em 2015 a Bohemia também lançou sua primeira cerveja colaborativa, com a microcervejaria fluminense Therezópolis: a Bohemia/Therezópolis Tripel Travessia Petrópolis-Teresópolis. O nome alude a uma desafiadora trilha que liga as cidades de Petrópolis (sede da Bohemia) e Teresópolis (onde se localiza a fábrica da Therezópolis). O estilo escolhido foi a tripel de abadia belga, e a receita ficou a encargo de José Felipe Carneiro, da Wäls/Bohemia, e Gabriel di Martino, da Therezópolis – em cuja fábrica a cerveja foi produzida. Sinceramente, fiquei um pouco na dúvida a respeito da receita. A divulgação nas redes sociais sugeria que a cerveja seria produzida com ingredientes típicos da região, como casca de mexerica ponkan e folhas da ponkan. Além disso, a receita empregaria trigo e aveia defumados com folhas de ponkan. Contudo, o rótulo indica apenas “maltes” (sem especificar quais e sem fazer alusão à defumação), “essência natural de ponkan” e “essência natural de coentro”. Na degustação, a cerveja decepcionou bastante. Pela expertise da Wäls em estilos belgas, pelo preço elevado (na faixa dos R$ 30) e pela receita, eu esperava algo muito mais ousado e bem executado. Mas ela acabou se mostrando unidimensional e enjoativa, para o meu paladar. Na taça, verteu um líquido alaranjado profundo e levemente turvo, com enorme creme branco. No aroma, uma avalanche de mel e geleia de laranja, com muita compota de abacaxi e um toque de rosas. Todo o restante ficou encoberto sob o caminhão de doçura e laranja. Lembra um xarope de frutas amarelas, sem complexidade. Se é que há mesmo um caráter de defumação, ele fica mascarado sob a doçura frutada. Na boca, a doçura é pesada e predomina do início ao fim, sem amargor ou acidez suficientes para equilibrar. O corpo é intenso e agradável, talvez o único ponto forte da degustação. O resultado geral é uma cerveja desequilibrada, de baixo drinkability e unidimensional, que não faz jus nem à receita, nem à linha belga da Wäls. Por elevados R$ 30 pela garrafa de 750ml, é a pior compra que já fiz de todo o portfolio da Bohemia. Se a receita não for dramaticamente aprimorada, não vejo muita viabilidade para este rótulo. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

A nova Brahma Extra

Fonte: www.capitalgourmet.com.br
Mas não foi só com a Bohemia ou com as aquisições que a AB-InBev atacou o mercado das cervejas artesanais. Paradoxalmente, a iniciativa mais agressiva e impactante da megacervejaria nesse quesito talvez tenha sido justamente aquela que teve menor visibilidade e atraiu menos comentários da comunidade cervejeira: a reformulação da Brahma Extra. Até meados de 2015, a Brahma Extra era uma premium American lager produzida com cereais não-maltados, que não trazia grande diferencial num mercado já saturado de produtos semelhantes. Na segunda metade do ano passado, a AB-InBev transformou a Brahma Extra em uma linha com três rótulos diferentes, cada qual num estilo cervejeiro, e lançou as cervejas em supermercados a preços populares (o mesmo preço da antiga Brahma Extra, aliás), abaixo dos R$ 3 pela long neck.

A Brahma Extra Lager é a antiga Brahma Extra repaginada. É uma premium American lager puro-malte que já não é mais anunciada como “pilsen”, mas sim como “lager” – atendendo a uma antiga demanda de setores do público consumidor de cervejas artesanais, que preferia ver a designação “pilsner” como exclusiva dos estilos tradicionais europeus (as pilsner alemãs e boêmias, bem mais amargas que as nossas “pilsen” comuns). É uma American lager de doçura acentuada, não tão seca quanto outras do estilo e quase sem amargor, a fim de ressaltar o corpo e o sabor do malte de cevada. Na taça, mostra-se amarela clara e transparente, com creme de desempenho mediano. No aroma, são os aromas doces do malte que predominam, lembrando pão branco, com uma presença frutada lembrando banana ao fundo e o lúpulo suave, de perfil floral, sem grandes surpresas. Os aromas sulfúricos do malte de cevada, lembrando flocos de milho e legumes cozidos, sobressaem incomodamente no conjunto. A doçura predomina de cabo a rabo, com uma suave acidez inicial e amargor praticamente nulo, o que a torna um pouco enjoativa. O corpo é leve para mediano, encorpado se considerarmos o estilo, levemente cremoso e com alta carbonatação. No conjunto, uma premium American lager sem destaques, com sabor de malte sólido, mas um pouco doce para o estilo e quase sem amargor para equilibrar. Se a nova Brahma Extra se limitasse a ela, não haveria nenhuma novidade relevante. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

A coisa fica um pouco mais interessante nos dois outros rótulos da linha. A Brahma Extra Red Lager é uma amber lager puro-malte leve, de perfil suave e baixa lupulagem, algo como uma releitura da premium American lager com perfil de malte levemente tostado. No meu copo, ela mostrou uma coloração âmbar escura, mas que não chega ao vermelho, transparente e com bom creme. O aroma entrega o malte tostado em primeiro plano, com remissões a castanhas e caramelo e, novamente, uma forte e incômoda presença de compostos sulfúricos de malte lembrando flocos de milho e legumes cozidos. Em segundo plano, maçãs vermelhas e gerânios. A combinação tostado-maçã-gerânios lembra um pouco o perfil aromático da velha e saudosa Kaiser Bock, da qual ficamos órfãos depois que a Heineken decidiu descontinuar essa sazonal de inverno da Kaiser. Na boca, porém, ela tem muito menos intensidade do que a extinta bock: a doçura predomina, com equilibrada acidez inicial e um final persistente, adocicado, um pouco fechado mas agradável, com retrogosto de castanhas e maçãs. O corpo é leve, seco, crocante, um tanto mineral, com forte carbonatação. Não chega a ter a drinkability fácil e descomplicada de uma “pilsen”, mas já permite goles relativamente largos. No conjunto, é uma cerveja muito honesta, que se apresenta como se fosse uma American lager um pouco mais marcante e mais saborosa, válida como variação para o dia a dia. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

A mais interessante da linha, a meu ver, é a Brahma Extra Weiss. Encomendada pelo e-commerce da AB-InBev (pois estou com dificuldade de encontrar este rótulo específico nas gôndolas dos supermercados), chegou à minha casa fresquinha (com menos de um mês desde o envase), como deve ser, e me agradou bastante. Na taça, ostenta uma coloração amarela clara, com turbidez mediana, até tímida para o estilo, mas bem perceptível (ela não é filtrada) e creme de volume mediano – de novo, considerando o nababesco padrão do estilo – mas boa persistência. Vou confessar que, pela repercussão negativa que ela teve nas redes sociais, eu levei a taça ao nariz com desconfiança, pensando que seria uma “Weiss-pega-trouxa”, sem nenhuma característica do estilo. Não é. Pelo contrário, ela mostrou aromas afinados e bem-equilibrados, com boa tipicidade: banana em primeiro plano, cravo bem perceptível, um tiquinho de maçã vermelha. O malte aparece com pão branco, o aroma de fermento é bem evidente e ela ainda mostra notas secundárias comuns no estilo: um toque cítrico lembrando laranja e um notável perfume de rosas. Complexidade aromática acima da expectativa. Na boca, ela se mostra um pouco leve em excesso: a doçura predomina e a acidez deveria ser um pouco mais elevada para equilibrá-la melhor. O corpo é leve, um pouco aguado, decepcionante para o estilo, presumivelmente para elevar a drinkability. Acredito que o uso de cereais não-maltados na receita explique, em parte, o pouco corpo. Mas, no conjunto, é uma Weiss honesta e interessante desde que você aceite que se trata de uma “roupagem atenuada” do estilo. O destaque fica para a boa complexidade aromática, melhor até do que muita Weiss artesanal por aí. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

O que é extraordinário nessa nova linha da Brahma Extra não é o perfil sensorial marcante ou ousado. Pelo contrário, são cervejas de perfil conservador para o público acostumado com as artesanais, com características atenuadas para evitar rejeição da parte do grande público. O que realmente chama a atenção é o preço a que chegaram ao mercado: R$ 2,80 da última vez que chequei as prateleiras. Isso está abaixo do preço de muitas American lagers premium do nosso mercado, como a Heineken. Com isso, a Brahma Extra se torna uma opção viável para realmente substituir a cerveja de todo dia com estilos diferentes. Com ela, hoje é possível beber uma Weiss suave, mas saborosa e honesta, no lugar da pilsen de sempre. Eu sempre tive uma preferência pessoal pela Bohemia Pilsen e pela Heineken para encher a minha geladeira no dia a dia. A Brahma Extra entra definitivamente para esse rol. E, como corolário, resta a reflexão de que são cervejas de produção em larguíssima escala. Talvez seja a primeira vez, em décadas, que teremos uma ale sendo bebida nesse volume no Brasil. Serão talvez centenas de milhares de consumidores que nunca tinham bebida nada além da “loira gelada”. Isso é algo novo.

Qual o balanço geral que fica dessas duas novas linhas da AB-InBev? Retomando o que falei anteriormente, acho que a nova linha da Bohemia tem um perfil bastante “conservador”, no sentido de que não apresenta nada radicalmente diferente da forma como o mercado microcervejeiro já funciona no Brasil. Aumentou apenas a escala, mas os parâmetros fundamentais do produto (receita, preço, identidade e marketing) continuam mais ou menos parecidos com o que as nossas micros já fazem. Do meu ponto de vista, o lançamento realmente “revolucionário” de 2015 foi a Brahma Extra. Olhando com frieza, são cervejas menos interessantes e marcantes do que as Bohemias, isso é verdade. Mas têm o mérito de serem baratas num mercado ainda excessivamente elitizado. Elas permitem que eu “saia da mesmice” no meu dia a dia e beba algo diferente da loira gelada de sempre, sem comprometer meu orçamento. Ora, não era isso que os microcervejeiros pregavam que nós fizéssemos, que buscássemos algo diferente das cervejas “sem graça” da AB-InBev? Infelizmente, os preços comuns do mercado coibiam essa prática, mesmo para quem é entusiasta. Paradoxalmente, quem está nos oferecendo uma alternativa real é a própria AB-InBev.